- Folha de S. Paulo
Vídeo de ex-secretário gera reações de júbilo que nos distraem da missão política de desarmar o bolsonarismo
Vivemos uma espécie de paradoxo. Crise após crise ficamos apavorados com o futuro da democracia no Brasil. Mas não estamos propriamente reagindo. É verdade que nos indignamos, mas é uma mistura de indignação com inação. Assistimos a tudo chocados, revoltados, porém, apáticos.
Em artigo na revista Piauí, Marcos Nobre descreveu assim o paradoxo: “Mesmo quem considera que a situação é gravíssima age como se estivéssemos diante de um governo normal. Há um descolamento flagrante entre repetir à exaustão que a democracia está em risco e a ausência do sentido de urgência que deveria acompanhar essa constatação”.
Por que estamos desorientados, sem qualquer capacidade de reação efetiva? Nossa única reação parece ser a de nos indignar e culpar a parcela de eleitores que elegeu e agora apoia Bolsonaro. É como se o reforço de nossa identidade funcionasse como substituto da ação política. Somos, ao que parece, reféns de identidades políticas hipertrofiadas.
Muitos não esconderam o júbilo quando as referências conceituais e estéticas do vídeo de Alvim emergiram. É nazismo! E, se é nazismo, somos antinazistas, e se somos antinazistas, estamos, mais do que nunca, do lado certo da história.
Mas seria suficiente o reconhecimento de estar do lado certo da história e ter as credenciais morais corroboradas? O que fazer com o fato de que o governo foi democraticamente eleito, que um terço dos eleitores o apoia e que Bolsonaro pode muito bem ser reeleito?
Há uma contradição entre a dinâmica de afirmação da identidade e a missão política de consertar o país.
Nossas identidades são relacionais: quanto mais monstruosos vemos os adversários, mais virtuosos nos percebemos. Cada grau de aparente ou real degradação do bolsonarismo aumenta nosso sentimento de virtude moral. Por isso, revelações como a do vídeo de Roberto Alvim geram júbilo e gozo que nos contentam e nos distraem da urgência de uma ação efetiva.
Para encarar o problema, seria preciso desarmar a dinâmica relacional de identidades retroalimentadas. Cada vez que reafirmamos o antifascismo, os bolsonaristas reafirmam seu antiesquerdismo.
É preciso entender por que um terço da população apoia Bolsonaro, escutar respeitosamente as demandas desses concidadãos e oferecer respostas a elas. Para afastar de vez o perigo, precisamos nos aproximar de quem sustenta esse governo, e, para isso, é preciso pendurar no cabide a prepotência e a arrogância esquerdistas. Não dá mais para gozar com cada passo que damos em direção ao abismo.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
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