quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Roberto DaMatta - Vendo de longe e de fora

- O Estado de S. Paulo

O novo revela a alma das coletividades. No Brasil, o novo remete a erros e ausências

O observador é um tradutor entre o olhar habitual, íntimo e absoluto de dentro, e a visada fria, cautelosa e distante, de fora. O olhar da casa implica fidelidade e amor. Já o ponto de vista da rua tem a moldura da lei que fundamenta a vida coletiva. Vivemos entre esses olhares que se interpenetram e segmentam. Quando a rua vira casa, há a corrupção onipotente e deslavada do “tudo é nosso” e do “está tudo dominado”, e quando a casa vira rua, há o congelamento dos despotismos sem atenuantes.

Descobrir quando os laços de família devem ser contidos relativamente aos elos públicos é exercitar-se no igualitarismo e na solidariedade da democracia, conciliando uma liberdade fraterna. A solidariedade que está ausente neste Brasil no qual testemunhamos um Executivo patologicamente agressivo, um Legislativo tendendo ao equilíbrio reacionário e um Judiciário defensivo dos seus privilégios.

Todo “fato novo” revela um aspecto pouco conhecido, desejado ou não, das estruturas elementares da vida cotidiana. “Fatos novos” são sinais de mudança ou, como falamos coloquialmente, de “fim de mundo”. De coisas não rotineiras que anunciam os estertores e a reconstrução de um modo de existência. Todo observador é, querendo ou não, um profeta ou um fofoqueiro porque olha o mundo de fora para dentro quando o trivial é observá-lo de dentro para fora.

O novo revela a alma das coletividades. No Brasil, o novo remete a erros e ausências. Em outros lugares, ele indica a necessidade de aprendizado. Em vez de culpa, erro e ressentimento (dos quais nós não seríamos culpados, pois o erro foi dos outros...), o novo surge como um caminho a ser trilhado por todos, já que todos somos atores (e autores) daquilo que é visto como vergonhoso ou negativo. Nas polarizações, um lado insiste em não ter culpa. Nelas, há a tentativa de exclusão de um lado e a óbvia inclusão do outro como responsável absoluto da novidade lida ou não como negativa.

Vejamos um exemplo. Quando o rei e a Corte portuguesa vieram para o Brasil em 1808, ficando do lado dos ingleses, a elite local ficou em dúvida sobre essa desmesurada novidade. Era maravilhoso o Rio de Janeiro virar a capital do reino de Portugal e Algarve, mas era também terrível ver Lisboa e o reino desintegrados e sem a Corte e o rei e, além do mais, invadidos pelos franceses. A um fato novo correspondiam dilemas e problemas. Penso que poucos países viveram etapas históricas com pouca ambiguidade como foram, apesar da Guerra Civil, os Estados Unidos, cujo espírito ideológico – pelo menos até agora – tem sido vencedor conseguindo ganhar mais do que perder.

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Quando adquiri consciência da vida e descobri fatos que me causavam confusão sofri, mas não desisti. Muito pelo contrário, busquei entrar na vida pelo lado de fora. Primeiro, pela religião, depois pelos livros – pela luz fraca, mas persistente, como diz Thomas Mann, do intelecto.

O mundo é duro e injusto. Não precisei de nenhum partido político ou ideologia para me ensinar o que a minha própria experiência já me havia duramente informado, a começar pelo fato de ser canhoto e ter sido estigmatizado pelos que haviam me fabricado e com os quais eu amorosamente vivia.

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Nem sempre se acusa por maldade ou atraso. Na maioria dos casos quem discorda e corrige o faz por cuidado. O significado emocional que leva à reação antecede a compreensão. Falamos uma língua sem saber e somente quando aprendemos outro idioma é que descobrimos o modo pelo qual nossa língua nos controla. O mesmo ocorre no nosso ambiente histórico e cultural. O político pensa que “faz política”, mas é justamente a “política” que o faz ou desfaz. Ele, a despeito de seus planos secretos, está sujeito às circunstâncias – à sorte ou ao azar de quem olha de fora...

Devemos desistir? Claro que não. Devemos assumir que somos parte de uma coletividade à qual podemos ser indiferentes e até mesmo traí-la, mas dela não escapamos. O básico para mudar não é distinguir-se ou assumir que há um “sistema imutável”, ou colocar a responsabilidade exclusivamente nos outros. É saber que papel desempenhamos nesse lugar que nos cabe, neste aqui e agora que nos obriga a enxergar de perto e, com ajuda do cronista, também de longe...

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