- Revista IHU On-Line
O mundo dá muitas voltas, e nesta em que estamos agora envolvidos, embora não faltem motivos para se temer o pior, não há por que ceder à desesperança que os profetas do apocalipse não se cansam de anunciar.
De fato, é verdade que há entre eles astutos propagandistas aplicados em desacreditar a rica herança que nos deixou o ideário do Iluminismo e os feitos civilizatórios inspirados por ele. E não por razões fortuitas o alvo preferencial de suas ações se dirige contra o mundo europeu, lugar da história em que as melhores tradições do liberalismo político se têm encontrado, em meio a intensa luta política e conflitos sociais, com as aspirações por igualdade social, processo benfazejo que desejam estancar.
O processo da globalização, ainda em curso mas com andamento inexorável, na medida em que foi precipitado a partir da dimensão econômica sem atentar para seus óbvios obstáculos políticos e sociais, se integrou o mundo em escala inédita, veio a abalar crenças, valores e instituições que até então mantinham sob a arbitragem da ONU os antagonismos do mundo em equilíbrio, mesmo que precário, tal como ocorreu após o fim da 2ª Guerra Mundial. Do ponto de vista institucional, a fórmula de governo da social democracia assegurou esse equilíbrio no Ocidente Europeu até os anos 1970, quando passa a ser contestada pela emergência da ideologia neoliberal sob liderança política de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos EUA.
Tal processo que trouxe consigo a desregulamentação de direitos e a perda de prestígio dos sindicatos e dos partidos, encontrou terreno fértil a partir das dramáticas transformações por que vem passando o mundo do trabalho produzidas pela intervenção da ciência no sistema produtivo, como a robótica que conduz a eliminação de postos de trabalho e outras tantas inovações, em particular a inteligência artificial e os novos materiais que subvertem o sistema produtivo, condenando ao anacronismo indústrias tradicionais e os largos segmentos da vida operária que por gerações se qualificaram para o exercício de suas ocupações.
Os efeitos dessas mudanças no antigo sistema colonial não foram menos radicais, apartando muitas das novas nações, em boa parte sob a liderança de elites indiferentes à sorte dos seus povos, dos processos de mudanças que transcorrem no que antes foram seus centros metropolitanos. Sem oportunidades de vida em seus locais de origem, suas populações foram tangidas para migrações massivas, lançando-se ao mar Mediterrâneo, em embarcações precárias, sem qualquer segurança de que encontrariam destino melhor no fim de suas arriscadas tentativas de evasão de uma condição de fome e de opressão.
O contacto entre esses recém-chegados com os europeus não podia ser mais infeliz, não só pelas diferenças culturais e étnicas entre eles, vistas como ameaçadoras às identidades dos países que os acolhiam, como sobretudo por que vinham a disputar postos de trabalho já escassos. O mal-estar nessa relação ensejou, como se sabe, sentimentos de xenofobia generalizados, inclusive, em alguns casos nacionais até principalmente, em setores das classes subalternas e do operariado, caldo de cultura que servirá para fomentar a retórica do nacionalismo no Ocidente desenvolvido e mesmo a criação de partidos de feição populista, fazendo ressurgir em solo europeu uma prática política que lavrou na América Latina.
Tal populismo emergente, de acordo com as tradições desse fenômeno político tem trazido de volta o sistema de dominação de tipo carismático e as interpelações plebiscitárias próprias a ele, em claro antagonismo com a dominação racional-legal, conquista histórica do Ocidente ao estabelecer um governo de leis instituídas por manifestação da soberania popular em eleições livres e iguais. Por meio dessas incursões recessivas tem-se procurado recusar as virtudes da democracia representativa, que estaria em crise terminal num retorno às teses do constitucionalista da Alemanha hitlerista Karl Shmidt que destinava a interpretação da vontade popular a lideranças carismáticas, nisso que ora se designa como capitalismo iliberal, eufemismo com que se procura encobrir sua natureza autoritária.
A infestação dessa ideologia, que se aproveita das instituições democráticas para negar seus fundamentos, encontrou terreno propício em vários países ocidentais, incluindo os que deram nascimento à democracia representativa, como nos EUA de Donald Trump e no Reino Unido de Boris Johnson, afora outros casos nacionais, e há quem se esforce para importá-la para nosso país. Trata-se de um movimento em escala global com a pretensão de fazer a roda da história rodar para trás, animado em destruir a obra civilizatória que o Ocidente vem aprofundando desde a Renascença cujo lastro se encorpou com o Iluminismo e se encontrou com a forma política da democracia moderna.
Não há ineditismo nessa tentativa anacrônica, já a conhecemos pela amarga experiência dos anos 1930, em que os ideais civilizatórios souberam triunfar derrotando o fascismo. Dispomos, agora, embora em escala ainda embrionária, do embrião de uma sociedade civil mundial, tal como se evidenciou no levante da opinião pública, a juventude à frente, que rompeu com as fronteiras nacionais em defesa do meio ambiente ameaçado pelas queimadas na Amazônia, que alinha da extraordinária presença do Papa Francisco, grandes personalidades do mundo científico e cultural. Sobretudo contamos com o constitucionalismo democrático, que hoje inspira boa parte do Ocidente que institucionalizou freios e contrapesos ao exercício do poder, inclusive no Brasil da Carta de 88, impondo limites aos devaneios de um Trump e de Boris Johnson e de muitos dos seus replicantes.
A obra civilizatória tem quem a defenda no Congresso dos EUA, no Parlamento inglês, no Vaticano, na ONU, na opinião pública e nos partidos democráticos, como ora se manifesta no caso italiano.
A ordem cosmopolita ainda está fora do nosso horizonte, mas já se pode dizer, nas palavras de Anthony Giddens, que ela é uma utopia realista.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo PUC -Rio
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