quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Lula lidera disputa mesmo em redutos conservadores

Valor Econômico

Há sérias dúvidas de que Bolsonaro consiga vencer sua alta rejeição apenas distribuindo dinheiro

O principal adversário que o presidente Jair Bolsonaro terá de suplantar para vencer as eleições presidenciais é ele próprio. A pesquisa do Ipec divulgada ontem, assim como outras que mostram os desdobramentos das intenções de voto por Estado, indicam amplo favoritismo de Luiz Inácio Lula da Silva. Se Bolsonaro chegou à Presidência na onda de rejeição ao PT, Lula agora nada bem na maré da rejeição a Bolsonaro. Em Estados relevantes onde o atual presidente teve confortável vantagem em 2018, como São Paulo, ele está agora atrás de Lula por uma boa margem.

Campanhas sempre reservam muitas surpresas e o cenário pode até mudar radicalmente, mas a tendência atual é desfavorável ao presidente. Nenhum ocupante do Palácio do Planalto esteve em situação tão ruim no início da campanha eleitoral como Bolsonaro está agora.

Diante da situação desesperadora, o presidente e seus aliados do Centrão abriram os cofres públicos para tentar reverter o quadro, no maior pacote de estímulos à atividade econômica e para programas sociais às vésperas de uma disputa presidencial. O início do pagamento de um Auxílio Brasil maior, de R$ 600, deve melhorar um pouco sua posição nas pesquisas eleitorais. A rejeição ao presidente entre os que recebem o auxílio tende a diminuir sensivelmente, mas isso não tem ocorrido com a mesma intensidade entre os que não o recebem - e que são maioria.

Os que recebem auxílio financeiro concentram-se no Nordeste, um reduto fiel a Lula. Bolsonaro pode ganhar votos de eleitores na região com o dinheiro que está despejando, mas é difícil haver migrações em massa. Para o eleitor da região, Lula é o criador do programa Bolsa Família e não de um simulacro com forte odor eleitoreiro. Os votos do Nordeste fazem muita diferença em uma eleição apertada, mas o destino se jogará, como sempre, no Sudeste - onde o presidente agora não vai bem. Um exemplo: Fernando Haddad, candidato petista, no primeiro turno de 2018 obteve 6,4 milhões de votos a mais que Bolsonaro nos Estados nordestinos. Bolsonaro, apenas com os votos angariados em São Paulo, mais que anulou essa diferença - obteve 12,37 milhões, contra os 3,8 milhões do rival.

Ainda que Lula tenha um eleitorado maior que Haddad, em Estados-chave ele mantém algo parecido com a votação do PT nas últimas eleições - é Bolsonaro quem desaba. Em Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do país, o Ipec aponta vantagem de 42% para Lula, ante 29% de Bolsonaro. Haddad no primeiro turno de 2018 teve 41% dos votos e Bolsonaro 58%,1%. No Rio, Lula melhora a situação e está em empate técnico com Bolsonaro (41% a 37%), mas em 2018 Haddad lá obteve quase 37% dos votos.

No maior colégio, São Paulo, Lula puxa mais votos que Haddad (intenção de voto de 43% e votação de 32% em Haddad), enquanto Bolsonaro, por enquanto, é a sombra do que foi na eleição anterior: 29% ante votação de 67,9% em 2018. A região Sudeste, onde Lula está a frente, abriga 42% do eleitorado do país. Mas a rejeição a Bolsonaro também o coloca atrás do petista em outros redutos conservadores. No Rio Grande do Sul, onde Bolsonaro teve 63% dos votos em 2018, ele tem agora 35% das intenções de voto, ante 40% de Lula.

Os resultados do Ipec insinuam que Bolsonaro pode estar perto de ter atingido seu teto eleitoral. No primeiro turno, teria 32% dos votos. No segundo, subiria para 35%, o que é quase nada. Sua rejeição é um dos motivos principais. Ela oscila entre 46% no Ipec e 53% no Datafolha - e é muito alta em todas. Há sérias dúvidas de que consiga baixá-la apenas distribuindo dinheiro.

