Cientista político que cunhou o termo presidencialismo de coalizão avalia que presidente ignora o modelo e vai ao centrão 'em busca de imunidade'
Guilherme Magalhães | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - Referência na análise do sistema político brasileiro pós-redemocratização, marcado pelo que chamou de presidencialismo de coalizão, o cientista político Sérgio Abranches, 70, avalia que o modelo não acabou com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
O presidente, porém, "tem desconsiderado as regras do modelo", escreve Abranches em seu novo livro, "O Tempo dos Governantes Incidentais", recém-lançado pela Companhia das Letras.
Para ele, que posiciona Bolsonaro sob o pano de fundo da ascensão de líderes populistas em diversos países em uma década de vertiginosas mudanças socioeconômicas, esse tipo de governante é efêmero, o que não significa que não cause estragos por onde passa.
• A aproximação de Bolsonaro em direção aos partidos do centrão indica que o presidente passou a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão?
Não, porque o presidencialismo de coalizão é um modelo transacional. Há uma troca entre governo e Legislativo no sentido de uma certa transferência de poder do Executivo não para o Legislativo, mas para os membros da coalizão. E ele tem uma vocação majoritária, é uma busca de uma aliança para poder governar.
No caso do Bolsonaro, ele foi na direção do Congresso em busca de imunidade, quando se sentiu ameaçado pela questão do impeachment, pelo processo da "rachadinha".
Agora, na verdade, ele está fazendo uma transição do modelo autocrático voluntarista para um modelo autocrático populista. Por isso ele está lançando a extensão do auxílio emergencial. Isso ele descobriu por acaso, teve que aceitar o auxílio emergencial forçado pelo Legislativo. Aí viu como oportunidade capturar o auxílio para ele, e ao ver o impacto disso na popularidade, resolveu prolongar.
Mas ele caiu numa armadilha, porque de um lado, para manter esse grau de satisfação que ele conseguiu com o auxílio, tem que manter no mesmo plano para que não haja perda de renda real. Mas tem uma limitação fiscal, ele tem que arrebentar o teto de gastos e se desavir com uma parte do Congresso e com o mercado financeiro que o sustenta.
• A última pesquisa Datafolha apontou que Bolsonaro está com a melhor avaliação desde o início de seu mandato. Como o sr. avalia essa queda na rejeição ao presidente?
Claramente Bolsonaro se beneficiou do auxílio emergencial e está se beneficiando dessa naturalização da doença [Covid-19]. Os EUA estão discutindo a ameaça existencial à democracia que o Trump representa, e aqui estamos sob a mesma ameaça existencial, tanto da democracia como do nosso modo de vida, e a gente não reage da mesma forma. Não há o nível de indignação e mobilização e acho que nem a mesma clareza das lideranças.
Estava vendo na coluna do Conrado [Hübner Mendes], ele discutindo esse papel da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República e do Ministério da Justiça na questão do dossiê antifascista.
Todos os três fugiram da finalidade das suas instituições. E essa é a maneira pela qual esse novo autoritarismo se firma, carcomendo por dentro as instituições de freios e contrapesos e aumentando o poder discricionário do presidente. Vamos ter de pensar remédios para isso.
Essa é a questão fundamental do Brasil. A gente ainda não se deu conta de que tem coisas anormais demais acontecendo, ameaçando a sociedade brasileira, o padrão de convivência minimamente civilizado que a gente estava construindo, ainda com todos esses problemas que eu falei, e a nossa democracia.
• Neste mês, o ministro Dias Toffoli passa o comando do STF a Luiz Fux. Qual o legado que Toffoli deixa e o que esperar da nova gestão?
O Toffoli deu um péssimo exemplo de como ser presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele se envolveu com os chefes do Poder Legislativo e Executivo para fazer pacto de políticas públicas, algo absolutamente impensável pro chefe do Poder Judiciário.
Ele vai analisar a constitucionalidade das políticas públicas. Não pode autocraticamente dar um aval, não pode assinar em nome dos outros dez ministros do Supremo um pacto em favor de coisa nenhuma, a não ser a favor da democracia e da Constituição.
O presidente do Supremo tem que manter uma certa distância cerimoniosa dos chefes dos outros Poderes. Não é que ele deve ser adversário ou não ter uma relação cordial ou não comparecer a cerimônias oficiais, nas quais o protocolo diz que os chefes dos Poderes devem estar juntos. Agora, posse banal de ministro do Executivo, coisa em quartel, não faz o menor sentido.
Toda democracia precisa de um certo grau de formalismo. Ela requer certas formalidades. O presidente da República não pode atravessar uma rua e se sentir bem recebido, como amigo, na posse de um procurador-geral da República.
