quarta-feira, 23 de março de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Nem a Vale apoia PL da mineração em terra indígena

O Globo

Convém ao Congresso prestar atenção à manifestação da Vale a respeito do PL 191, que tenta regulamentar a exploração mineral em terras indígenas. A maior mineradora do país, em tese uma das principais interessadas na ampliação de seus negócios de extração de minério, revelou à colunista do GLOBO Míriam Leitão ser contra o projeto e afirmou que a mineração nessas terras só poderia ser realizada mediante consentimento, com apoio num “marco regulatório que contemple a participação e autonomia dos povos indígenas”. Embora tenham evitado manifestações públicas, outras grandes mineradoras também se dizem contrárias à aprovação.

Só esse fato já justificaria um exame mais cauteloso do texto que tramita na Câmara em regime de urgência. Em vez disso, tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto o presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), têm procurado dar celeridade à aprovação, sob o pretexto de que, como a guerra na Ucrânia pôs em risco o fornecimento de fertilizantes ao Brasil, é necessário ao país garantir autossuficiência nos minerais necessários a produzi-los.

O argumento do governo é falacioso. Análises geológicas revelam que 78% das reservas brasileiras do potássio usado nos fertilizantes estão fora da Amazônia (apenas 11% em terras indígenas não homologadas). Fora isso, não há como extrair o mineral de uma hora para outra. “Uma mina de potássio leva entre cinco a dez anos para ficar pronta”, afirmou o economista José Roberto Mendonça de Barros à colunista do GLOBO. “As reservas da Amazônia são de difícil exploração. É um disparate econômico.”

Uma consequência inevitável da aprovação seria isolar ainda mais o Brasil na cena global, hoje preocupada com a preservação da Amazônia e com o respeito aos direitos dos indígenas. A União Europeia, que congelou a aprovação do acordo comercial assinado com o Mercosul, jamais aceitaria ampliar as importações do agronegócio brasileiro se elas dependerem do incentivo ao garimpo ilegal ou ao desmatamento.

A questão é tão crítica para a imagem das empresas no mercado internacional que a própria Vale desistiu de todas as pesquisas ou lavras em terras indígenas no Brasil. Em contrapartida, ela atua no Canadá, onde a regulamentação permite a exploração nas terras dos povos originários, desde que com consentimento e mediante o respeito a regras que garantam preservação ambiental e cultural.

O exemplo canadense demonstra que a questão precisa ser encarada sem preconceitos. Não há maior incentivo ao garimpo ilegal — hoje uma realidade indiscutível na Amazônia — do que a falta de leis. Independentemente do oportunismo do governo Bolsonaro ao usar a guerra na Ucrânia como pretexto para atender a uma promessa de campanha aos garimpeiros, o setor precisa de uma regulação eficaz, que seja capaz de evitar a devastação e agressões à cultura indígena.

Tal proposta precisa de tempo de discussão para ser analisada de forma técnica. É preciso detalhar modelos que permitam conciliar a preservação e o desenvolvimento econômico. Todas as opiniões a respeito devem ser expostas e debatidas no Congresso. Não faz sentido querer aprovar, a toque de caixa, uma proposta para ampliar áreas de mineração que é considerada absurda até pelos que, em princípio, seriam os maiores interessados.

País precisa ampliar vacinação para evitar volta de doenças já controladas

O Globo

Ainda que nos últimos dois anos a pandemia do novo coronavírus tenha monopolizado as atenções, e que os índices de vacinação contra a Covid-19 estejam avançando, são preocupantes os percentuais de imunização contra outras doenças igualmente ameaçadoras. Como revelou reportagem do GLOBO, entre 2015 e o ano passado, os patamares despencaram de 95,1% para 60,8%, considerando o público-alvo de todas as vacinas previstas no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Os dados foram compilados pela pesquisadora de políticas públicas Marina Bozzetto, da Universidade de São Paulo, com informações do Ministério da Saúde.