A rejeição a Lula, porém, pode estar subestimada e crescer no decorrer da campanha, que começa hoje. Os holofotes que iluminam principalmente o péssimo governo de Bolsonaro se voltarão também para Lula e o passado: Dilma, petrolão, mensalão etc. Além disso, a economia deixou de apresentar um cenário bastante desfavorável ao governo, abrindo uma janela de crescimento - em grande parte graças aos estímulos eleitoreiros oficiais -, que irá se fechar após as eleições.

Faltam ainda na equação eleitoral os candidatos do PDT, Ciro Gomes, estacionado entre 7% e 9%, e do MDB, Simone Tebet, parada nos 2%. Uma campanha cruenta entre os dois favoritos, como a que se prevê, pode atrair atenções e votos para Tebet, que tem o terceiro maior tempo de TV. Por enquanto, porém, são apenas possibilidades.

Campanha eleitoral será teste de civilidade

O Globo

O país espera que os candidatos mantenham o tom demonstrado na cerimônia de posse do TSE

A posse dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski como presidente e vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foi cercada de simbolismo, num momento-chave para a democracia brasileira: o início da campanha para as eleições gerais deste ano. Os dois responsáveis por conduzi-las foram oficializados nos novos cargos diante da presença das maiores autoridades da República e dos principais postulantes à Presidência.

Estavam na cerimônia em Brasília os dois líderes nas pesquisas de intenção de voto — o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva —, os candidatos Ciro Gomes e Simone Tebet, assim como os ex-presidentes Michel Temer, Dilma Rousseff e José Sarney, os presidentes do Senado e da Câmara, governadores, prefeitos, ministros de Estado, ministros do STF e seu presidente, ministro Luiz Fux. É exatamente esse grau de deferência ao cumprimento da lei e de respeito a adversários políticos que o Brasil espera e de que precisa na campanha eleitoral que se inicia.

“Somos a única democracia do mundo que apura e divulga os resultados no mesmo dia. Isso é motivo de orgulho nacional”, afirmou Moraes em seu discurso, uma defesa enfática da Justiça Eleitoral, do sistema de votação e das urnas eletrônicas. A democracia depende de direitos políticos básicos, como a liberdade de expressão, reunião e manifestação. Igualmente importante é a infraestrutura institucional. Além de partidos e veículos de imprensa livres, uma democracia depende da Justiça para dirimir dúvidas e fazer valer o que diz a lei. A presença do presidente e de ex-presidentes no TSE reforça o compromisso com o respeito às decisões dos tribunais eleitorais. Por isso merece ser amplamente valorizada.

Dado o histórico de Bolsonaro, os eleitores precisarão se manter atentos. O presidente é um contumaz propagador de informações falsas sobre as urnas eletrônicas. Já ensaiou alguns recuos antes de desferir novos ataques ao Judiciário e ao próprio Moraes. Não se sabe o tipo de comportamento que Bolsonaro adotará nas manifestações convocadas por sua campanha para o próximo dia 7 de setembro. E ele ainda deve ao Brasil uma declaração convincente de que aceitará e respeitará o resultado das urnas em outubro, mesmo que não seja o vencedor. Sem “mas” nem nenhum tipo de ameaça velada.

Lula, que volta e meia flerta com regimes e ideias autoritárias, como as mal disfarçadas tentativas de controle da imprensa, já mostrou respeitar o processo eleitoral. O desafio para ele é manter a civilidade na campanha, mesmo que futuras pesquisas mostrem uma perda de apoio à sua candidatura. Nenhum comportamento extremista de Bolsonaro justifica que os demais candidatos incorram no erro de tratar como inimigos os adversários políticos.

Candidatos e eleitores devem sempre lembrar o óbvio: cidadãos têm visões de mundo distintas e buscam objetivos e prioridades diferentes. Quando discordam, não é necessariamente porque sejam canalhas ou ignorantes. O respeito civilizado à discordância é a alma da democracia. Diante dos eventuais riscos que permeiam a campanha deste ano, o papel do TSE será crucial. Tanto para dissuadir comportamentos inadequados como para punir aqueles que tentarem passar por cima da lei.

