- Correio Brasiliense, 31/agosto/2020
Surpreende-nos, mais uma vez, Ariano Suassuna, depois do interregno que foi a sua exitosa e longa cruzada com as aulas-espetáculo, que divertiu e mobilizou o país de norte a sul – e da publicação póstuma do prometido Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017) – com a descoberta recente deste “novo” rebento de sua lavra, O Sedutor do Sertão, que só recentemente veio a lume, em requintada brochura também da Editora Nova Fronteira. É o resultado de providencial descida aos baús do grande criador, realizada com o aval do condomínio de herdeiros de Ariano pelo crítico e professor Carlos Newton Júnior, que também é o autor de judiciosa e brilhante apresentação do volume.
A obra faz jus, como era de se esperar, à descomunal imaginação criadora do autor de A Compadecida, de uma infinita capacidade de absorver o espírito das fábulas do romanceiro popular nordestino de onde saltam, luminosas, a astúcia e a graça do sertanejo na sua luta tenaz para sobreviver. Mas de uma forma tão candente que a transposição eleva e sublima a ação de seus personagens, tal como vemos em seu teatro e também em seus romances encabeçados, sobretudo, por A Pedra do Reino, que já nasceu clássico como sabemos. O que nos faz rir e pensar simultaneamente.
Quem se divertiu com as proezas de João Grilo e Chicó naquela peça, inclusive na sua versão para o cinema, vai se fartar de rir com as rocambolescas aventuras pícaras desse impagável Malaquias Pavão, o tal sedutor, “aguardenteiro, conquistador, folheteiro e cambiteiro”, imbatível rei da simpatia nas relações com outros homens ou com o mulherio de maneira geral. Aliás, o livro pode ser, por seu humor contagiante, um bálsamo que nos vem socorrer bem a propósito, nessa quadra de tão penosa travessia em vista do coronavirus.
A prosopopeia desse sujeito estradeiro, capaz de enganar até o diabo, se passa nas terras que vão do sertão ao brejo, na Paraíba, típicas paisagens do Nordeste, lembrando, em muito, e guardadas as proporções, os lances da cavalaria decadente do Dom Quixote de Cervantes, uma das inegáveis influências de Suassuna. Não à toa, Pavão se faz acompanhar de seu fiel estribeiro, Miguel Biôco, “baixo, careca, meio estrábico”, para cuidar de seu cavalo Rei de Ouro. Isso tudo em pleno cenário e no desenrolar da Revolta de Princesa, uma briga entre o coronel Zé Pereira e o presidente (como eram chamados à época os governadores) João Pessoa, que se antecipou à Revolução de 30, deflagrada a partir da morte deste último, como é sabido.
É esta peça rara que tenho sob meus olhos, porém em sua forma original, um manuscrito datilografado em tipos hoje borrados, sob o amarelo que a passagem do tempo marcou. Guardo-o como preciosa relíquia em meus arquivos, porque me foi passado, em 1969, por Marcus Odilon Ribeiro, dublê de escritor e usineiro, amigo dileto, que pretendia transformá-lo num roteiro cinematográfico e produzir o filme dele resultante. Com o passar do tempo, o projeto foi sendo adiado e terminou por ser esquecido no longo período de vacas magras para o cinema brasileiro.
Não obstante, A Compadecida, a obra maior de Suassuna no teatro ter sido adaptada para o cinema pelo húngaro Georges Jonas (1969), que fez fortuna como publicitário em São Paulo, não obteve o êxito esperado. O gringo era incapaz de perceber o mínimo que fosse da cultura brasileira em geral, quanto mais da cultura nordestina. Mais fácil seria o mar secar ou uma baleia emergir das parcas águas de um açude no sertão.
Uma outra versão, muito melhor resolvida, foi a de Roberto Faria (1987), talvez o maior diretor-artesão do nosso cinema, no que pese o caráter estritamente circense que emprestou à sua realização, protagonizada pelos Trapalhões e conquistando grande parte do público. Entretanto, o sucesso mais retumbante viria pelas mãos de Guel Arrais (2000), tanto no cinema como na televisão. Senhor absoluto do tema, o pernambucano soube captar a essência dramatúrgica, o humor e o espírito universal do texto.
Afinal o nosso Ariano foi mestre dos mestres no seu ofício, como prova a genialidade deste O Sedutor do Sertão agora disponível. Não existe em nossa cultura dois Ariano Suassuna. Quem inventou o primeiro perdeu ou esqueceu a fórmula mágica.
*Vladimir Carvalho, Professor Emérito da Universidade de Brasília, jornalista e cineasta
Nenhum comentário:
Postar um comentário