Na
obra do escritor, os políticos lusos nada devem aos nossos
Eu
li Eça de Queiroz (1845-1900). Atravessei com gosto “O crime do Padre Amaro”,
“Os Maias” e “O Primo Basílio”.
Tomei
essas obras como espelhos do viés português de dar sentido à vida. Um grande
pessimismo, um toque profundo de autorrejeição; um mal-estar sem
arrependimentos ou punições, relativamente às transgressões e aos tabus
perpetrados pelos protagonistas, como é o caso do rompimento do voto de
castidade, da indução ao aborto e do abandono da vítima em “O crime do Padre
Amaro”; e da paixão incestuosa dos irmãos nos “Maias”. Nesses livros, e em
especial no “Primo Basílio”, há também a reversão não intencional e irônica de
atos realizados com óbvias intenções.
Traço
de um grande escritor e, ousaria dizer, da dimensão que, na ficção europeia,
surge ao avesso do pensamento acadêmico, um pensamento em que os determinismos
evolucionistas são dominantes e definitivos. O pensamento revolucionário de
Comte, Darwin, Marx, Morgan e Engels, vale notar, situa-se no mesmo horizonte
histórico dessas obras de Eça de Queiroz,
Na
ficção, apreciamos as tramas, mas não sabemos o resultado em que seus
personagens se meteram; ao passo que, nos evolucionismos de cunho biológico ou
histórico, tudo seria previsto. O que é transgressão na literatura seria
revolução ou etapa na sociologia, na economia e na ciência política. Enquanto
os romances podem terminar no vácuo de uma ausência de sentido, as teorias
socio-históricas anunciam a evolução da Humanidade...
Voltando
ao Eça, “O Primo Basílio” foi o livro que mais me impressionou, não somente
pelo triângulo adúltero entre Basílio, Luísa e o marido, Jorge; mas pela
irônica redefinição dos elos entre Luísa (como dona da casa) e a sua empregada,
Juliana, que, interceptando um bilhete trocado entre Basílio e Luísa, inverte o
seu papel e obriga a patroa a fazer serviços domésticos. Há uma dupla inversão:
a de Luísa, Basílio e Jorge; e a de Juliana, Luísa e Jorge. Uma dubiedade
fundada em elos morais semelhantes aos do padre traidor dos votos de castidade
e, nos Maias, aos do incesto de Carlos com sua irmã.
Votos
e tabus são rompidos, indicando uma dubiedade que confunde códigos da casa com
os da rua. Na obra de Eça, os políticos lusos nada devem aos nossos em má-fé e duplicidade
moral. Faz parte da aguda visão de Eça essa confusão moral do lado pessoal com
a dimensão coletiva dos cargos que ocupam.
Estamos
sofrendo isso à exaustão no Brasil e no Rio de Janeiro, onde um sujeito é
eleito num dia e impichado no outro. Vivemos também a intolerância de um
presidente da República irascível, que recusa a pergunta de um jornalista
ameaçando (esquecido da dignidade do seu cargo) arrebentar-lhe a boca.
É
impossível saber o que Eça de Queiroz diria desse nosso mundo ultracontaminado.
Uma
frase a ele atribuída — segundo a qual políticos e fraldas devem ser
periodicamente trocados pelas mesmas razões — aplica-se como uma luva a este
Brasil que, infelizmente, Bolsonaro não deixa que fique acima dele.
Há
inúmeros políticos na obra de Eça de Queiroz. O mais popular é o Conselheiro
Acácio — que, com seus discursos “acacianos”, formais e banais, ao lado de sua
pompa narcisista, surge às pencas no Planalto e nos seus lamaçais. A melhor
fabulação do escritor luso sobre a natureza desses tipos, sobre caráter
ambíguo, “malandro” e esperto dos políticos vai nesta parábola:
“O florista foi ao barbeiro. Após o corte,
perguntou o valor do serviço, e o barbeiro respondeu:
—
Não posso aceitar seu dinheiro porque estou prestando serviço comunitário esta
semana.
O
florista ficou feliz e foi embora.
No
dia seguinte, quando o barbeiro abriu a barbearia, havia um buquê com uma dúzia
de rosas na porta e uma nota de agradecimento do florista.
Mais
tarde, no mesmo dia, veio um padeiro. Após o corte, ao pagar, o barbeiro disse:
—
Não posso aceitar seu dinheiro porque estou prestando serviço comunitário esta
semana.
O
padeiro ficou feliz e foi embora.
No
dia seguinte, quando o barbeiro abriu a barbearia, havia um cesto com pães e
doces na porta e uma nota de agradecimento do padeiro.
Naquele
terceiro dia, veio um deputado para um corte de cabelo. Novamente, ao pedir
para pagar, o barbeiro disse:
—
Não posso aceitar seu dinheiro porque estou prestando serviço comunitário esta
semana.
O
deputado ficou feliz e foi embora. No dia seguinte, quando o barbeiro veio
abrir sua barbearia, havia uma dúzia de deputados fazendo fila para cortar
cabelo.
Essa é a diferença entre os cidadãos e os políticos.”
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