Desinteresse por Congonhas reflete incerteza política e modelo falho

O Globo

Apenas uma empresa apresentou proposta pelo aeroporto mais atraente na nova rodada de privatizações

Não há reportagem sobre a privatização dos aeroportos que deixe de lançar mão do chavão “joia da coroa” para definir Congonhas, em São Paulo. Pudera. São mesmo superlativos os números do terminal incluído na sétima rodada de concessões, cujo leilão é previsto para amanhã. Com movimento de 22 milhões de passageiros antes da pandemia e previsão para até 30 milhões ao longo da concessão, Congonhas é o único dos cinco aeroportos mais movimentados do país — chegou a ser o segundo e no ano passado foi o quarto — ainda nas mãos da Infraero. Mas nem isso serviu para atrair mais de um interessado.

Apenas o grupo espanhol Aena apresentou proposta. Acredita-se que levará o terminal pelo lance mínimo de R$ 740,1 milhões e investimentos de R$ 3,3 bilhões apenas em Congonhas. Todos os outros possíveis interessados desistiram — entre eles a brasileira CCR, a suíça Zurich, a alemã Fraport e a francesa Vinci. O desinteresse põe em questão a rodada que o governo insistiu em fazer neste mês para dar impulso tanto à campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro quanto à do ex-ministro da Infraestrutura Tarcísio de Freitas ao governo de São Paulo.

O principal motivo para as desistências é justamente a incerteza política. Não apenas porque se desconhece o resultado da eleição, mas porque o próprio Bolsonaro tratou de criar um cenário de insegurança para o investidor estrangeiro com suas ameaças veladas de desrespeitar o resultado das urnas caso lhe seja desfavorável. O risco político aumenta o custo dos investimentos a um ponto em que certos negócios deixam de fazer sentido. Um leilão num cenário de maior estabilidade teria com certeza resultado melhor.

Outro fator que desestimulou os investidores foi o modelo adotado. O vencedor será obrigado a levar com Congonhas outros dez aeroportos menores, em que terá de investir mais R$ 2,5 bilhões. Como são em geral deficitários, prejudicarão a gestão do ativo principal. É verdade que, nos leilões de privatização, acoplam-se ativos mais atraentes a outros menos rentáveis para levar o investimento aonde o interesse público é maior que o comercial. Mas desta vez, aparentemente, houve exagero. A “joia” de Congonhas foi colocada numa coroa cheia de bijuterias sem valor.

Não há dúvida de que privatizar os aeroportos é essencial para modernizar a infraestrutura brasileira e desvencilhar o Estado depauperado de tarefas que não são sua vocação. Mas o modelo de venda precisa ser desenhado de modo a atrair a maior competição possível — e a valorizar ao máximo os ativos em disputa.

Por isso fez bem o governo em suspender a venda do Aeroporto Santos Dumont, que antes também estava na sétima rodada, para leiloá-lo com o Aeroporto Tom Jobim/Galeão, cuja concessão foi devolvida. Isso gerará um negócio mais atraente para o comprador e mais sensato para os passageiros e para a cidade do Rio. Teria feito melhor ainda se tivesse concebido um modelo mais eficaz para vender também Congonhas.

Zona de conforto

Folha de S. Paulo

Lula e Bolsonaro escolhem platitudes e ataques, em vez de debater o que importa

Com o início oficial da campanha eleitoral nesta terça (16), os dois candidatos que lideram a corrida ao Palácio do Planalto foram às ruas pedir votos e seguiram um roteiro bastante previsível.

Jair Bolsonaro (PL), em busca da reeleição, encontrou-se com líderes religiosos em Juiz de Fora (MG) e fez comício no local onde levou uma facada na reta final da campanha de 2018. Atribuiu sua vitória a um milagre e disse ter salvado o país do socialismo.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), líder das pesquisas, foi à porta de uma fábrica em São Bernardo do Campo (SP), onde iniciou a carreira de sindicalista antes de se lançar na política. Chamou o adversário de mentiroso e genocida.

