- Folha de S. Paulo
Não existe incoerência entre PIB em crescimento e repressão em alta; é só ver a China
Um medidor da qualidade da água de um rio mede apenas a água que passa por ele e, se o faz com precisão, cumpre bem sua função. Ninguém esperaria que seus números refletissem também o nível de desemprego no país, a desnutrição infantil ou a chance de o país entrar em guerra.
Indicadores econômicos e números do mercado financeiro seguem a mesma lógica: nos informam acerca de um recorte da realidade, e só. Se a bolsa bate novos recordes, significa que os investidores estão otimistas com o desempenho futuro das empresas ali negociadas, não da seleção de futebol ou da democracia brasileira.
Em última análise, o desempenho das empresas depende do comportamento dos consumidores e outros participantes do mercado. Você vai mudar seu consumo, deixar de comprar leite ou carne, por causa do discurso nazista do ex-secretário da Cultura? Vai pedir demissão do seu emprego? O governo também não mudará seus gastos e nem sua arrecadação. Assim, por mais que a agenda cultural aponte para um retrocesso das artes, não há motivo evidente para que isso devesse gerar queda na bolsa ou alta da taxa de câmbio.
Quando Bolsonaro desferia ataques gratuitos a Rodrigo Maia durante as negociações da reforma da Previdência, suas falas podiam ter impacto na reforma e, portanto, no futuro das contas públicas. Foi pelo potencial de impacto econômico, e não pelo absurdo político, que as falas de Bolsonaro tiveram impacto no câmbio naquele caso.
Não faz sentido criticar indicadores econômicos em termos éticos, porque eles não têm como medir a ética. O que faz sentido, aí sim, é criticá-los em termos econômicos. O profissional do mercado financeiro é tão irracional quanto o restante da espécie humana, e dado aos mesmos vieses intelectuais. E não é segredo para ninguém que muitos (não todos) são fãs do governo Bolsonaro e de Paulo Guedes.
Talvez a torcida exagerada explique por que, em janeiro de 2019, o boletim Focus previa crescimento próximo de 2,5%. Ao fim do ano, as projeções haviam se reajustado para 1,1%. A simpatia pelo governo pode levar a desconsiderar os riscos do flerte autoritário para a estabilidade econômica do país (assim como antipatia pode levar a superestimá-los). “O mercado” —substantivo enganoso, pois se refere a milhares de agentes independentes e que muitas vezes discordam entre si— já errou muitas vezes e pode errar agora. Para os críticos, é uma oportunidade de ouro: se o mercado está erroneamente otimista, é o momento de apostar contra e faturar alto.
Não existe incoerência nenhuma entre PIB em crescimento e repressão em alta. É só ver a China. Isso não significa que investidores não se importam com a democracia ou com o social. Significa que, seja qual for o regime, as pessoas continuarão consumindo e buscando emprego. O crescimento do PIB —ou os índices da Bolsa— nada nos diz sobre diversos fatores essenciais de uma boa sociedade: distribuição de renda, preservação ambiental, felicidade, qualidade da democracia. É possível a economia crescer enquanto a Amazônia queima? Sim. E enquanto o presidente flerta com a ditadura? Também.
Se um governo nazista limpasse um rio, o medidor da qualidade da água registraria melhora, e isso não diria nada sobre todas as outras coisas que importam. Não adianta se indignar com indicadores por fazerem seu trabalho. Só tenha em mente que a realidade é muito mais ampla do que qualquer um deles.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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