EDITORIAIS
Nem a Vale apoia PL da mineração em terra
indígena
O Globo
Convém ao Congresso prestar atenção à
manifestação da Vale a respeito do PL 191, que tenta regulamentar a exploração
mineral em terras indígenas. A maior mineradora do país, em tese uma das
principais interessadas na ampliação de seus negócios de extração de minério,
revelou à colunista do GLOBO Míriam Leitão ser contra o projeto e afirmou que a
mineração nessas terras só poderia ser realizada mediante consentimento, com
apoio num “marco regulatório que contemple a participação e autonomia dos povos
indígenas”. Embora tenham evitado manifestações públicas, outras grandes
mineradoras também se dizem contrárias à aprovação.
Só esse fato já justificaria um exame mais cauteloso do texto que tramita na Câmara em regime de urgência. Em vez disso, tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto o presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), têm procurado dar celeridade à aprovação, sob o pretexto de que, como a guerra na Ucrânia pôs em risco o fornecimento de fertilizantes ao Brasil, é necessário ao país garantir autossuficiência nos minerais necessários a produzi-los.
O argumento do governo é falacioso.
Análises geológicas revelam que 78% das reservas brasileiras do potássio usado
nos fertilizantes estão fora da Amazônia (apenas 11% em terras indígenas não
homologadas). Fora isso, não há como extrair o mineral de uma hora para outra.
“Uma mina de potássio leva entre cinco a dez anos para ficar pronta”, afirmou o
economista José Roberto Mendonça de Barros à colunista do GLOBO. “As reservas
da Amazônia são de difícil exploração. É um disparate econômico.”
Uma consequência inevitável da aprovação
seria isolar ainda mais o Brasil na cena global, hoje preocupada com a
preservação da Amazônia e com o respeito aos direitos dos indígenas. A União
Europeia, que congelou a aprovação do acordo comercial assinado com o Mercosul,
jamais aceitaria ampliar as importações do agronegócio brasileiro se elas
dependerem do incentivo ao garimpo ilegal ou ao desmatamento.
A questão é tão crítica para a imagem das
empresas no mercado internacional que a própria Vale desistiu de todas as
pesquisas ou lavras em terras indígenas no Brasil. Em contrapartida, ela atua
no Canadá, onde a regulamentação permite a exploração nas terras dos povos
originários, desde que com consentimento e mediante o respeito a regras que
garantam preservação ambiental e cultural.
O exemplo canadense demonstra que a questão
precisa ser encarada sem preconceitos. Não há maior incentivo ao garimpo ilegal
— hoje uma realidade indiscutível na Amazônia — do que a falta de leis.
Independentemente do oportunismo do governo Bolsonaro ao usar a guerra na
Ucrânia como pretexto para atender a uma promessa de campanha aos garimpeiros,
o setor precisa de uma regulação eficaz, que seja capaz de evitar a devastação
e agressões à cultura indígena.
Tal proposta precisa de tempo de discussão
para ser analisada de forma técnica. É preciso detalhar modelos que permitam
conciliar a preservação e o desenvolvimento econômico. Todas as opiniões a
respeito devem ser expostas e debatidas no Congresso. Não faz sentido querer
aprovar, a toque de caixa, uma proposta para ampliar áreas de mineração que é
considerada absurda até pelos que, em princípio, seriam os maiores
interessados.
País precisa ampliar vacinação para evitar
volta de doenças já controladas
O Globo
Ainda que nos últimos dois anos a pandemia
do novo coronavírus tenha monopolizado as atenções, e que os índices de
vacinação contra a Covid-19 estejam avançando, são preocupantes os percentuais
de imunização contra outras doenças igualmente ameaçadoras. Como revelou
reportagem do GLOBO, entre 2015 e o ano passado, os patamares despencaram de
95,1% para 60,8%, considerando o público-alvo de todas as vacinas previstas no
Programa Nacional de Imunizações (PNI). Os dados foram compilados pela
pesquisadora de políticas públicas Marina Bozzetto, da Universidade de São
Paulo, com informações do Ministério da Saúde.