Os casos mais alarmantes estão nas vacinas contra poliomielite (52%), sarampo, caxumba e rubéola (tríplice viral, com 50,1%) e tríplice viral mais catapora (5,7%). Como esses percentuais são a média nacional, a situação local pode ser bem pior. Os dez municípios brasileiros com as taxas mais baixas não conseguiram vacinar nem 10% da população-alvo. Em 2012, a proteção contra a pólio chegava a 96,5%. Recentemente, autoridades sanitárias mundiais entraram em alerta com a confirmação de um caso da doença em Israel depois de 30 anos sem registro.

Embora a pandemia de Covid-19 possa ter contribuído para a queda na cobertura vacinal de outras doenças, não pode ser considerada a única vilã, porque os índices já vinham caindo desde 2018. O menor patamar foi registrado no ano passado. Uma das causas são as campanhas de desinformação promovidas por grupos antivacina. Ao contrário do que ocorre com a população adulta, a imunização infantil costuma ser mais sensível ao bombardeio de notícias falsas (como se vê também no caso da Covid-19).

É possível que a alta proteção dada pelas vacinas tenha criado na população uma falsa impressão de segurança. É uma sensação ilusória, como mostra o caso do sarampo. Em 2016, o Brasil recebeu da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) o certificado de erradicação da doença. Dois anos depois, com os baixos índices de vacinação, ela estava de volta, provocando surtos em várias regiões.

O PNI brasileiro já foi referência no mundo. Na vacinação contra a Covid-19, novamente se revelou eficiente (quase 75% dos brasileiros estão completamente vacinados). Mas os municípios precisam mostrar a mesma competência em relação a outras doenças. É inadmissível haver índices tão baixos de cobertura contra doenças para as quais há vacinas disponíveis. O risco da volta de moléstias já erradicadas é seriíssimo.

Onde estão as campanhas publicitárias do Ministério da Saúde? Por que os municípios não aproveitam a experiência da vacinação contra a Covid-19? Por que não ampliam a oferta e levam as doses a locais de grande concentração como escolas, estações de trem ou metrô? Se os cidadãos não vão aos postos, que os postos possam vir a eles. O Brasil tem problemas demais para ressuscitar aqueles que já estavam resolvidos.

Ideias sem refino

Folha de S. Paulo

Lula reabilita teses que levaram à catástrofe econômica da administração petista

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reabilita com notável frequência as ideias responsáveis pelo maior fracasso da política econômica brasileira neste século, façanha que ele divide com a sua sucessora, Dilma Rousseff.

O político petista, que parte para a sua sexta candidatura ao Planalto como primeiro colocado nas pesquisas de intenção de voto, pretende convencer o público incauto de que a privatização da BR Distribuidora tem relação com a alta atual do preço dos combustíveis.

Fala como se uma distribuidora, que apenas transfere produto de um local para outro, tivesse o condão de fabricar diesel, gás e gasolina. Ou talvez sugira que uma estatal pudesse amargar prejuízos para vender a preços mais baixos, a fórmula que quase levou a Petrobras à bancarrota na gestão Rousseff.

A conjectura simplória —e errada— de que, por ter custos em reais, a gigante brasileira do petróleo poderia praticar preços descolados da cotação internacional da commodity sem incorrer em perdas ou ameaçar o país de desabastecimento permeia discursos demagógicos como o do ex-presidente.

O Brasil precisa importar uma parcela dos derivados que consome. Se a Petrobras adotasse preço abaixo dos internacionais no mercado interno, a importação ficaria insustentável economicamente, criando o risco de falta de combustíveis nos postos. Foi essa ameaça que obrigou a estatal a aplicar reajustes bruscos há duas semanas.

Mas o populismo não desiste fácil nem aprende com as capotagens do passado recente. A solução, afirmou Lula nesta terça (22), seria "construir mais refinarias".

O complexo pernambucano de Abreu e Lima —prejuízo irrecuperável de US$ 18,9 bilhões, segundo o TCU— e as obras abandonadas ainda na terraplanagem de refinarias no Ceará e no Maranhão —perdas de R$ 2,8 bilhões—, sem falar da corrupção que jorrou desses projetos, deveriam fazer corar um político petista que cogite novas aventuras bilionárias nessa área.