Ambos fizeram escolhas cômodas, revisitando territórios conhecidos em busca de audiência amistosa. O objetivo principal era garantir imagens espetaculosas para os telejornais e o horário de propaganda eleitoral, que estreia no rádio e na televisão na próxima semana.

Ao registrar suas candidaturas no Tribunal Superior Eleitoral, os dois apresentaram há poucos dias seus planos de governo, cumprindo como mera formalidade a exigência imposta pela legislação a todos que disputam cargos executivos.

Causa desalento folhear os documentos protocolados, repletos de platitudes e promessas irrealistas —que estão longe de oferecer respostas para os desafios enfrentados pelo país após anos de estagnação econômica e crise sanitária.

Faltando um mês e meio para o primeiro turno da votação, é lamentável que os candidatos tenham feito de tudo para reduzir as oportunidades em que estarão frente a frente para expor seus pontos de vista e debater propostas.

Nas últimas semanas, dois encontros organizados por veículos jornalísticos foram cancelados devido ao desinteresse dos dois principais contendores. Há outros quatro programados, sem confirmação de que ambos estarão presentes.

Entre os presidenciáveis com maior pontuação nas pesquisas, somente Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) se expuseram a sabatinas com jornalistas profissionais. Bolsonaro e Lula têm preferido conversas com personalidades da internet, em que são raros os questionamentos incisivos.

Falando na USP, Lula desafiou Bolsonaro a um debate com ele e os estudantes. Como até agora o petista só confirmou presença em um evento, fica a impressão de que outro confronto só lhe interessa se tiver a torcida ao seu lado.

Debates proporcionam a chance de examinar os candidatos e suas ideias longe da zona de conforto erguida pelos estrategistas dos partidos. Lula e Bolsonaro mostram pouco-caso com uma parte essencial do processo democrático.

Amarelo piscante

Folha de S. Paulo

Sem licitação, contrato acrescenta riscos à já caótica manutenção dos semáforos

Em decisão apertada (3 votos a 2), o Tribunal de Contas do Município autorizou a prefeitura paulistana a incluir um aditivo de quase R$ 1,8 bilhão no contrato da PPP (Parceria Público-Privada) da Iluminação Pública para a manutenção e modernização de semáforos.

A deliberação dá sinal verde para que a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) firme sem licitação acordo com a empresa Iluminação Paulistana S/A, que receberá a soma ao longo de 17 anos —a PPP foi fechada em 20 anos, mas já está em vigor há três.

O arranjo é o mais novo capítulo de um processo tumultuado. Auditoria do TCM já havia questionado as razões do aditivo. Decerto, a ausência de concorrência pública lança dúvidas sobre o método e, principalmente, as cifras adotadas.

Tampouco está claro se há a expertise necessária para o sistema de iluminação pública absorver a rede semafórica —caberá ainda à empresa apresentar documentos que demonstrem capacidade técnica e financeira para tanto.

Desde 2017, a manutenção é dividida entre funcionários da Companhia de Engenharia de Tráfego, ligada à prefeitura, e empresas terceirizadas. Esses contratos vêm sendo aditados emergencialmente.

O improviso expõe uma incúria que se arrasta há anos na zeladoria dos mais de 6.000 cruzamentos com semáforos da metrópole.

Classificada como "caótica" pelo Tribunal de Contas, a situação se agravou neste ano. Segundo dados da CET, no primeiro semestre o número de furtos de aparelhos cresceu 47% em relação ao mesmo período de 2021 —foram 3.475 ocorrências, ante 2.357.

Em maio, a Folha noticiou que 3 em cada 10 semáforos apagados não funcionavam devido a furtos de cabos ou vandalismo. A grande maioria, contudo, ocorre em razão de desgaste de componentes defasados, quedas de energia em dias de chuva e até mesmo acidentes.