Os casos mais alarmantes estão nas vacinas
contra poliomielite (52%), sarampo, caxumba e rubéola (tríplice viral, com
50,1%) e tríplice viral mais catapora (5,7%). Como esses percentuais são a
média nacional, a situação local pode ser bem pior. Os dez municípios
brasileiros com as taxas mais baixas não conseguiram vacinar nem 10% da
população-alvo. Em 2012, a proteção contra a pólio chegava a 96,5%. Recentemente,
autoridades sanitárias mundiais entraram em alerta com a confirmação de um caso
da doença em Israel depois de 30 anos sem registro.
Embora a pandemia de Covid-19 possa ter
contribuído para a queda na cobertura vacinal de outras doenças, não pode ser
considerada a única vilã, porque os índices já vinham caindo desde 2018. O
menor patamar foi registrado no ano passado. Uma das causas são as campanhas de
desinformação promovidas por grupos antivacina. Ao contrário do que ocorre com
a população adulta, a imunização infantil costuma ser mais sensível ao
bombardeio de notícias falsas (como se vê também no caso da Covid-19).
É possível que a alta proteção dada pelas
vacinas tenha criado na população uma falsa impressão de segurança. É uma
sensação ilusória, como mostra o caso do sarampo. Em 2016, o Brasil recebeu da
Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) o certificado de erradicação da
doença. Dois anos depois, com os baixos índices de vacinação, ela estava de
volta, provocando surtos em várias regiões.
O PNI brasileiro já foi referência no
mundo. Na vacinação contra a Covid-19, novamente se revelou eficiente (quase
75% dos brasileiros estão completamente vacinados). Mas os municípios precisam
mostrar a mesma competência em relação a outras doenças. É inadmissível haver
índices tão baixos de cobertura contra doenças para as quais há vacinas
disponíveis. O risco da volta de moléstias já erradicadas é seriíssimo.
Onde estão as campanhas publicitárias do Ministério da Saúde? Por que os municípios não aproveitam a experiência da vacinação contra a Covid-19? Por que não ampliam a oferta e levam as doses a locais de grande concentração como escolas, estações de trem ou metrô? Se os cidadãos não vão aos postos, que os postos possam vir a eles. O Brasil tem problemas demais para ressuscitar aqueles que já estavam resolvidos.
Ideias sem refino
Folha de S. Paulo
Lula reabilita teses que levaram à
catástrofe econômica da administração petista
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) reabilita com notável frequência as ideias responsáveis pelo maior
fracasso da política econômica brasileira neste século, façanha que ele divide
com a sua sucessora, Dilma Rousseff.
O político petista, que parte para a sua
sexta candidatura ao Planalto como primeiro colocado nas pesquisas de intenção
de voto, pretende convencer o público incauto de que a privatização da BR
Distribuidora tem relação com a alta atual do preço dos combustíveis.
Fala como se uma distribuidora, que apenas
transfere produto de um local para outro, tivesse o condão de fabricar diesel,
gás e gasolina. Ou talvez sugira que uma estatal pudesse amargar prejuízos para
vender a preços mais baixos, a fórmula que quase levou a Petrobras à bancarrota
na gestão Rousseff.
A conjectura simplória —e errada— de que, por
ter custos em reais, a gigante brasileira do petróleo poderia praticar preços
descolados da cotação internacional da commodity sem incorrer em perdas ou
ameaçar o país de desabastecimento permeia discursos demagógicos como o do
ex-presidente.
O Brasil precisa importar uma parcela dos
derivados que consome. Se a Petrobras adotasse preço abaixo dos internacionais
no mercado interno, a importação ficaria insustentável economicamente, criando
o risco de falta de combustíveis nos postos. Foi essa ameaça que obrigou a
estatal a aplicar reajustes bruscos há duas semanas.
Mas o populismo não desiste fácil nem
aprende com as capotagens do passado recente. A solução, afirmou Lula nesta
terça (22), seria "construir mais refinarias".
O complexo pernambucano de Abreu e Lima
—prejuízo irrecuperável de US$ 18,9 bilhões, segundo o TCU— e as obras
abandonadas ainda na terraplanagem de refinarias no Ceará e no Maranhão —perdas
de R$ 2,8 bilhões—, sem falar da corrupção que jorrou desses projetos, deveriam
fazer corar um político petista que cogite novas aventuras bilionárias nessa
área.