A inclinação intervencionista do ex-presidente não chega a provocar surpresa. É assim que pensavam e continuam a pensar ele e o PT sobre a condução ideal da economia.

Caso vença a eleição, tudo indica que tais ideias permanecerão no radar do governo, ainda que sujeitas a resistências internas —na coalizão política de sustentação— e externas —nas condições objetivas para a repetição dos experimentos "desenvolvimentistas".

Sobre o segundo aspecto, o horizonte se apresenta bem mais carregado agora do que nas outras vezes em que o mandachuva petista iniciou um governo. A situação das contas públicas deteriorou-se sobremaneira, e novos erros poderão deflagrar uma crise colossal.

Atrasado e desigual

Folha de S. Paulo

Números do saneamento mostram disparidades regionais e vexame nacional a superar

Todos os dias, mais de 5.300 piscinas olímpicas de esgoto são despejadas sem tratamento nos rios e no litoral brasileiros. Chocante, o dado dá a dimensão do atraso nacional no saneamento básico, verdadeiro déficit civilizacional que o país segue longe de superar.

Uma nova radiografia desse fracasso —que, além de afetar a saúde pública e o bem-estar humano, tem consequências deletérias sobre o ambiente— está em ranking do Instituto Trata Brasil.

Por meio de 12 indicadores, baseados em dados de 2020, o instituto expôs o cenário —e a desigualdade— do saneamento nas cem cidades mais populosas do país.

Se é verdade que, nesse grupo, 94,4% da população conta com acesso à água tratada, marca próxima da universalização, também é fato que capitais como Porto Velho e Macapá ostentam índices vexaminosos, abaixo de 38%. No país, o atendimento fica em 84,1%.

Água encanada, ressalte-se, é o quesito em que a situação se encontra melhor. Quando se consideram coleta e tratamento de dejetos, o quadro se mostra desolador.

A média nacional de coleta de esgoto é de 55%, ante 75,7% na média dos cem maiores municípios. Contudo, apenas duas cidades da amostra, as paulistas Piracicaba e Bauru, atendem 100% de suas populações. Na ponta de baixo, aparece Santarém (PA), onde menos de 5% têm acesso ao serviço.

Pior ainda se mostra a taxa de tratamento de esgoto. No país, a média é de meros 51%, percentual que chega a 64% nos 100 maiores municípios. Mas, enquanto os 20 primeiros colocados tratam 81% de esgoto, nos 20 piores são 25%.

Vistos em conjunto, os indicadores evidenciam uma enorme disparidade regional. Os estados de São Paulo e Paraná concentram 14 das 20 cidades mais bem colocadas no ranking; nos 20 últimos predominam municípios de Norte e Nordeste (incluindo 9 capitais).

O novo marco do saneamento, que abriu espaço para maior participação do setor privado, traz esperanças de que esse abismo possa enfim ser transposto. Desde a aprovação da lei, em julho de 2020, o setor atingiu R$ 42,2 bilhões em investimentos contratados.

Há que vencer resistências do corporativismo e da baixa política para alcançar a meta de universalizar até 2033 o acesso a água, coleta e tratamento de esgoto. Parafraseando a máxima de Millôr Fernandes, no saneamento o Brasil tem um enorme passado pela frente.

Trinta moedas pela educação

O Estado de S. Paulo.

O funcionamento do gabinete paralelo no MEC, com pastores influenciando na liberação de verbas da pasta, é grave ofensa à ordem jurídica. Educação é inegociável

Desde que o Estadão revelou, na semana passada, a existência de mais um gabinete paralelo no governo Bolsonaro, desta vez no Ministério da Educação (MEC), têm vindo à tona novos dados sobre o aparelhamento da estrutura estatal para atender a interesses de lideranças religiosas. Trata-se de uma situação rigorosamente inconstitucional, que desrespeita princípios básicos da administração pública, fere o caráter laico do Estado e, não menos importante, prejudica diretamente a qualidade da educação pública.

Revelado agora, o esquema não é novo. Foi apurado que, desde 2019, pastores evangélicos vêm exercendo influência no MEC. Esse marco temporal indica que o aparelhamento religioso da pasta da Educação não é algo meramente circunstancial, que teria nascido após a aproximação do governo Bolsonaro com o Centrão. O assunto é mais grave. Desde o início do seu mandato, o presidente Bolsonaro permitiu que a estrutura do Estado fosse usada para fins particulares, de determinados grupos religiosos.

A agravar o quadro, o aparelhamento não ocorreu em um setor secundário da administração federal. Entregou-se a lideranças religiosas uma das áreas mais importantes, se não a mais importante, para o futuro do País. E, consequentemente, uma pasta que possui um dos maiores orçamentos do governo federal.

Sabe-se que o MEC de Bolsonaro não funciona bem desde o início do governo. A pasta responsável por cuidar do futuro das novas gerações notabilizou-se por polêmicas, agressões, ineficiências e omissões, o que, entre outros danos, produziu significativa desarticulação com os outros entes federativos. Agora, com a revelação da existência de um gabinete paralelo liderado por pastores, conheceu-se uma nova faceta. Nem tudo era ineficiência. Para os amigos dos pastores, a verba chega rapidamente.

Segundo a reportagem do Estadão apurou, o gabinete paralelo é bastante ágil na liberação de verbas do MEC para determinados municípios, em uma velocidade que destoa dos padrões de repasses da União. Em um dos casos, a prefeitura conseguiu o empenho de parte do dinheiro pleiteado 16 dias depois do encontro mediado pelos religiosos. Durante o mês de dezembro de 2021, foram firmados, depois desses encontros com pastores, termos de compromisso, uma etapa anterior ao contrato, entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e nove prefeituras no valor de R$ 105 milhões.

Esses dados confirmam que a atuação do gabinete paralelo do MEC é muito mais ampla do que apenas controlar a agenda do ministro Milton Ribeiro, o que já seria extravagante e incompatível com o funcionamento republicano do poder público. Os pastores exercem influência na decisão sobre o destino das verbas e a velocidade de sua entrega.

Do início de 2021 para cá, sabe-se que ao menos 48 municípios foram contemplados com verbas após encontros com os pastores do gabinete paralelo. Desses repasses, 26 deles utilizaram recursos próprios do FNDE. O restante recebeu dinheiro por meio de emendas do orçamento secreto.

A operação do gabinete paralelo no MEC merece uma responsável, cuidadosa e diligente investigação. A subordinação do Estado a interesses religiosos é grave ofensa à Constituição, além de produzir distorções, ineficiências e privilégios no próprio sistema educativo. Não é aceitável, num Estado Democrático de Direito, que a proximidade de gestores públicos com pastores evangélicos signifique condições especiais no acesso a verbas públicas.

Por força de sua missão constitucional, o Ministério Público tem especial responsabilidade no desmantelamento dessa estrutura paralela no MEC, apurando, em conjunto com os órgãos policiais, os fatos e as respectivas responsabilidades. Também o Legislativo e o Judiciário, no que lhes couber, não podem ficar passivos. É inconcebível que a definição de políticas públicas educacionais, responsabilidade fundamental do Estado, seja entregue, sem controle e sem transparência, a lideranças religiosas, sem vínculo com a administração pública. É grave traição da República.

Fome, a outra face da guerra

O Estado de S. Paulo.

A invasão da Ucrânia pela Rússia afetou duramente o mercado mundial de alimentos e fez crescer a população mundial ameaçada pela insegurança alimentar

A guerra da Ucrânia tornou real o risco de escassez de alimentos em escala planetária e fez a população mundial que passa fome, já ampliada expressivamente durante a pandemia, aumentar em algumas dezenas de milhões de pessoas em poucas semanas. Além da destruição e das mortes que a invasão da Ucrânia pela Rússia vem provocando diretamente, e gerando protestos e reações em todo o mundo, há outras consequências nem tão evidentes da guerra decidida pelo autocrata Vladimir Putin, mas igualmente devastadoras do ponto vista humanitário. O número de ucranianos que abandonaram seu país para escapar dos horrores da guerra é uma delas. Outra, que vai ficando mais nítida, é a fome em várias partes do mundo.

A invasão da Ucrânia desatou uma pérfida combinação de fatores que geraram escassez de combustíveis, de bens variados e, especialmente, de alimentos essenciais e fertilizantes. Aceleração da inflação e as dificuldades de suprimentos de insumos para o setor produtivo afetam praticamente todos os países e vêm levando as instituições de pesquisa a rever suas projeções para o desempenho da economia mundial em 2022. A população mundial já está pagando, de alguma forma, algum preço pela ambição de Putin. E poderá pagar mais.

Ucrânia e Rússia respondiam por parcela expressiva do trigo, do milho e da cevada consumidos pelo resto do mundo. Parte de sua produção ou ficou presa nos armazéns ou está deixando de ser colhida ou plantada por causa da guerra. Uma parcela ainda maior de fertilizantes que o mundo consome não está sendo exportada pela Rússia e por Belarus, cujo governo decidiu apoiar Putin em sua aventura na Ucrânia.

Muitos grandes países produtores de alimentos, entre eles o Brasil, podem enfrentar ou já enfrentam problemas para o plantio. Volumes recordes de grãos que vinham sendo colhidos nos últimos anos estão sob risco. E isso ocorre num momento em que um dos maiores consumidores mundiais de trigo, a China, está tendo a pior safra em décadas, por causa dos problemas climáticos, o que fará crescer suas compras externas.

Problemas gerados pela pandemia, como dificuldades para o transporte por falta de contêineres ou de navios, cortes de suprimentos de bens essenciais em diferentes segmentos da indústria e altos custos de energia, já prejudicavam a recuperação da economia mundial, agora ainda mais afetada pelas dificuldades que a guerra no Leste da Europa criou.

Pedidos de instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), são no sentido de que os países exportadores de produtos agrícolas mantenham seu fluxo de exportações. Alguns desses países tentam expandir a área cultivada com a utilização de terras que não vinham sendo aproveitadas. O impacto de medidas como essa, se houver, deve ser pequeno diante da crise que se desenha.

Outros países podem caminhar no sentido contrário ao sugerido pela FAO. Produtores de ração animal da França pedem que o governo aumente os estoques locais, pois temem quebra da oferta de grãos no mercado internacional. A Indonésia aumenta os impostos de exportação de seu principal produto, o óleo de palma. Outros governos impõem restrições administrativas ou custos tributários adicionais para as exportações do setor agropecuário. Outros ainda simplesmente proíbem determinadas exportações. E há os que, diante de um cenário de risco de abastecimento mundial, tomam medidas protecionistas.

Nada disso ajuda o fluxo mundial de alimentos. Para aqueles que já tinham dificuldades para obter comida por causa de seu preço em ascensão, o limite da sobrevivência ficou mais próximo. Depois de permanecer estável por cinco anos, o número de pessoas passando fome passou de 720 milhões para 811 milhões durante a pandemia. A ONU prevê que o impacto mundial da guerra da Ucrânia pode levar até mais 13,1 milhões de pessoas a passar fome.

O que poderão fazer governos de países que já enfrentam crônica escassez de recursos diante do agravamento desse problema, que os afeta diretamente? O mundo ainda não mostrou que tem solução para esse drama humanitário.

Fim do ciclo de alta de juros fica refém do cenário externo

Valor Econômico

Choques nos preços “maiores ou mais persistentes”obrigariam o BC a elevar os juros acima de 12,75%

Entre a reunião do Comitê de Política Monetária de fevereiro e a de março há uma guerra e isso muda tudo. As perspectivas para a inflação pioraram e a taxa de juros ao fim do ciclo de aperto monetário será maior do que a que poderia ser esperada. A ata do Copom divulgada ontem ressalta imprevisibilidade ainda maior do futuro e a necessidade de avanço dos juros em um terreno “ainda mais contracionista”. Com todas essas ressalvas, a intenção do Banco Central é a de interromper os ajustes em 12,75%, caso não haja deterioração adicional do cenário prospectivo para a inflação.