Um procurador-geral da República não pode sair da sede da Procuradoria e fora da agenda, à noite, ir visitar um presidente para conversar sobre assuntos que ninguém fica sabendo quais foram. Isso aconteceu entre a Raquel Dodge e o Temer, não é só o Augusto Aras. O Aras entrou pela porta dos fundos, é um caso muito pior.
Imagino que o Fux vá ter um comportamento mais afastado do Executivo porque ele tem mais experiência de magistratura do que o Toffoli. O Toffoli era um advogado político que virou ministro do Supremo.
• Enquanto isso, Bolsonaro vem dando sinais de que pode reatar com seu antigo partido, o PSL, depois do fracasso da tentativa de reunir o bolsonarismo no guarda-chuva da Aliança pelo Brasil. É puro pragmatismo tendo em vista a eleição municipal e o fundo eleitoral do PSL ou o sr. enxerga algo mais nisso?
A motivação principal é grana, é o dinheiro do fundo, e as eleições municipais. Porque, na verdade, essa é a primeira eleição que efetivamente o PSL vai disputar. Ela que vai definir se ele vai virar partido ou não. Porque até hoje ele é uma casca improvisada, inchado.
A gente já viu isso. O PRN do Collor inchou e desinchou rapidamente. Claro que a gente está num processo de realinhamento partidário, as bancadas perderam tamanho. Mesmo o PT, que ficou com a maior bancada da Câmara dos Deputados, é metade do que já foi.
Todos os partidos estão em teste. Os tradicionais têm que mostrar que têm capacidade de renovação, de revitalização. E os novos têm que demonstrar capacidade de permanência. Dos novos o que tem mais que provar é o PSL, inclusive por isso, foi do Bolsonaro, deixou de ser do Bolsonaro, volta a ser do Bolsonaro.
• O sr. argumenta que a onda populista já começou a perder força em alguns países europeus porque é inevitável que os eleitores que os elegeram se frustrem ao longo do caminho. Mas para a democracia emergir revigorada é preciso que, nesse refluxo, alguma inteligência política seja capaz de recentralizar o sistema. O sr. enxerga sinais dessa inteligência no horizonte brasileiro num eventual refluxo do bolsonarismo?
Por exemplo, o Partido Democrata dos EUA. O fato de lideranças muito jovens, como a Alexandria Ocasio-Cortez, e outras já experimentadas, como o Bernie Sanders, da esquerda do partido, se unirem para dizer o seguinte: desta vez a gente precisa de um cara como o Joe Biden, porque a gente precisa unir conservadores, moderados e progressistas contra essa ameaça à democracia americana.
Isso não tem aqui no Brasil. Acho que essa inteligência tem. Há lideranças jovens, inclusive no Congresso, que têm essa visão, que o Brasil precisa parar de ficar brigando brigas velhas e olhar para frente.
Parar de fazer política pelo retrovisor, como a gente tem feito desde sempre. A gente fez a Constituição de 1988 olhando para o retrovisor, para evitar o retorno do autoritarismo. Era preciso que alguém olhasse mais para frente, mas tinha a hiperinflação. A gente tinha que resolver esse legado.
A gente vem suprindo os déficits do passado, lutando contra a parte negativa do nosso legado, e deixando de olhar para frente. Enquanto isso o mundo foi mudando de forma vertiginosa. Agora estamos com um dilema na mão. Continuamos com os passivos, porque não fomos capazes de resolver nenhum deles, exceto talvez a inflação. E mesmo a democracia estamos vendo que não.
Estamos com o desafio de construir um Brasil que seja viável no século 21 e esse desafio é grave demais para não termos nenhuma liderança entre as mais experimentadas do país com clarividência para ver que está na hora de buscar essa inteligência na sociedade brasileira.
Isso que me espanta. Não ter lideranças com essa visão de que o futuro já está aqui e ele não é uma coisa que chega e a gente adere, é uma coisa que a gente constrói. E não é fácil construir um futuro num mundo que está mudando tão radicalmente quanto este. Um futuro com paradigmas novos e a gente ainda não conseguiu se libertar dos problemas velhos. É um grande desafio e me angustia muito, não vejo nenhuma liderança com essa visão.
RAIO-X
Sérgio Abranches, 70
Nascido em Curvelo (MG), é cientista político, sociólogo e escritor. Autor de, entre outros, "A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século 21" e "Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro", ambos publicados pela Companhia das Letras
O TEMPO DOS GOVERNANTES INCIDENTAIS
• Preço R$ 69,90 (304 págs.) e R$ 39,90 (ebook)
• Autor Sérgio Abranches
• Editora Companhia das Letras
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