Proposta de expandir Bolsa Família
esbarra na lei e revela dificuldade política do governo
Até a campanha eleitoral de 2018, Jair Bolsonaro
nunca escondeu seu desprezo pelo Bolsa Família. Quando deputado, chamava o
programa de “compra de votos mesmo”, dizia que tornava os beneficiários
“eleitores de cabresto” do PT. Agora que o cabresto passou para a mão direita —
e ele sentiu o gostinho da popularidade trazida pelo auxílio emergencial na
pandemia —, expandir o Bolsa Família para criar o Renda Cidadã se tornou sua
prioridade no Congresso.
A proposta de perpetuar o auxílio — numa faixa
imaginada em torno de R$ 300 a pelo menos 20 milhões — furou a fila da reforma
tributária e se transformou segunda-feira no mais novo fiasco protagonizado
pelo Executivo, em parceira com sua base parlamentar movediça. O motivo é
simples, conhecido há meses e incontornável: falta dinheiro.
A engenharia orçamentária apresentada para criar o
Renda Cidadã tira recursos de três fontes: o próprio Bolsa Família (R$ 35
bilhões), o Fundeb (do fundo destinado à educação, o governo propõe extrair até
5%, algo como R$ 8 bilhões) e o adiamento de pagamento de precatórios (que
seria honrado apenas até 2% da receita líquida, liberando outros R$ 39
bilhões). Fora os recursos do próprio Bolsa Família, as outras duas fontes são
para lá de problemáticas.
Como o Fundeb não está incluído nas despesas
sujeitas ao teto de gastos, tirar recursos dele é uma manobra evidente para
driblar a lei. Uma emenda constitucional poderia mudar a regra. O problema,
como diz o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas, é o
“significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável”. O
próprio Congresso, ao aprovar o Fundeb em caráter permanente, rejeitou as
tentativas do governo para usá-lo em seu novo programa social. Na prática, a
proposta agora é fazer exatamente o que Bolsonaro disse não querer: tirar
dinheiro dos pobres — que se beneficiam dos recursos na educação — para dar aos
paupérrimos.
Quanto aos precatórios, o problema é ainda pior. Há
entendimento pacificado no Supremo, para estados e municípios, que configura a
manobra como “pedalada”. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige que, para criar
nova despesa, o governo corte outra ou aumente a receita. A proposta não faz
nem uma coisa nem outra, só adia pagamentos devidos por lei. A OAB chamou-a de
inconstitucional, falou em “calote” e “insegurança jurídica”. É previsível a
enxurrada de contestações na Justiça.
Haveria alternativa para financiar o novo programa?
Na análise da Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado, seria possível
dobrar os recursos do Bolsa Família cortando subsídios, programas sociais
ineficientes (como abono salarial ou seguro-defeso) e reduzindo salários e
jornadas do funcionalismo. Nenhuma dessas brigas políticas o governo se dispôs
a comprar.
O episódio demonstra, mais uma vez, a dificuldade
política do Executivo para pôr em prática um plano consistente na economia. É
preocupante, sobretudo, a prioridade ao Renda Cidadã, de caráter eleitoreiro,
em detrimento da reforma tributária, urgente e necessária para resgatar o
crescimento.
País precisa de governança mais eficaz para
proteger meio ambiente – Opinião | O Globo
Legislação que protegia restingas e
manguezais, revogada pelo Conama, deveria ser restabelecida
Inepto e negligente
na preservação dos biomas, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem se
revelado eficiente na estratégia deletéria de fazer “passar a boiada” sobre as
normas ambientais, enquanto a atenção da sociedade se volta para a pandemia do
novo coronavírus. A manobra, explicitada sem pudores na conturbada reunião
ministerial do dia 22 de abril, ganhou nova vida na segunda-feira, quando
Salles levou o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), presidido por ele,
a revogar duas resoluções que restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas
de restingas e manguezais. O desmonte da legislação abre caminho para
empreendimentos turísticos e imobiliários. Por ora, os efeitos da medida estão
suspensos por uma liminar concedida ontem pela Justiça Federal do Rio.