A inclinação intervencionista do
ex-presidente não chega a provocar surpresa. É assim que pensavam e continuam a
pensar ele e o PT sobre a condução ideal da economia.
Caso vença a eleição, tudo indica que tais
ideias permanecerão no radar do governo, ainda que sujeitas a resistências
internas —na coalizão política de sustentação— e externas —nas condições
objetivas para a repetição dos experimentos "desenvolvimentistas".
Sobre o segundo aspecto, o horizonte se
apresenta bem mais carregado agora do que nas outras vezes em que o mandachuva
petista iniciou um governo. A situação das contas públicas deteriorou-se
sobremaneira, e novos erros poderão deflagrar uma crise colossal.
Atrasado e desigual
Folha de S. Paulo
Números do saneamento mostram disparidades
regionais e vexame nacional a superar
Todos os dias, mais de 5.300 piscinas
olímpicas de esgoto são despejadas sem tratamento nos rios e no litoral
brasileiros. Chocante, o dado dá a dimensão do atraso nacional no saneamento
básico, verdadeiro déficit civilizacional que o país segue longe de superar.
Uma nova radiografia desse fracasso —que,
além de afetar a saúde pública e o bem-estar humano, tem consequências
deletérias sobre o ambiente— está em ranking
do Instituto Trata Brasil.
Por meio de 12 indicadores, baseados em
dados de 2020, o instituto expôs o cenário —e a desigualdade— do saneamento nas
cem cidades mais populosas do país.
Se é verdade que, nesse grupo, 94,4% da
população conta com acesso à água tratada, marca próxima da universalização,
também é fato que capitais como Porto Velho e Macapá ostentam índices
vexaminosos, abaixo de 38%. No país, o atendimento fica em 84,1%.
Água encanada, ressalte-se, é o quesito em
que a situação se encontra melhor. Quando se consideram coleta e tratamento de
dejetos, o quadro se mostra desolador.
A média nacional de coleta de esgoto é de
55%, ante 75,7% na média dos cem maiores municípios. Contudo, apenas duas
cidades da amostra, as paulistas Piracicaba e Bauru, atendem 100% de suas
populações. Na ponta de baixo, aparece Santarém (PA), onde menos de 5% têm
acesso ao serviço.
Pior ainda se mostra a taxa de tratamento
de esgoto. No país, a média é de meros 51%, percentual que chega a 64% nos 100
maiores municípios. Mas, enquanto os 20 primeiros colocados tratam 81% de
esgoto, nos 20 piores são 25%.
Vistos em conjunto, os indicadores
evidenciam uma enorme disparidade regional. Os estados de São Paulo e Paraná
concentram 14 das 20 cidades mais bem colocadas no ranking; nos 20 últimos
predominam municípios de Norte e Nordeste (incluindo 9 capitais).
O novo marco do saneamento, que abriu
espaço para maior participação do setor privado, traz esperanças de que esse
abismo possa enfim ser transposto. Desde a aprovação da lei, em julho de 2020,
o setor atingiu R$ 42,2 bilhões em investimentos contratados.
Há que vencer resistências do corporativismo e da baixa política para alcançar a meta de universalizar até 2033 o acesso a água, coleta e tratamento de esgoto. Parafraseando a máxima de Millôr Fernandes, no saneamento o Brasil tem um enorme passado pela frente.
Trinta moedas pela educação
O Estado de S. Paulo.
O funcionamento do gabinete paralelo no MEC, com pastores influenciando na liberação de verbas da pasta, é grave ofensa à ordem jurídica. Educação é inegociável
Desde que o Estadão revelou, na semana
passada, a existência de mais um gabinete paralelo no governo Bolsonaro, desta
vez no Ministério da Educação (MEC), têm vindo à tona novos dados sobre o
aparelhamento da estrutura estatal para atender a interesses de lideranças
religiosas. Trata-se de uma situação rigorosamente inconstitucional, que
desrespeita princípios básicos da administração pública, fere o caráter laico
do Estado e, não menos importante, prejudica diretamente a qualidade da
educação pública.
