O Globo
No delicioso “Rato de redação: Sig e a
história do Pasquim”, de Márcio Pinheiro, com histórias do hebdomadário
Pasquim, há registro de uma cena — ocorrida no final de 1970! — que mostra a
definitiva atualidade do renitente atraso brasileiro.
No quadro “Independência ou morte”, de
Pedro Américo, o cartunista Jaguar aplicou um balão em cima da figura de Dom
Pedro I, como se fossem seus dizeres: “Eu quero mocotó” — e seguiam dois pontos
de exclamação.
O novo Grito do Ipiranga emulava o
estribilho da canção homônima de Jorge Benjor, defendida no V Festival
Internacional da Canção por Erlon Chaves e sua Banda Veneno. Por causa da
sensualidade de seu coro feminino, Erlon teve de dar explicações na delegacia.
A irreverência de Jaguar custou-lhe uma cana. Boa parte da redação do Pasquim seguiria também para a mesma cela por quase três meses.
Ocupando meia página, o cartum de Jaguar
nem sequer ganhara destaque no tabloide. Ao ser interrogado, soube que estava
ali detido por haver desrespeitado um símbolo nacional.
— Mas esse quadro é uma porcaria, além de
ser plágio — informou Jaguar, em seguida posto atrás das grades.
O poder nunca soube lidar com o humor, com
os chistes. A ironia fina crucifica os ridículos. Jaguar e a turma do Pasquim
enfrentavam a barra dura da ditadura militar — naquele ano de 1970, o padrão
eram prisões seguidas de torturas.
Décadas antes, em 1922, a dupla Freire
Júnior e Luís Sampaio (o “Careca”) compôs a marcha “Ai, seu Mé”. Nilo Peçanha e
Artur Bernardes, conhecido pelo apelido de “Seu Mé”, disputavam a eleição
presidencial. Vitorioso, o vingativo Bernardes mandou prender os autores.
Freire Júnior ficou escondido, mas Careca padeceu dias no xilindró.
Era tarde, porque a população continuou
cantando a marchinha pelas ruas. A mesma desobediência civil (aqui, sendo
generosos com os golpistas) ocorreria com “Apesar de você”, de Chico Buarque,
lançada sob o governo Médici. A censura não entendeu a letra e a liberou para
gravação, logo transformada em sucesso com milhares de cópias vendidas em pouco
tempo. Até que alguma autoridade com mais tutano compreendeu o recado — hoje você é quem manda/falou, tá falado/não tem
discussão —, e a música foi proibida.
De novo, era tarde, porque é difícil ainda
hoje não encontrar quem não cantarole que apesar
de você/amanhã há de ser outro dia, mesmo sem saber o contexto da
letra.
A tentativa de cercear a sociedade, seja na
censura às artes, seja no cabresto imposto aos comportamentos, é um instituto
abraçado por governos e grupos diversos. Em geral, minoritários sedentos de
colocar na maioria seus guizos e de lançar seus preconceitos. Quase sempre
lançam mão de epítetos genéricos como família, tradição e Deus para baixar o
porrete ou forjar leis na tentativa de impor sua imagem de mundo.
Antes de chegarmos aos pastores de Bozo, um
pouco de História, a partir do livro do antropólogo David Graeber e do
arqueólogo David Wengrow. Em “The dawn of everything: a new history of
humanity”, a dupla busca mostrar como o padrão das sociedades indígenas
americanas, no século XVII, com seus conceitos de liberdade, solidariedade e
igualdade, chocou os intelectuais europeus, por certo influenciando as ideias
iluministas.
Se provocaram reflexões nos principais
autores da época, causaram engulho nos jesuítas enviados ao Novo Mundo com a
missão de catequizar os povos indígenas da América do Norte. A missão cristã se
escandalizou com a liberdade sexual, de casamento, de repúdio à ideia de
propriedade e com o descompromisso brutal em obedecer a ordens. Ou, no termo do
antropólogo James C. Scott, com “o domínio da arte de não ser governado”.
Para os indígenas americanos, além de não
haver o conceito de culpa (a culpa cristã), havia uma identificação e respeito
com os entes da natureza. Em registros do pensamento de Kandiaronk, líder
indígena responsável por dialogar com os europeus, há uma crítica curiosa, que
balançou o coreto dos intelectuais: como é que eles passavam a vida
atormentados pela busca de riqueza, dentro de uma sociedade que os tornava
escravos uns dos outros? Para os autores do livro, a sabedoria dos autóctones
americanos se tornou um presente ao Iluminismo, ainda mais pelos ideais de
liberdade. O que leva Kandiaronk a questionar “a extraordinária autoimportância
da convicção jesuíta de que um ser onisciente e onipotente escolheria
livremente se prender em carne e sofrer terríveis sofrimentos, tudo por causa
de uma única espécie”.
Apesar da permanência de suas ideias,
sabemos o que aconteceu aos indígenas americanos (brasileiros também).
A luta (contra a maioria) continua. Uma
pequena minoria evangélica (de pentecostais e neo), em seu projeto de poder,
procura demonizar a maioria que não segue seu credo. Pedem tolerância e impõem
sua idiossincrática intolerância. Usam nosso dinheiro (como isenção de impostos
etc.), não para rezar, porém com manifesta má intenção de limitar nossa livre
consciência e de cevar aleivosias. É hora de gritar: eu quero mocotó.
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