Não foi difícil a
Salles impor a derrota ao meio ambiente. No ano passado, o governo Bolsonaro
esvaziou o Conama, reduzindo a participação da sociedade civil e ampliando os
poderes do Executivo no conselho. Na “reestruturação” do principal órgão
consultivo do Ministério do Meio Ambiente, o número de assentos destinados à
sociedade caiu de 22 para quatro. A presença do governo federal aumentou de 29%
para 41%. Qualquer resquício de independência ficou pelo caminho.
O retrocesso não
pode prosperar. Por isso, é bem-vinda a iniciativa de parlamentares, que
apresentaram projetos de decreto legislativo para derrubar a decisão do Conama.
Multiplicam-se também ações populares — uma delas obteve a liminar na Justiça
que suspende as resoluções. De um governo que nega de forma tosca a existência
de queimadas e desmatamentos, não se pode esperar atitude diferente. Da
sociedade e das instituições, vem a esperança de que essas decisões de alto
poder destrutivo possam ser revertidas.
A boiada das
restingas e manguezais tornou evidente uma deficiência da legislação brasileira
de proteção ambiental. Sob o pretexto do desenvolvimento econômico, o governo
tem desmantelado, com o apoio dos militares, toda a estrutura de preservação
que depende do Executivo (Conama, Ibama, ICMBio). Tentou intervir até no
monitoramento por satélite do Inpe, cujos dados sobre queimadas e desmatamento
costuma incinerar em praça pública. É um claro incentivo à destruição da
Amazônia e do Pantanal, cujo preço o agronegócio brasileiro já paga no exterior.
A situação mostra
que o país precisa de outro tipo de governança para garantir um futuro
sustentável. É louvável a iniciativa do Congresso para derrubar a decisão do
Conama via decreto legislativo. Poderia ir além disso. A responsabilidade
ambiental deveria, a exemplo da fiscal, estar protegida na lei, para evitar
absurdos como as boiadas regulatórias.
A
chanchada da Renda Cidadã – Opinião | O Estado de S. Paulo
O arranjo defendido por Jair Bolsonaro, por seus aliados e pelo
ministro Paulo Guedes é apenas uma coleção de remendos de baixíssima qualidade
Calote,
pedalada, burla, drible e contabilidade criativa foram algumas das palavras
mais ouvidas, no mercado, quando se anunciou a fórmula escolhida para financiar
a Renda Cidadã, a nova bandeira eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. A
imprensa também registrou avaliações como “calote temporário” e “medida
estarrecedora”. Conhecida a proposta, o dólar chegou a R$ 5,67, um novo
recorde, revertido quando o Banco Central entrou no jogo vendendo moeda
americana. A Bolsa deixou a coreografia internacional e encerrou o dia com um
tombo de 2,41%.
A
proposta assustadora foi anunciada depois de uma reunião do presidente, no
Palácio da Alvorada, com parlamentares aliados e ministros, incluído o da
Economia, Paulo Guedes. O apoio de Guedes ao esquema demonstra a função real,
no atual governo, de um Ministério para assuntos econômicos: cumprir ordens,
sem levar em conta prioridade, conveniência econômica e financeira e até
critérios de responsabilidade fiscal.
A
fórmula para acomodar o novo programa social, substituto do Bolsa Família, é
uma combinação perversa de dois truques. Em primeiro lugar, pagamentos
previstos de precatórios podem ser limitados, isto é, reduzidos. Em segundo,
uma parcela do Fundeb poderá ser convertida em Renda Cidadã. Este componente,
se aceito, pode proporcionar uma vantagem especial, por ser isento do teto de
gastos. O teto limita o aumento da despesa à inflação tomada como baliza da lei
orçamentária.