A atividade economica doméstica não mudou entre as duas reuniões, com evolução “ligeiramente melhor” para o desempenho do comércio e serviços (e pior para a indústria, que teve contração em janeiro) e “recuperação consistente” do emprego. Sem a invasão da Ucrânia, o BC poderia ter seguido em frente com um ou outro ajuste residual da Selic. O desafio veio, portanto, da situação que abre a ata: “No ambiente externo, o cenário se deteriorou substancialmente”.

O Copom aponta em seguida para os desafios que afligem os BCs no mundo inteiro com a catástrofe ucraniana. Ela exacerbou as pressões inflacionárias, com a disparada dos preços das commodities, em especial as de energia. Mais que isso, não só retardou a normalização das cadeias de produção global, uma outra causa do aumento geral de preços, como acentuou a tendência de sua reorganização em outras bases, mais seguras, o que envolverá “redundâncias” na produção e suprimento, assim como ampliação de estoques. Resultado: “pressões inflacionárias mais prolongadas na produção global de bens”.

A este choque brutal de oferta, que se seguiu a outros trazidos pela pandemia, a tarefa do BC será a de reagir aos impactos secundários das altas de commodities em um terreno já hostil e movediço. Os efeitos da guerra sobre preços fundamentais da economia estão longe de terem se esgotado. Por isso, o Copom diz ter optado por uma “trajetória de juros mais tempestiva do que a embutida em seus cenários”.

A tradução desta preocupação foi a elaboração de um cenário alternativo, diferente do cenário de referência (que substituiu um anterior cenário básico), o que trouxe ruídos à comunicação do BC. Sua premissa, porém, é razoável: não faz muito sentido projetar em um cenário de referência uma cotação do petróleo que resulta de uma situação extraordinária que pode não perdurar. A cotação tomada como norte é US$ 120 o barril, e, na alternativa, abaixo de US$ 100 para 2022, mantendo-se a pior hipótese para 2023, para o qual a política do BC está a partir de agora inteiramente voltada.

Assim, mesmo com um câmbio mais apreciado que o utilizado para o cenário de referência da penúltima reunião (R$ 5,05 ante R$ 5,45), e as expectativas manifestadas no boletim Focus, seria preciso uma Selic de 12,75% para levar a inflação a 7,1% neste ano e a 3,4% em 2023, quando os juros se reduziriam a 8,75% (8% na projeção da ata anterior). As projeções dos preços administrados deram um salto para 9,5% (ante 6,6% antes) em 2022 e 5,9% (antes 5,4%) em 2023. Ao fim do horizonte relevante, houve aumento de 0,75 ponto percentual, o que levou o BC a pregar uma política monetária “ainda mais contracionista”.

Com peso maior no cenário alternativo, o BC constatou que 2022 terá uma inflação acima do teto superior do intervalo de tolerância (de 5%) e ao “redor da meta” em 2023, que é de 3,25%. Para essa avaliação contribuiu interpretação mais positiva, no balanço de riscos, da situação fiscal, que dá origem a uma “assimetria altista” para a inflação e ameaça as expectativas de desancoragem. O BC julga agora que o risco de desancoragem já está sendo embutido nas expectativas de inflação e nos preços dos ativos usados em seus modelos.

Ao elevar a Selic para 11,75%, o Copom sinalizou com outro aumento de 1 ponto percentual, que deveria ser o ponto final no ajuste, com os juros a 12,75%, suficientes para “a convergência para patamar em torno da meta no horizonte relevante”, isto é, 2023. A realidade pode ser diferente e os choques nos preços “maiores ou mais persistentes”. Isso obrigaria o BC a novos aumentos da taxa básica de juros. O câmbio tem colaborado provisoriamente para amortecer os impactos da alta das commodities, papel que não jogou nos dois últimos anos. A cotação do dólar chegou a R$ 4,91 ontem, com desvalorização perto de 12% no ano.

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