Revelado agora, o esquema não é novo. Foi
apurado que, desde 2019, pastores evangélicos vêm exercendo influência no MEC.
Esse marco temporal indica que o aparelhamento religioso da pasta da Educação
não é algo meramente circunstancial, que teria nascido após a aproximação do
governo Bolsonaro com o Centrão. O assunto é mais grave. Desde o início do seu
mandato, o presidente Bolsonaro permitiu que a estrutura do Estado fosse usada
para fins particulares, de determinados grupos religiosos.
A agravar o quadro, o aparelhamento não
ocorreu em um setor secundário da administração federal. Entregou-se a
lideranças religiosas uma das áreas mais importantes, se não a mais importante,
para o futuro do País. E, consequentemente, uma pasta que possui um dos maiores
orçamentos do governo federal.
Sabe-se que o MEC de Bolsonaro não funciona
bem desde o início do governo. A pasta responsável por cuidar do futuro das
novas gerações notabilizou-se por polêmicas, agressões, ineficiências e
omissões, o que, entre outros danos, produziu significativa desarticulação com
os outros entes federativos. Agora, com a revelação da existência de um
gabinete paralelo liderado por pastores, conheceu-se uma nova faceta. Nem tudo
era ineficiência. Para os amigos dos pastores, a verba chega rapidamente.
Segundo a reportagem do Estadão apurou, o
gabinete paralelo é bastante ágil na liberação de verbas do MEC para
determinados municípios, em uma velocidade que destoa dos padrões de repasses
da União. Em um dos casos, a prefeitura conseguiu o empenho de parte do
dinheiro pleiteado 16 dias depois do encontro mediado pelos religiosos. Durante
o mês de dezembro de 2021, foram firmados, depois desses encontros com
pastores, termos de compromisso, uma etapa anterior ao contrato, entre o Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e nove prefeituras no valor de
R$ 105 milhões.
Esses dados confirmam que a atuação do
gabinete paralelo do MEC é muito mais ampla do que apenas controlar a agenda do
ministro Milton Ribeiro, o que já seria extravagante e incompatível com o
funcionamento republicano do poder público. Os pastores exercem influência na
decisão sobre o destino das verbas e a velocidade de sua entrega.
Do início de 2021 para cá, sabe-se que ao
menos 48 municípios foram contemplados com verbas após encontros com os pastores
do gabinete paralelo. Desses repasses, 26 deles utilizaram recursos próprios do
FNDE. O restante recebeu dinheiro por meio de emendas do orçamento secreto.
A operação do gabinete paralelo no MEC
merece uma responsável, cuidadosa e diligente investigação. A subordinação do
Estado a interesses religiosos é grave ofensa à Constituição, além de produzir
distorções, ineficiências e privilégios no próprio sistema educativo. Não é
aceitável, num Estado Democrático de Direito, que a proximidade de gestores públicos
com pastores evangélicos signifique condições especiais no acesso a verbas
públicas.
Por força de sua missão constitucional, o
Ministério Público tem especial responsabilidade no desmantelamento dessa
estrutura paralela no MEC, apurando, em conjunto com os órgãos policiais, os
fatos e as respectivas responsabilidades. Também o Legislativo e o Judiciário,
no que lhes couber, não podem ficar passivos. É inconcebível que a definição de
políticas públicas educacionais, responsabilidade fundamental do Estado, seja
entregue, sem controle e sem transparência, a lideranças religiosas, sem
vínculo com a administração pública. É grave traição da República.
Fome, a outra face da guerra
O Estado de S. Paulo.
A invasão da Ucrânia pela Rússia afetou
duramente o mercado mundial de alimentos e fez crescer a população mundial
ameaçada pela insegurança alimentar
A guerra da Ucrânia tornou real o risco de
escassez de alimentos em escala planetária e fez a população mundial que passa
fome, já ampliada expressivamente durante a pandemia, aumentar em algumas
dezenas de milhões de pessoas em poucas semanas. Além da destruição e das
mortes que a invasão da Ucrânia pela Rússia vem provocando diretamente, e
gerando protestos e reações em todo o mundo, há outras consequências nem tão
evidentes da guerra decidida pelo autocrata Vladimir Putin, mas igualmente
devastadoras do ponto vista humanitário. O número de ucranianos que abandonaram
seu país para escapar dos horrores da guerra é uma delas. Outra, que vai
ficando mais nítida, é a fome em várias partes do mundo.