Calote
ou ameaça de calote, a ideia de reduzir o pagamento de precatórios foi
criticada pelo ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, por
políticos, por investidores do mercado e por especialistas em contas públicas.
Precatórios correspondem a dívidas do governo reconhecidas pela Justiça. São
obrigações financeiras vinculadas a ordens judiciais. Limitar seu pagamento
corresponde, em primeiro lugar, a uma escolha de quem terá prioridade no
ressarcimento. Isso envolve questões de decência. Envolve também problemas de
legalidade.
A
questão da moralidade é evidente, mas adiar o pagamento, nesse caso, pode ser
também um crime de responsabilidade, análogo às pedaladas do segundo mandato da
presidente Dilma Rousseff, como observou o economista Carlos Kawall, diretor da
Asa Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional. No caso da presidente
petista, a violação da lei motivou um processo político encerrado com impeachment,
isto é, com perda do cargo.
Igualmente
indefensável é o uso de recursos do Fundeb para financiar a Renda Cidadã. A
tentativa de usar esse fundo para burlar o teto de gastos já havia sido
rejeitada pelo Congresso. Além da manobra para romper o limite, haveria um
claro desvio de finalidade de uma importante fonte de financiamento
educacional. Mas a fórmula envolve outras importantes questões legais.
Para
criar um gasto permanente, o poder público deve encontrar uma fonte permanente
de receita ou eliminar, também de forma duradoura, alguma despesa de montante
compatível com a nova necessidade. Nenhuma dessas condições se verifica. Adiar
o pagamento de precatórios apenas empurra a despesa com a barriga, sem
eliminá-la, como observa o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente
(IFI), Felipe Salto. É fácil perceber esse fato mesmo sem o auxílio de um
especialista em contas públicas.
Meter
a mão no Fundeb também pode proporcionar apenas uma solução temporária, fora do
padrão da Lei de Responsabilidade Fiscal. O arranjo defendido pelo presidente,
por seus aliados e pelo ministro da Economia é apenas uma coleção de remendos
de baixíssima qualidade, digna de malandragens das velhas chanchadas.
Chanchadas, no entanto, podiam ser divertidas, eram inofensivas e envolviam competência técnica e artística. Nenhuma dessas qualidades aparece na fórmula para financiar a bandeira eleitoral do presidente Bolsonaro. “O Brasil é um país sério”, disse o ministro Guedes, tentando defender o indefensável. Seria bom se o Executivo também mostrasse alguma seriedade ao cuidar da economia e do dinheiro público.
O
lado sombrio da pandemia – Opinião | O Estado de S. Paulo
Com a perda de renda, é como se a vida tivesse andado dez anos
para trás
Muito
poucas pessoas conseguiram escapar dos efeitos da pandemia do novo coronavírus
sobre a renda. Mesmo a parte dos brasileiros que conseguiram manter sua
ocupação durante a crise sanitária, iniciada na segunda metade de março, sentiu
algum impacto sobre seus rendimentos da redução ou até a paralisação de muitas
atividades econômicas em decorrência do avanço da covid-19. Mas esse impacto,
como mostrou reportagem do Estado, apresenta uma característica perversa, que
dá um tom ainda mais sombrio ao ambiente social e econômico do País. Os que têm
escolaridade mais baixa, e por isso têm rendimento médio também menor, perderam
proporcionalmente mais renda do que outras faixas de trabalhadores.
Deve
ter se ampliado nos últimos meses o fosso que separa as camadas de menor renda
das que conseguem obter rendimentos mais elevados. Estudo do Banco Mundial
mostrou que os brasileiros que compõem a faixa dos 40% mais pobres do País, e
que somam 85 milhões de pessoas, já não conseguiam recuperar a fatia de renda
que vinham perdendo desde 2014, no início da crise provocada pelos desmandos
econômicos e fiscais do governo lulopetista de Dilma Rousseff, e, no início da
pandemia, devem ter perdido ainda mais espaço na renda nacional. O pagamento do
auxílio emergencial – de R$ 600 no início e hoje de R$ 300 – decerto
interrompeu ou retardou esse processo. Mas há muita incerteza sobre a condição
dessas pessoas a partir de janeiro do ano que vem, quando o auxílio deixará de
ser pago na forma atual e será substituído por outro, ainda sendo desenhado
pelo governo.