Mais do que reduzir drasticamente a reincidência crônica na quebra desses equipamentos, cuja inoperância por vezes se estende dias a fio, espera-se da futura parceria a modernização da rede, com sistemas no-break, que permitem o funcionamento em caso de apagões, e estruturas mais resistentes para dificultar ações criminosas.

Avanço tecnológico, monitoramento remoto e fiscalização rígida podem fazer a diferença num trânsito já suficientemente conturbado e, sobretudo, na vida de milhões de motoristas e pedestres.

Dinheiro curto para tantas promessas

O Estado de S. Paulo

Candidatos à Presidência da República ainda têm de explicar como arranjarão verbas para cumprir suas promessas e como ficarão as contas públicas com tantos gastos adicionais

Boas intenções podem ter efeitos desastrosos – para o Tesouro e para maioria dos brasileiros – quando o governo gasta sem planejar e sem respeitar os limites de suas contas. Este é o recado implícito na advertência de representantes do setor financeiro aos candidatos à Presidência da República. O recado inclui uma cifra: será perigoso ampliar a despesa além de R$ 70 bilhões, no próximo ano, para manter o Auxílio Brasil de R$ 600 e outros benefícios prometidos na campanha eleitoral. Essa despesa adicional será tolerável, esclarece a mensagem, até a definição de uma nova regra de controle fiscal. Uma nova regra será necessária se for abandonado o teto de gastos, formalmente ainda em vigor. O teto, estabelecido em 2016 por emenda à Constituição, limita o aumento da despesa à inflação do ano anterior.

A saúde das contas públicas é importante para todos, embora o assunto possa parecer distante e misterioso à maior parte das pessoas. A advertência aos candidatos partiu de representantes de bancos e de fundos de investimento. O setor financeiro reage com rapidez a sinais de insegurança nas contas oficiais, especialmente quando a dívida pública parece avançar em caminho perigoso.

Juros mais altos, custos maiores para o Tesouro e instabilidade cambial são alguns efeitos bem conhecidos. Dólar mais caro, mesmo quando há superávit no comércio exterior, pode ser consequência de algum desmando ou de alguma frase imprudente de uma alta autoridade. A criação desse tipo de incerteza tem sido uma das marcas da atuação presidencial de Jair Bolsonaro. O ministro da Economia, Paulo Guedes, levanta de vez em quando a bandeira da seriedade fiscal, mas acaba geralmente aceitando as pretensões de seu chefe e dos aliados do Centrão. Se tivesse agido de outra forma, talvez estivesse, há tempos, cuidando de alguma atividade fora do Ministério e, provavelmente, fora do Executivo federal.

Não é preciso ter especial familiaridade com os arcanos da política econômica para subscrever as advertências do setor financeiro aos candidatos. Afinal, não é difícil diferenciar a demagogia dispendiosa de programas sociais focados, eficientes e inclusivos. Os custos da irresponsabilidade fiscal são notórios, e as consequências da gastança populista, conhecidas: benefícios passageiros, seguidos de rombos fiscais, inflação, juros altos e dificuldades maiores para os mais pobres. Quanto maior e mais irresponsável a gastança, mais cedo termina a festa e maior é a conta passada aos convidados mais frágeis.

A inflação, um dos efeitos da gastança mal planejada e insustentável, é sempre mais dolorosa para os menos abonados. E é tanto mais dolorosa quanto maior o peso dos bens e serviços essenciais no desarranjo dos preços. Quando o dinheiro mal chega a cobrir os gastos com comida, transporte, gás de cozinha e energia elétrica, como tem ocorrido no Brasil, a miséria se agrava, espalha-se e cobra um preço altíssimo pela irresponsabilidade fiscal e pela má condução dos assuntos públicos.

Sem metas de crescimento econômico, sem estratégia de modernização, sem responsabilidade fiscal e sem efetivo programa de inclusão social, a gestão Bolsonaro criou com o Auxílio Brasil um arremedo de apoio aos pobres. Exigências mantidas por muitos anos, como a escolarização dos filhos e a vacinação, foram abandonadas. Nem houve surpresa. Ao desprezar esses critérios, o presidente da República estendeu a novas áreas a destruição das políticas de educação e saúde, uma das características mais notórias de seu mandato.

