Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo discutem aventuras da alta finança
Por Diego Viana | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Ao se deparar numa livraria com um volume com “escassez”, “abundância” e “capitalismo” no título, um leitor talvez imagine se tratar de uma obra sobre como o sistema econômico gera ao mesmo tempo volumes cavalares de riqueza e uma terrível miséria. Encontrando esse volume em 2019, talvez espere algo sobre a escassez absoluta que desponta no horizonte de um mundo cujos recursos se esgotam rapidamente, como resultado da atividade que produz, justamente, abundância.
Na verdade, o termo que parece axial no título desponta raramente ao longo de “A Escassez na Abundância Capitalista”, dos economistas Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo. O tema aparece em filigrana nas discussões sobre as aventuras da alta finança na última década, que entregam um mundo menos democrático, com trabalho mais precário, uma juventude desencantada e a expansão monetária em todo o mundo que não consegue reativar a economia.
É uma obra difícil de classificar. A que leitor se destina? Para o público amplo, a riqueza de referências concentradas em pouco espaço e a densidade do texto configuram uma leitura árdua. Só nas primeiras 50 páginas, são brevemente glosados nomes do peso de Thomas Hobbes, Adam Smith, Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Hegel, Michel Foucault, Friedrich Hayek, Wilhelm Dilthey, Max Weber, Léon Walras, Jeremy Bentham, Theodor Adorno e Max Horkheimer, entre outros. Essa profusão de nomes também faz com que, a um público de especialistas, possa parecer um trabalho que sobrevoa temas importantes e atuais, sem penetrá-los.
Ainda assim, é possível identificar dois grandes movimentos. O primeiro situa os impasses do capitalismo contemporâneo no curso da modernidade, principalmente pelo ângulo da teoria. O pensamento econômico e o capitalismo são crias do Iluminismo, o que não significa que sejam paradigmas da ação esclarecida. Os autores apontam que, se a economia como disciplina surgiu para ser o braço teórico de uma classe emergente, é natural que se organize de modo a demonstrar as conclusões que já tinha desde o início.
O segundo movimento é a discussão do próprio capitalismo, sublinhando o peso que a finança sempre teve na evolução desse modo de produção. Em contraponto, vemos como as teorias econômicas hegemônicas negligenciaram o crédito e as finanças. Desenvolve-se uma discussão macroeconômica apoiada em Keynes, entremeada por um excurso sobre a moeda que chega a mencionar brevemente a volumosa filosofia do dinheiro de Georg Simmel.
Mais adiante, os autores recapitulam a história das crises financeiras, dando sustentação aos argumentos sobre a centralidade das finanças no capitalismo.
São repassados o caso das tulipas holandesas, a bolha dos mares do Sul, as flutuações do século XIX, a Grande Depressão, até chegar às crises dos anos 70 e 80, o tsunami que atingiu os emergentes, incluindo o Brasil, na década de 90 e a bolha da internet sob Alan Greenspan.
O leitor talvez se surpreenda, depois da profusão de autores elencados, ao se deparar, no título do último capítulo, com uma paráfrase de Leon Trotski. O revolucionário russo foi um crítico da ideia de que os fluxos de capital harmonizam as economias ricas e pobres. A expressão “desenvolvimento desigual e combinado” expressa a convivência de setores avançados e atrasados.
Os autores retomam a expressão para falar da globalização, em que a dominância financeira e a desregulação provocam instabilidade ao redor do mundo. Em paralelo, impõem aos países em desenvolvimento modos de inserção que ampliam as desigualdades de que falava Trotski. As advertências de Hyman Minsky para o papel das finanças são particularmente realçadas, em nova denúncia da negligência da economia “mainstream”.
O que mais faz falta a um livro com tantas referências é estabelecer com clareza o vínculo entre essa linha de argumentação e o primeiro movimento, que trata do surgimento da teoria econômica no coração do humanismo e do Iluminismo moderno. Por sinal, alguns autores evocados na primeira parte são os mesmos que sugerem um esgotamento do humanismo como período histórico e base da epistemologia.
Antes mesmo do curso de 1979 citado no texto, em 1966, com “As Palavras e as Coisas”, Foucault já lançava essa questão. Em 1947, Adorno e Horkheimer buscam mostrar como o próprio Esclarecimento traz consigo seu oposto, um obscurantismo destrutivo e mecanicamente racionalizado. Friedrich Nietzsche foi ainda mais precoce, já que martelou suas provocações no século XIX.
Hoje, em tempos de governamentalidade algorítmica, mudança climática e rentismo, as pistas lançadas no primeiro movimento poderiam, no segundo, ajudar a compreender a inserção da teoria econômica nessa moldura epistemológica fissurada da modernidade otimista. Explorar essas pistas talvez ajudasse a lançar luz sobre os problemas tratados nos últimos capítulos, para além da macroeconomia e das disputas de poder no capitalismo global.
“A Escassez na Abundância Capitalista”
Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo. Contracorrente e Facamp, 208 págs., R$ 44
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