Com
base em números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid-19,
que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) passou a calcular
para aferir o impacto da pandemia sobre a condição de vida das famílias, a
consultoria IDados constatou que, no primeiro semestre deste ano, os
trabalhadores que não completaram o ensino médio tiveram perda de até 25% de
sua renda em relação à sua remuneração habitual anterior à crise. Já a maior
perda média entre pessoas ocupadas com curso superior completo ou pós-graduação
não passou de 14%.
Entre
maio e junho, os trabalhadores sem nenhuma instrução ou com ensino fundamental
incompleto chegaram a perder R$ 431 por mês, valor que tem grande peso na
receita usual desse grupo de pessoas e representa 40% de um salário mínimo.
“Este
é o lado sombrio de toda a crise econômica”, avalia o economista Matheus Souza,
do IDados. “Quem estudou menos é mais vulnerável no mercado de trabalho”,
completou. Mais grave ainda é o fato de que as pessoas de menor escolaridade
são as que mais dependem da renda do trabalho para sobreviver.
A
diferença da perda de renda por nível de escolaridade começou a diminuir, mas,
em julho, último mês para o qual há dados suficientes para a comparação,
continuava ampla, de oito pontos porcentuais (perda de 18% da renda dos que não
tinham instrução fundamental completa e de 10% para os formados em faculdade ou
com pós-graduação).
Mostrando
certa resignação diante da tragédia social que representa a perda de renda nas
proporções aferidas pelo estudo – “a gente se acostuma a viver com menos, mas
não é fácil” –, a cuidadora de idosos Neomar Maria da Silva, de 62 anos,
sintetiza com precisão o que ocorreu na pandemia: “Dá uma sensação de que a
vida andou dez anos para trás”.
A
perda de renda é generalizada. A estimativa é de que um quarto dos
trabalhadores com carteira assinada (ou 9,5 milhões de profissionais) teve o
contrato de trabalho suspenso ou a jornada reduzida, de acordo com números do
Ministério da Economia. A redução de jornada e salário evitou muitas demissões,
mas teve impacto sobre a renda de quem depende do trabalho.
Uma parcela da sociedade particularmente vulnerável aos impactos da pandemia é a das crianças. Recente relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estimou que a pandemia fez crescer em 15% o número de crianças que vivem na pobreza em todo o mundo.
A
vaga no Supremo – Opinião | O Estado de S. Paulo
Notável saber jurídico e reputação ilibada são condições para o
bom funcionamento do STF
Em
novembro, o ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal (STF)
completará 75 anos, idade que dá ensejo à aposentadoria compulsória. No
entanto, o decano do STF requereu aposentadoria voluntária a partir do dia 13
de outubro. “Razões estritas (e supervenientes) de ordem médica tornaram
necessário, mais do que meramente recomendável, que eu antecipasse a minha
aposentadoria, que requeri, formalmente, no dia 22 de setembro de 2020”, disse
Celso de Mello ao Estado. Com isso, o preenchimento de sua vaga no Supremo pode
ter sido antecipado em um mês.
Sempre,
mas especialmente em momentos como o atual, o procedimento e as condições para
a escolha de um novo ministro devem ser rigorosamente respeitados. “O STF
compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e
cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e
reputação ilibada”, diz o art. 101 da Constituição.
Mais
do que meros requisitos formais, são condições para o bom funcionamento do
Supremo. Por isso, a Constituição estabelece que “os Ministros do Supremo
Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de
aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal”. O Poder Executivo
indica o nome e o Legislativo, por meio do Senado, faz o controle dos
requisitos.
