O Estado de S. Paulo.
Vladimir Putin não previu que os ucranianos
não se reconheceriam em sua ‘russidade’, preferindo abraçar os valores
atlantistas
Decisões políticas, geopolíticas,
diplomáticas e militares são tomadas conforme as ideias que os decisores, as
autoridades púbicas, têm em mãos. Decisões não são tomadas no vácuo, envolvendo
assessores, ministros e responsáveis civis e militares, que não apenas se fazem
presentes, mas também veiculam propostas e concepções de mundo. Eis por que, a
propósito da guerra na Ucrânia, se torna importante pesquisar quais são as
ideias que presidiram a invasão russa, para além dos interesses geopolíticos em
jogo.
Um dos ideólogos mais importantes da Rússia
atualmente, com influência direta no debate de ideias naquele país, tendo,
inclusive, influência sobre Putin, chama-se Alexander Dugin. Sua grande
inspiração é o pensador nazista Carl Schmitt, e utiliza, a propósito, duas de
suas obras: 1) O Conceito do Político, em que apresenta sua concepção deste a
partir da distinção amigo/inimigo, o primeiro termo designando os aliados e o
segundo, os adversários, que devem ser literalmente eliminados, não apenas
verbalmente, mas fisicamente; e 2) The Grosssraum Order of International
Law with a Ban on Intervention for Spatially Foreign Power, focando em países imperiais que precisam de grandes espaços, não podendo sofrer qualquer limitação externa, nenhuma legalidade internacional sendo reconhecida.
No caso de Schmitt/hitler, os inimigos
designados, reais ou imaginários, foram os judeus, os homossexuais, os ciganos,
pessoas com deficiência física, as testemunhas de Jeová, os comunistas, os
banqueiros. Hoje, para os russos, é a Otan, que, para Dugin, é um braço armado
dos EUA, o que denomina de atlantismo, cujos valores são diametralmente
contrários aos seus. No caso da noção de “grande espaço”, a analogia é
manifesta com a noção nazista de “espaço vital”, que orientou no início a
geopolítica hitlerista com as invasões dos Sudetos, depois de toda a
Checoslováquia e da Polônia. Hoje, o espaço vital de Putin é a Ucrânia, tendo
antes colocado suas tropas na Chechênia, na Geórgia e na Crimeia, almejando
entrar futuramente nos países bálticos.
A denominação de que Dugin se apropria para
designar sua própria concepção é a de “conservadorismo revolucionário”, tendo
na guerra um valor central seu: o “conservador não deve mentir; ele prefere a
guerra, não a paz”. Ela é o seu estado natural em que o seu espírito se afirma
e se fortalece. Uma invasão, nessa perspectiva, seria uma mera prolongação
deste espírito que unifica o povo, não devendo lamentar pelas vidas perdidas.
Um povo que não guerreia é um povo decadente.
Sua concepção apresentase como sendo
eurasianista, baseada não apenas na história e na cultura russas, mas em seus
valores, que se distinguiriam totalmente dos valores ocidentais. Por exemplo, o
individualismo ocidental carece totalmente de valor para ele, sendo uma
invenção do “liberalismo”, retomada como ideologia pelo atlantismo. Em seu
lugar, entrariam o “povo”, Narod, que é um decalque, reconhecido por ele mesmo,
do termo alemão Volk, que, por sua vez, é a base da concepção nazista e
schmittiana, e o “Império”, retomado igualmente da concepção nazista do Reich.
Os valores ocidentais não teriam nenhuma
validade universal, mas seriam particulares. Não haveria por que reconhecê-los
como tendo valor para além dos Estados americanos e europeus, sobretudo
continentais, do Oeste, e não do Leste, que seriam eslavos e, logo, próximos
dos russos. Portanto, compreende-se melhor quando agora, na invasão russa, a
sua elite mostra um claro desprezo pelos direitos humanos, bombardeando
populações civis, inclusive hospitais e maternidades, ou pela democracia,
desconhecendo uma decisão soberana da sociedade ucraniana. Nesta perspectiva, o
desafio atual da Rússia consiste em recuperar o seu “grande espaço”, o seu
“espaço vital”, porém, agora, segundo os valores “eurasianos”, não europeus.
Causou grande celeuma a fala de Putin
declarando que a
Ucrânia simplesmente não existe, mas faz
parte da “Grande Rússia”. Existência, para ele, significa o que entende como
sendo os seus valores eslavos, algo muito distinto de uma existência estatal
que seria nada mais do que algo artificial. As tropas russas estariam
realizando uma espécie de reparação histórica, uma retomada do que já é ou
seria russo. Ora, essa ideia está explicitamente enunciada em Dugin: “Ucrânia,
em suas fronteiras contemporâneas, simplesmente não pode existir”.
Dessa concepção decorre um erro estratégico
de Putin, o de considerar que sua invasão seria rápida, bem-sucedida, visto que
os “russos (ucranianos)” acolheriam de braços abertos os “russos (russos)”.
Seria uma confraternização entre irmãos, enfim juntos e libertos,
compartilhando dos mesmos valores e ideias. Não previu que os ucranianos não se
reconheceriam em sua “russidade”, preferindo abraçar os valores atlantistas, os
dos direitos humanos, da democracia e da soberania dos povos. Houve, aqui, para
além dos enfrentamentos militares, um choque de concepções, de mentalidades.
*Professor de filosofia na UFGRS
Nenhum comentário:
Postar um comentário