Dificilmente um candidato rejeitaria o compromisso de manter o aumento do Auxílio Brasil e, talvez, outros benefícios. Numa discussão honesta, seria preciso distinguir os verdadeiros pobres e os beneficiários selecionados como meros apoiadores do presidente Bolsonaro. Além disso, é necessário rever o Auxílio Brasil para torná-lo um programa de sustentação social merecedor desse rótulo. Enfim, ainda faltará compatibilizar esses gastos com a responsabilidade fiscal, condição de qualquer governo sério. 

A boiada dos reajustes salariais

O Estado de S. Paulo

É irônico, mas revelador, que o mesmo Orçamento que garante altos salários do Judiciário, Legislativo e Ministério Público não tenha espaço para o benefício social de famílias vulneráveis

A situação repete-se a cada quatro anos, normalmente nos últimos meses do mandato do presidente da República. Quando as atenções da população estão voltadas às eleições majoritárias, a burocracia estatal trabalha silenciosamente para incluir generosos reajustes salariais no Orçamento que será executado pelo futuro governo. A diferença, neste ano, é que o pagamento do bilionário quinhão à elite do funcionalismo público assume ares de absurdo, uma vez que não há espaço suficiente para assegurar sequer a manutenção do piso de R$ 600 para o Auxílio Brasil a partir de janeiro. Como já criticamos neste espaço, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi o primeiro a escancarar uma insensibilidade comum à cúpula dos Poderes ao aprovar a autoconcessão de um aumento de 18% nos vencimentos de servidores e juízes de todas as instâncias. Não seria o único. Ao Judiciário, seguiu-se o Ministério Público (MP). O Conselho Nacional do Ministério Público Federal (CNMP) até havia proposto um aumento mais modesto, de 13,5%, mas, imbuído do “princípio da paridade”, o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu seguir o mesmo porcentual acertado no STF.

Tanto o aumento do Judiciário quanto o do Ministério Público precisam do aval do Congresso para serem incluídos no Orçamento do ano que vem, mas a maioria dos deputados e senadores não costuma se opor a esse movimento. Naturalmente, eles também pretendem aproveitar o ensejo para elevar seus próprios rendimentos. Como revelou o Estadão, o assunto já vem sendo tratado pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O índice que está em análise no Legislativo é de 9% e proporcionaria aos parlamentares um salário de R$ 36,8 mil.

Como proteção das prerrogativas institucionais do Judiciário, Legislativo e Ministério Público, a Constituição de 1988 deu-lhes autonomia administrativa e financeira. De toda forma, é preciso que, ao exercerem essa autonomia, todos tenham presentes que o Tesouro é um só, com recursos limitados, e que o País tem muitas outras necessidades. 

Para além da insensibilidade, o que coroa a avacalhação do processo orçamentário é o fato de que nenhum desses reajustes viola o teto de gastos, dispositivo completamente desmoralizado pelo Executivo. Como mostrou a jornalista Adriana Fernandes em sua coluna no Estadão, foram os dribles no teto, alterado seis vezes pelo Congresso a pedido da União, que criaram o espaço artificial para os aumentos salariais, como a Emenda Constitucional (EC) 114/2021, que institucionalizou o calote dos precatórios da União. Manobras que antes comprometeram a credibilidade do País são as mesmas que hoje avalizam o discurso de pretensa responsabilidade fiscal por parte do comando do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público na defesa do mais puro corporativismo.