Critica-se,
com frequência, o procedimento para o preenchimento das vagas do Supremo. Ao
longo dos anos, foram apresentadas no Congresso muitas propostas de mudança do
texto constitucional. Naturalmente, todo processo tem falhas. No entanto, como
dissemos neste espaço, “esse sistema funciona bem desde que o Senado compreenda
que as sabatinas não são protocolares nem devem ser feitas em clima de camaradagem
e com roteiro prévio. Quando levadas a sério, são excelente antídoto para
barrar a entrada numa corte suprema de indicados medíocres, sem currículo e
biografia”.
O
Senado pode desde já contribuir para uma escolha constitucionalmente adequada
do sucessor do ministro Celso de Mello, deixando claro ao presidente Jair
Bolsonaro que não aceitará uma indicação fora dos requisitos previstos. Por
exemplo, de que não validará nomes que, em matéria de saber jurídico, são o que
Ruy Barbosa chamava de “nulidades”.
A
atuação responsável do Senado pode ajudar Jair Bolsonaro a se recordar do que
ocorreu no ano passado, quando ele manifestou o desejo de nomear o filho
Eduardo como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. A competência privativa
do presidente da República de indicar um nome para determinado cargo não
significa autorização para agir arbitrariamente. É preciso respeitar os
requisitos constitucionais de cada cargo.
As
condições para ministro do Supremo estão expressas: reputação ilibada e notável
saber jurídico. Os próprios adjetivos empregados pela Constituição – ilibada e
notável – indicam que não deve haver nenhuma dúvida quanto ao caráter e ao
conhecimento jurídico do indicado. Ou seja, o respeito à Constituição é
incompatível com qualquer tipo de transigência na aferição dos dois requisitos
para o preenchimento de uma vaga no Supremo.
Desde
o início do governo, o presidente Bolsonaro já mostrou ter dificuldades de
compreensão sobre a escolha e o papel de um ministro do Supremo. Por exemplo,
em maio do ano passado, Jair Bolsonaro disse, em entrevista à Rádio
Bandeirantes: “Eu fiz um compromisso com ele (Sérgio Moro), porque ele abriu
mão de 22 anos de magistratura. Eu falei: a primeira vaga que tiver lá, vai
estar à sua disposição”. Mais recentemente, Bolsonaro falou que indicaria um
ministro “terrivelmente evangélico”. Também já manifestou o desejo de que o
futuro ministro do Supremo defenda na Corte o governo.
O papel do Supremo é defender a Constituição. E o papel do Senado é defender o Supremo, garantindo a independência da Corte. Não basta ter a confiança do presidente da República. O indicado deve ter reputação ilibada e notável saber jurídico. Deve ser um cidadão respeitável e sério.
Risco de insolvência – Opinião | Folha de S. Paulo
Bolsonaro e Guedes geram desconfiança ao apostar em pedalada para custear novo programa social
Avesso a tomar decisões que contrariem grupos de interesse,
inebriado com sua popularidade e obcecado pela reeleição, o presidente Jair Bolsonaro conduz
o país no rumo da instabilidade econômica, que poderá resultar em inflação
crescente e mais recessão.
A proposta de financiar um
novo programa social batizado de Renda Cidadã com
recursos reservados para o pagamento de precatórios judiciais e verbas da
educação expõe a desfaçatez de um governo incapaz de lidar com a situação.
Deixar de honrar precatórios,
que representam dívidas líquidas e certas, é dar calote em aposentados,
servidores públicos e outros na fila de credores do Tesouro. Adiar sua
quitação, para aplicar o dinheiro em outros fins, é pedalar a despesa e
aumentar a dívida pública.
Anunciada com fanfarra por
Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, como resultado de um acordo
com os líderes
partidários no Congresso, a proposta tresloucada foi recebida
com enorme desconfiança em
toda parte.
O efeito imediato foi reduzir
ainda mais a credibilidade da
equipe liderada por Guedes, que se mostra inepto quando tenta
persuadir o presidente a fazer escolhas difíceis e agora parece inclinado a
contornar as resistências com malabarismo.
Mantido o teto constitucional
dos gastos públicos, não há meio de custear a ampliação do Bolsa Família como o
presidente deseja sem abater outras despesas. Bolsonaro não quer mexer no teto
e rejeitou sugestão anterior da equipe econômica, que incluía corte de
benefícios sociais e congelamento de pensões e aposentadorias.
O presidente poderia abrir
espaço no Orçamento para novos gastos se demonstrasse empenho para acelerar
reformas em discussão no Congresso, em especial a administrativa. Mas falta a
Bolsonaro a convicção necessária para fazê-lo.
O Brasil já ostenta o maior
passivo do mundo entre os países emergentes, com uma dívida pública que deve
alcançar 95% do PIB (Produto Interno Bruto) neste ano. A desconfiança dos
investidores torna sua gestão mais difícil e
custosa.
A desvalorização do real
frente ao dólar pode fazer os preços voltarem a subir, obrigando o Banco
Central a aumentar os juros para evitar que a inflação estoure a meta oficial.
Assim, o descompromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas aproxima o país do risco de insolvência financeira e ameaça a retomada do crescimento econômico nos próximos anos, com efeitos dramáticos para todos.
Direito de lembrar – Opinião | Folha de S. Paulo
No debate sobre esquecimento que se inicia no Supremo, liberdade
de expressão deve prevalecer
O Supremo Tribunal Federal deve iniciar nesta quarta (30) o
julgamento de um recurso que estabelecerá precedente para o controverso direito ao
esquecimento.
O caso escolhido é o de uma
vítima de assassinato nos anos 1950 que teve sua história contada num programa
exibido pela Rede Globo em 2004. Os irmãos da morta reclamam o direito de não
ver a tragédia reencenada e pedem indenização por uso indevido de imagem.
Perderam no Superior Tribunal de Justiça, mas recorreram ao Supremo.
Não é uma escolha muito
feliz. O caso mistura direito ao esquecimento com direito de imagem, está
circunscrito a uma exibição isolada de um programa que não teve reprise, e
ainda traz o complicador de a Justiça ter sido acionada por parentes, não pelo
próprio envolvido. É com esse processo, contudo, que o STF terá de trabalhar.
O direito ao esquecimento é polêmico porque
expõe a oposição entre a liberdade de expressão e o direito à privacidade. É
fácil simpatizar com o adolescente que fez ou disse uma bobagem nas redes
sociais e não quer ser assombrado o resto da vida pelo erro da juventude.
Também é fácil solidarizar-se com a vítima de um crime que não deseja que o
acontecimento traumático reemerja cada vez que seu nome for pesquisado na
internet.
É complicado, porém, dar a
cada indivíduo o poder de editar seu passado. O político corrupto poderia
reclamar o direito de apagar dos registros as condenações judiciais que sofreu,
e pelas quais já pagou --uma informação de óbvio interesse público. O chef
vaidoso poderia querer tirar do ar todas as críticas negativas que recebeu.
A discussão lembra a da norma
do Código Civil que obrigava biógrafos a obter autorização dos biografados, que
o Supremo teve a sabedoria de declarar
inconstitucional em 2015. Espera-se que exiba agora o mesmo bom
senso.
Quanto àqueles que agiram um dia com imprudência, restaria esperar que o entendimento social evolua para dar o devido peso às coisas, deixando o tempo filtrar o que é relevante e pôr de lado o que não tem maior importância, sem que o passado seja apagado.
Renda Cidadã nasce entre ilegalidades
e críticas – Opinião | Valor Econômico
Bolsonaro e Guedes podem assim terminar o ano sem Renda Cidadã, sem reforma tributária e sem CPMF
Diante do surto criativo governista, os mercados mergulharam
fundo na baixa. O Renda Cidadã tocou em um dos piores temores dos investidores:
o fim do teto de gastos. Para atender às exigências de um presidente que não
sabe o que quer, e que evita tomar decisões difíceis, de olho na reeleição,
políticos e equipe econômica saíram em busca de recursos para ampliar o Bolsa
Família que respeitassem a âncora fiscal. Sem cortar gastos correspondentes às
novas despesas com o programa não há jeito de respeitar o teto. Os governistas
descobriram então a falsa saída de transformar dívidas em receitas. O governo
empregaria apenas 2% da receita corrente líquida (R$ 16 bilhões pela previsão
do orçamento de 2021) para o pagamento de precatórios, para o qual estão
reservados R$ 54,7 bilhões. A diferença de R$ 38,7 bilhões reforçaria o Renda
Cidadã.
As dívidas com precatórios são despesas não mais passíveis de recursos
judiciais e de pagamento certo. Idêntica tentativa feita em 2009 pelo Congresso
para reduzir o pagamento dessas dívidas por Estados e municípios foi
considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O sinal dado por
essa gambiarra ilegal foi péssimo, por uma leitura óbvia: o governo resolveu
não pagar todas as dívidas sacramentadas pela Justiça e, com o déficit fiscal
em alta, nada garante que não possa fazer isso com outros débitos no futuro,
ressuscitando fantasmas da insegurança jurídica e do calote.
O governo planejou um “calote em progresso” e “pedalou” para usar a dívida para
custear despesas permanentes, coisa de amadores incompetentes. O ex-secretário
do Tesouro, Carlos Kawall, resumiu bem a manobra. “Se você arbitrariamente diz
que pode pagar, mas não vai, que vai jogar para frente, prejudicando o credor,
e ainda fazendo isso para gastar mais, mas não em troca de uma despesa que
cortou, sem promover ajuste nenhum, você simplesmente está usando um
subterfúgio para cumprir o teto”. A ironia da história é que com o intuito de
proteger o teto de gastos, foi o próprio governo que tentou falsos atalhos para
contorná-lo, o que é pior.
Além da burla com o dinheiro dos precatórios, outros recursos
para compor o Renda Cidadã viriam do Fundeb, que não está sujeito ao teto de
gastos. Na discussão da renovação do Fundeb, na qual o governo entrou de última
hora tentando deslocar verbas dedicadas à educação infantil para o Bolsa
Família, ele foi derrotado e teve de se comprometer com mais verbas do que
previa.
Nesta mixórdia, coube ao líder do governo na Câmara, Ricardo
Barros (PP-PR) convocar uma reunião com investidores para tentar entender por
que os mercados estavam em queda - foi bem estranho e inútil. Resta ver como um
defensor da ideia, o relator do orçamento de 2021 e da PEC do Pacto Federativo,
Márcio Bittar (MDB-AC) procederá. Ele disse que não cederá. Mas pedaladas
fiscais ficaram associadas ao impeachment de Dilma e é possível que em breve
Bolsonaro também não queira mais ouvir falar do Renda Cidadã.
Os infortúnios governistas não pararam aí. foram maiores. A CPMF rediviva de Guedes, agora com apoio de Bolsonaro, não foi aceita por líderes dos partidos aliados, que não julgaram uma boa ideia discutir um novo imposto em plena campanha eleitoral municipal e concluíram que ainda não há apoio suficiente no Congresso para sua aprovação. Com isso, o projeto de reforma tributária que tramita no Senado irá atrasar, e o da Câmara possivelmente também. Sem nunca mostrar por inteiro o que pretende com a reforma e lançar agora a CPMF, o governo conseguiu retardar até mesmo propostas em andamento que estavam quase maduras para votação. Bolsonaro e Guedes podem assim terminar o ano sem Renda Cidadã, sem reforma tributária e sem CPMF.
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