A invasão da Ucrânia desatou uma pérfida
combinação de fatores que geraram escassez de combustíveis, de bens variados e,
especialmente, de alimentos essenciais e fertilizantes. Aceleração da inflação
e as dificuldades de suprimentos de insumos para o setor produtivo afetam
praticamente todos os países e vêm levando as instituições de pesquisa a rever
suas projeções para o desempenho da economia mundial em 2022. A população
mundial já está pagando, de alguma forma, algum preço pela ambição de Putin. E
poderá pagar mais.
Ucrânia e Rússia respondiam por parcela
expressiva do trigo, do milho e da cevada consumidos pelo resto do mundo. Parte
de sua produção ou ficou presa nos armazéns ou está deixando de ser colhida ou
plantada por causa da guerra. Uma parcela ainda maior de fertilizantes que o
mundo consome não está sendo exportada pela Rússia e por Belarus, cujo governo
decidiu apoiar Putin em sua aventura na Ucrânia.
Muitos grandes países produtores de
alimentos, entre eles o Brasil, podem enfrentar ou já enfrentam problemas para
o plantio. Volumes recordes de grãos que vinham sendo colhidos nos últimos anos
estão sob risco. E isso ocorre num momento em que um dos maiores consumidores
mundiais de trigo, a China, está tendo a pior safra em décadas, por causa dos
problemas climáticos, o que fará crescer suas compras externas.
Problemas gerados pela pandemia, como
dificuldades para o transporte por falta de contêineres ou de navios, cortes de
suprimentos de bens essenciais em diferentes segmentos da indústria e altos
custos de energia, já prejudicavam a recuperação da economia mundial, agora
ainda mais afetada pelas dificuldades que a guerra no Leste da Europa criou.
Pedidos de instituições internacionais,
como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), são
no sentido de que os países exportadores de produtos agrícolas mantenham seu
fluxo de exportações. Alguns desses países tentam expandir a área cultivada com
a utilização de terras que não vinham sendo aproveitadas. O impacto de medidas
como essa, se houver, deve ser pequeno diante da crise que se desenha.
Outros países podem caminhar no sentido
contrário ao sugerido pela FAO. Produtores de ração animal da França pedem que
o governo aumente os estoques locais, pois temem quebra da oferta de grãos no
mercado internacional. A Indonésia aumenta os impostos de exportação de seu
principal produto, o óleo de palma. Outros governos impõem restrições
administrativas ou custos tributários adicionais para as exportações do setor
agropecuário. Outros ainda simplesmente proíbem determinadas exportações. E há
os que, diante de um cenário de risco de abastecimento mundial, tomam medidas
protecionistas.
Nada disso ajuda o fluxo mundial de
alimentos. Para aqueles que já tinham dificuldades para obter comida por causa
de seu preço em ascensão, o limite da sobrevivência ficou mais próximo. Depois
de permanecer estável por cinco anos, o número de pessoas passando fome passou
de 720 milhões para 811 milhões durante a pandemia. A ONU prevê que o impacto
mundial da guerra da Ucrânia pode levar até mais 13,1 milhões de pessoas a
passar fome.
O que poderão fazer governos de países que já enfrentam crônica escassez de recursos diante do agravamento desse problema, que os afeta diretamente? O mundo ainda não mostrou que tem solução para esse drama humanitário.
Fim do ciclo de alta de juros fica refém do
cenário externo
Valor Econômico
Choques nos preços “maiores ou mais
persistentes”obrigariam o BC a elevar os juros acima de 12,75%
Entre a reunião do Comitê de Política
Monetária de fevereiro e a de março há uma guerra e isso muda tudo. As
perspectivas para a inflação pioraram e a taxa de juros ao fim do ciclo de
aperto monetário será maior do que a que poderia ser esperada. A ata do Copom
divulgada ontem ressalta imprevisibilidade ainda maior do futuro e a
necessidade de avanço dos juros em um terreno “ainda mais contracionista”. Com
todas essas ressalvas, a intenção do Banco Central é a de interromper os
ajustes em 12,75%, caso não haja deterioração adicional do cenário prospectivo
para a inflação.
A atividade economica doméstica não mudou
entre as duas reuniões, com evolução “ligeiramente melhor” para o desempenho do
comércio e serviços (e pior para a indústria, que teve contração em janeiro) e
“recuperação consistente” do emprego. Sem a invasão da Ucrânia, o BC poderia
ter seguido em frente com um ou outro ajuste residual da Selic. O desafio veio,
portanto, da situação que abre a ata: “No ambiente externo, o cenário se
deteriorou substancialmente”.
O Copom aponta em seguida para os desafios
que afligem os BCs no mundo inteiro com a catástrofe ucraniana. Ela exacerbou
as pressões inflacionárias, com a disparada dos preços das commodities, em
especial as de energia. Mais que isso, não só retardou a normalização das
cadeias de produção global, uma outra causa do aumento geral de preços, como
acentuou a tendência de sua reorganização em outras bases, mais seguras, o que
envolverá “redundâncias” na produção e suprimento, assim como ampliação de
estoques. Resultado: “pressões inflacionárias mais prolongadas na produção
global de bens”.
A este choque brutal de oferta, que se
seguiu a outros trazidos pela pandemia, a tarefa do BC será a de reagir aos
impactos secundários das altas de commodities em um terreno já hostil e
movediço. Os efeitos da guerra sobre preços fundamentais da economia estão
longe de terem se esgotado. Por isso, o Copom diz ter optado por uma
“trajetória de juros mais tempestiva do que a embutida em seus cenários”.
A tradução desta preocupação foi a
elaboração de um cenário alternativo, diferente do cenário de referência (que
substituiu um anterior cenário básico), o que trouxe ruídos à comunicação do
BC. Sua premissa, porém, é razoável: não faz muito sentido projetar em um
cenário de referência uma cotação do petróleo que resulta de uma situação
extraordinária que pode não perdurar. A cotação tomada como norte é US$ 120 o
barril, e, na alternativa, abaixo de US$ 100 para 2022, mantendo-se a pior
hipótese para 2023, para o qual a política do BC está a partir de agora
inteiramente voltada.
Assim, mesmo com um câmbio mais apreciado
que o utilizado para o cenário de referência da penúltima reunião (R$ 5,05 ante
R$ 5,45), e as expectativas manifestadas no boletim Focus, seria preciso uma
Selic de 12,75% para levar a inflação a 7,1% neste ano e a 3,4% em 2023, quando
os juros se reduziriam a 8,75% (8% na projeção da ata anterior). As projeções
dos preços administrados deram um salto para 9,5% (ante 6,6% antes) em 2022 e
5,9% (antes 5,4%) em 2023. Ao fim do horizonte relevante, houve aumento de 0,75
ponto percentual, o que levou o BC a pregar uma política monetária “ainda mais
contracionista”.
Com peso maior no cenário alternativo, o BC
constatou que 2022 terá uma inflação acima do teto superior do intervalo de
tolerância (de 5%) e ao “redor da meta” em 2023, que é de 3,25%. Para essa
avaliação contribuiu interpretação mais positiva, no balanço de riscos, da
situação fiscal, que dá origem a uma “assimetria altista” para a inflação e
ameaça as expectativas de desancoragem. O BC julga agora que o risco de
desancoragem já está sendo embutido nas expectativas de inflação e nos preços
dos ativos usados em seus modelos.
Ao elevar a Selic para 11,75%, o Copom sinalizou com outro aumento de 1 ponto percentual, que deveria ser o ponto final no ajuste, com os juros a 12,75%, suficientes para “a convergência para patamar em torno da meta no horizonte relevante”, isto é, 2023. A realidade pode ser diferente e os choques nos preços “maiores ou mais persistentes”. Isso obrigaria o BC a novos aumentos da taxa básica de juros. O câmbio tem colaborado provisoriamente para amortecer os impactos da alta das commodities, papel que não jogou nos dois últimos anos. A cotação do dólar chegou a R$ 4,91 ontem, com desvalorização perto de 12% no ano.
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