Considerando que boa parte dos congressistas deve disputar eleições em outubro, todas as propostas deverão ficar em compasso de espera por alguns meses. Provavelmente serão retomadas e expeditamente debatidas entre novembro e dezembro, quando a maioria da população estiver envolvida com o período de festas de fim de ano e, neste ano em particular, com a Copa do Mundo. É o timing perfeito para deixar a boiada passar e aprovar o Orçamento de 2023, que tem tudo para ser a obra-prima do governo Jair Bolsonaro e atualizar o conceito criado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do que seria uma verdadeira herança maldita. Chega a ser irônico, mas sobretudo revelador, que o mesmo Orçamento que garante robustos salários para a elite do funcionalismo público e a cúpula do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público não tenha espaço para pagar um benefício social a milhões de famílias em situação de absoluta vulnerabilidade e insegurança alimentar sem que, para isso, seja preciso violar o teto de gastos e alterar a Constituição pela sétima vez. Talvez não haja melhor imagem do Brasil real, que insiste em nutrir enormes e indecentes desigualdades. 

A asfixia dos hospitais filantrópicos

O Estado de S. Paulo

Governantes querem capitalizar o prestígio do SUS nas eleições, mas descapitalizam os hospitais parceiros

O hospital paulista A.C. Camargo, referência no tratamento de câncer, encerrou a parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS) em razão da insuficiência dos repasses públicos. É mais um tijolo a se despedaçar em um edifício que está colapsando sob a incúria de Brasília.

O SUS é fundamentalmente um serviço público prestado por entes privados. A rede hospitalar estatal é insuficiente, ineficiente e cara. As Santas Casas e hospitais filantrópicos respondem por 50% dos atendimentos do SUS. Nos casos de alta complexidade, o porcentual sobe para 70%. Em mais de 800 municípios, essas entidades beneficentes são o único serviço de saúde.

Em tese, dada a missão desses hospitais de cuidar dos desfavorecidos, a parceria com o poder público é uma relação de complementariedade perfeita: os hospitais prestam serviço à população, recebendo ajuda financeira do Estado. No entanto, na prática, as administrações públicas, sobretudo o governo federal, capitalizam o prestígio do SUS enquanto descapitalizam seus prestadores a ponto de asfixia.

Desde o Plano Real, em 1994, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor acumula reajuste de 636% e o salário mínimo, de 1.597%. Já a tabela do SUS foi reajustada em 93% no período. Com abnegação e eficiência, os hospitais filantrópicos cobrem parte desse déficit, prestando, por exemplo, serviços a um custo oito vezes menor que os hospitais públicos federais. Ainda assim, a cada R$ 100 gastos, só R$ 60 são cobertos pelo Estado. O déficit anual dos hospitais filantrópicos é da ordem de R$ 10,9 bilhões; as dívidas, de R$ 23 bilhões – e subindo. Nos últimos anos, mais de 300 hospitais filantrópicos fecharam as portas.

Repasses estaduais, melhorias na gestão ou créditos a juros menos escorchantes têm sido paliativos incapazes de conter o sangramento a que estes hospitais estão submetidos pela defasagem da tabela.

Em mais uma cortesia com chapéu alheio, o Congresso elevou o piso salarial da enfermagem. Por óbvio, ninguém, a começar pelos hospitais filantrópicos, é contra a boa remuneração dos profissionais de saúde. Mas o impacto é estimado em R$ 6,3 bilhões e nenhuma fonte de custeio foi indicada. Demissões e reduções das ofertas mostram-se inevitáveis.

Já antes da pandemia, 7 em 10 brasileiros dependiam do SUS para cuidados médicos. Com as sequelas econômicas da crise, a demanda por procedimentos eletivos represados e o envelhecimento da população, a pressão só aumenta. Mas o financiamento da saúde filantrópica só encolhe. Enquanto isso, governo federal e cúpula do Congresso operam um dos mais escandalosos e disfuncionais esquemas envolvendo o dinheiro público, o orçamento secreto. Se os hospitais filantrópicos, especialmente as Santas Casas de Misericórdia, não forem resgatados da situação escorchante a que são submetidos pelo descaso de Brasília, em breve boa parte dos 150 milhões de brasileiros atendidos pelo SUS não poderá contar sequer com a misericórdia dessas instituições que vêm fazendo, há séculos, tanto pela população.

Nenhum comentário: