quinta-feira, 25 de maio de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Regime fiscal passa na Câmara com mais gastos

Valor Econômico

Ao tentar dar um jeitinho nas regras que propôs, governo parece descrer que conseguirá aumentar a arrecadação, sobre a qual repousa o regime proposto

Com apoio da maioria dos partidos, a Câmara aprovou o novo regime fiscal, que assegura aumento de gastos em quaisquer circunstâncias, mas afasta o temor de um descontrole da dívida pública. No Senado, o projeto de lei complementar deve ter o mesmo destino e ser aprovado com facilidade. O horizonte de gastos públicos e as regras para direcioná-los foram o mínimo denominador comum a selar a união do Centrão e de legendas de esquerda que permite a Lula governar. A Câmara fez alguns aperfeiçoamentos na proposta original que, por sua vez, não parece estruturada para cumprir o que promete, estabilizar o endividamento. A tentativa, parcialmente bem-sucedida, de queimar a largada do novo regime com o aumento máximo de gastos reais permitido pelas regras propostas (2,5%) sugere falta de compromisso com elas.

Os presidentes das duas Casas, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), cumpriram o prometido e se engajaram para dar celeridade, quorum e apoio ao novo regime fiscal, o que tornam dispensáveis os auto-elogios oficiais sobre vitória da base governista no Congresso - ela continua frágil. O governo Lula fez sua parte, cumpriu o acordo e liberou emendas prometidas. As amizades que compuseram este pacto são provisórias. Antes da votação, os dirigentes do Congresso traçaram uma linha vermelha sobre os limites dessa cooperação: seja por quais motivos forem, a eventual revisão do que já foi aprovado pelos parlamentares no governo anterior não terá chances de sucesso. Isso inclui a privatização da Eletrobras, o marco do saneamento e a autonomia do Banco Central.

Boa parte das correções feitas pelo relator, o deputado Claudio Cajado, foram aprovadas. Merecem destaque as correções de rota obrigatórias, como as revisões periódicas da trajetória inter-anual da meta fiscal, a adequação dos gastos diante do descumprimento do objetivo, como contingenciamento das despesas, proibição de concursos e contratações e, depois, em caso de recidiva de fracasso do governo, proibição de reajustes ao funcionalismo público, entre outras. As exceções de despesas que comporiam o teto foram bastante reduzidas. Foram incluídos os dispêndios para piso de enfermagem e os gastos com o Fundeb. Nada disso existia na proposta original e o acréscimo foi positivo.

Houve duas tentativas do governo de ampliar o limite de gastos na estreia do novo regime, ambas, em princípio, aceitas pelo relator. A primeira era que, independentemente do comportamento das receitas, as despesas reais poderiam crescer pelo máximo permitido, isto é, 2,5% além do IPCA em 2024. A possibilidade foi corrigida, mas nem tanto. Em 2024, valem os 2,5% de expansão real das despesas. No entanto, se em junho, base para a fixação da evolução das receitas em 12 meses, as despesas forem superiores a 70%, o excesso de gastos terá de ser compensado a menos em 2025. A rigor, as previsões, com estrito respeito à regra do novo regime, apontavam algo um pouco acima de 1% para esse aumento.

Esta gambiarra, que provavelmente não se sustentará com os números fechados, pois a arrecadação está perdendo ritmo, pode dar um espaço fiscal para gastos entre R$ 12 bilhões e R$ 20 bilhões, considerando-se a despesa estimada pelos analistas no Prisma Fiscal de maio.

Mas há outro expediente no mesmo sentido, de mais despesas. O prazo de apuração da inflação foi alterado. Na proposta do governo, seria utilizado o IPCA de janeiro a junho e a variação dos preços do segundo semestre seria estimada. O relator sincronizou os prazos da inflação com o da apuração das receitas, isto é, doze meses encerrados em junho. No caso da inflação, porém, a diferença até dezembro será compensada em 2024.

A particularidade é que o IPCA estará perto de seu pico de baixa em doze meses em junho (3,79%, segundo o mais recente Relatório de Inflação do BC), mas, por causa da deflação do ano anterior em junho, julho e agosto, meses que sairão da base de cálculo, será bem mais alto em dezembro. As projeções para o IPCA variam. Ela é cadente no boletim Focus, com previsão de 5,8% na ultima edição. A Secretaria de Política Econômica, na terça, elevou sua estimativa para 5,58%. Assim, haverá mais espaço, de 1,8% a 2%, correspondente ao índice apurado em junho em relação ao efetivo de dezembro, ou seja, algo como R$ 36 bilhões a R$ 40 bilhões adicionais.

A estreia do novo regime não deveria implicar despesas maiores do que as previstas nas próprias regras. As receitas não devem evoluir como esperado e as despesas estão maiores. A segunda avaliação bimestral das contas elevou a estimativa de déficit primário de R$ 107,5 bilhões para R$ 136,2 bilhões, ou 1,3% do PIB. O governo indicou déficit em 2023 de 0,5% do PIB, com margem para -0,75%, ou algo como R$ 80 bilhões. O governo dá a entender, por um lado, que os mecanismos para aumentar as receitas darão certo e conseguirá zerar o déficit no ano que vem. Por outro lado, ao tentar dar um jeitinho nas regras que propôs e arrumar mais recursos de forma heterodoxa, parece descrer que conseguirá aumentar a arrecadação, sobre a qual repousa o regime proposto.

Novo arcabouço será pretexto para aumentar impostos

O Globo

Texto aprovado na Câmara é melhor que o enviado pelo governo, mas só funcionará se a arrecadação subir

A Câmara dos Deputados aprovou enfim o projeto do novo arcabouço fiscal, que precisa passar pelo crivo do Senado. A última versão do relator Cláudio Cajado (PP-BA), aprovada por 372 votos a 108, traz avanços em relação à original, enviada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Aprová-la será melhor do que nada, já que a regra fiscal anterior, o teto de gastos, é letra morta. Ainda assim, há várias dúvidas sobre sua eficácia para estabilizar a dívida pública e uma certeza: para ela funcionar, a arrecadação precisará subir. O novo arcabouço será, portanto, o pretexto de que o governo lançará mão para elevar a carga tributária.

Entre os últimos ajustes positivos está o endurecimento na permissão para gastar em 2024. Na primeira versão do relator, a limitação ao aumento das despesas no ano que vem seria inócua, pois elas cresceriam automaticamente no percentual máximo permitido (2,5%). Cálculos de economistas independentes estimavam uma ampliação da ordem de R$ 80 bilhões. Depois da pressão, o relator atrelou o aumento nos gastos ao crescimento da receita. Eventuais brechas serão descontadas no ano seguinte.

Cajado também manteve dentro da base de gastos as despesas do fundo para financiar o governo do Distrito Federal (dependente de repasses da União) e do Fundeb, voltado para educação básica (embora, no caso deste último, a base também cresça na medida da elevação constitucional prevista para o fundo). Como já determinara no primeiro parecer, o governo sofrerá sanções caso não cumpra as metas fiscais. Entre as limitações está a proibição de criar cargo, emprego ou função que aumente a despesa. Com descumprimento por dois anos consecutivos, ficarão vetados concursos, aumentos ou reajustes para o funcionalismo. Haverá, portanto, alguma trava à irresponsabilidade fiscal.

Uma mudança negativa está na regra adotada para cortes em caso de descumprimento da meta. Na versão anterior, o governo definiria onde segurar gastos. Pelo que foi aprovado, haverá bloqueio na mesma proporção em investimentos, custeio da máquina e emendas parlamentares (critério chamado de “contingenciamento linear”). A medida protege os congressistas e suas bases eleitorais, em detrimento de grandes projetos de investimentos e das necessidades do cidadão.

Embora positivo na comparação com a proposta do Ministério da Fazenda, o texto deixa muito a desejar. São confusas e incertas as regras necessárias para garantir que o governo, qualquer que seja, pare de elevar a dívida pública rumo a patamares insustentáveis. O novo arcabouço depende de forte aumento nas receitas para funcionar e livra o presidente de punição por crimes fiscais (como os que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff). A alta obrigatória nos gastos libera o governo para adotar toda sorte de medida populista, do aumento do salário mínimo a subsídios e agrados a empresários amigos. Para a sociedade, o custo provável será maior carga de impostos.

O governo informou que pretende zerar o déficit primário em 2024 e alcançar superávits em torno de 0,5% do PIB em 2025 e 1% em 2026. Após quase cinco meses no poder, passou na Câmara uma nova regra fiscal com teto móvel, do jeito como queria. Em caso de fracasso — e hoje ele é mais provável que o êxito —, não poderá lançar a culpa sobre nenhuma “herança maldita”.

A regra e a realidade

Folha de S. Paulo

Lula e Congresso se acertam em torno de alta do gasto e contas mostram piora

aprovação por larga margem do texto-base da nova regra fiscal pela Câmara dos Deputados confirma que, a despeito de diferenças ideológicas, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o comando do Congresso firmaram um entendimento para a continuidade da expansão das despesas públicas.

A aliança já havia sido posta em prática mesmo antes da posse de Lula, quando foi concebida a PEC da Gastança —que autorizou desembolsos de mais de R$ 2 trilhões neste 2023, R$ 100 bilhões acima do registrado em um ano eleitoral já perdulário sob Jair Bolsonaro (PL).

Se a agenda petista é desde sempre a da ampliação do Estado, deputados e senadores, a começar pelos do centrão, querem assegurar o quinhão orçamentário reforçado na administração anterior.

Existe ao menos a compreensão, nos setores mais racionais do Executivo e do Legislativo, de que é preciso indicar algum limite para a alta dos gastos e algum plano para o controle da dívida pública —do contrário, corre-se o risco de descontrole imediato da inflação, das cotações do dólar e dos juros.

Foi o que se fez com o texto aprovado na terça (23) por 372 votos a 108. O diploma estabelece, no essencial, que a despesa do governo crescerá acima da inflação a cada ano, em taxa correspondente a 70% da alta da receita, mas com piso de 0,6% e teto de 2,5%.

A fórmula tem lá seu engenho, mas o que interessa no contexto brasileiro é se será capaz de restaurar o equilíbrio das contas do Tesouro e conter, num horizonte visível, a escalada da dívida pública. Nesse aspecto, o otimismo visivelmente excessivo das projeções oficiais acaba de sofrer um baque.

Na revisão orçamentária bimestral, os ministérios da Fazenda e do Planejamento elevaram em nada menos que R$ 28,6 bilhões a previsão de déficit primário (sem contar encargos com juros) para este ano, que passou a R$ 136,2 bilhões.

Contra todas as evidências, o governo mantém a meta de reduzir o rombo fiscal a pouco mais de R$ 50 bilhões em 2023 e a zero em 2024. Enquanto isso, anuncia a todo momento novos gastos e benefícios tributários, inclusive para o despropósito de patrocinar o relançamento dos carros populares.

Como está claro para todos, o ajuste prometido depende de um aumento improvável e exorbitante de uma carga tributária já excessiva, capaz de acrescentar algo como R$ 150 bilhões à arrecadação anual ainda neste mandato.

A regra fiscal, que deve passar sem sustos pelo Senado, dissipa os piores temores sobre o manejo da política econômica sob Lula, mas não as incertezas que alimentam as expectativas de inflação e os juros do Banco Central.

Esperando o relator

Folha de S. Paulo

STF enfim examinará lei do juiz das garantias, cuja implantação gera incertezas

São muitas as incertezas em torno do juiz das garantias —criado por lei que instituiu a separação entre um magistrado responsável pela fase da investigação e outro que se encarrega apenas do julgamento.

Aquele que presidir os inquéritos atuará como zelador dos direitos individuais ou, desvinculado do destino do investigado, se sentirá livre para agir como assistente da acusação, distribuindo prisões preventivas e mandados de busca?

Os processos ficarão mais rápidos, mais lentos ou a mudança não terá impacto? Os custos da medida justificam o bônus que ela produz? São dúvidas legítimas.

Há, também, algumas certezas. Mesmo os que se opõem ao juiz das garantias reconhecem que não se trata de uma invenção que brotou da mente de algum legislador amalucado. O instituto existe em diversos países e sua adoção, no Brasil, vinha sendo debatida já bem antes dos desmandos da Lava Jato, que deram combustível à aprovação do projeto de lei.

Outra ideia indisputável é a de que magistrados devem aplicar as leis, não escrevê-las.

Embora ministros do Supremo Tribunal Federal disponham de amplos poderes monocráticos, não lhes cabe recorrer ao arsenal de prerrogativas que detêm para sentarem-se num processo sob sua análise e, com isso, frustrar a implantação de um diploma aprovado pelo Legislativo e sancionado pelo Executivo.

No entanto era isso o que o ministro Luiz Fux, também relator do caso, vinha fazendo, ao manter parada por mais de três anos a ação judicial que questiona a lei ratificada no Congresso em 2019.

Foi apenas por causa de uma mudança no regimento do STF, promovida pela presidente da corte, Rosa Weber, com o objetivo de restringir o alcance de decisões individuais, que o relator se viu compelido a liberar os autos para julgamento pelo colegiado, que deve ocorrer nas próximas sessões.

A tendência é que o plenário do Supremo valide a medida, embora Fux deva votar contra —o que atenderia a interesses corporativos dos magistrados, que se opõem à criação do juiz das garantias.

Note-se que o argumento mais forte contra o instituto —seu surgimento abrupto, que justificaria modulação temporal para introdução no sistema— fica enfraquecido após os três anos de dormência. Não será surpresa, entretanto, se o STF validá-lo, mas ainda oferecer um novo prazo à mudança.

Os sinais enviados pelo Congresso a Lula

O Estado de S. Paulo

Aprovação folgada do arcabouço fiscal não significa que o governo enfim conseguiu articular sua base, e sim que está cada vez mais subordinado à agenda dos líderes do Congresso

A Câmara dos Deputados aprovou, com folga, o projeto que cria o novo arcabouço fiscal. Com 372 votos a favor e 108 contra, bem mais que os 257 necessários, o governo de Lula da Silva pode finalmente comemorar uma vitória de peso no Legislativo. A proposta ainda precisa do aval do Senado, mas o ambiente da Casa tem sido mais favorável ao Executivo. Para preservar essa inegável conquista, no entanto, é essencial que o governo saiba interpretar os sinais que o Congresso lhe tem enviado.

Foi bastante simbólico que o textobase do arcabouço fiscal tenha sido aprovado na noite de terça-feira, 23 de maio, dia em que, mais cedo, se reuniram para um almoço, na residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL); o ministro da Fazenda, Fernando Haddad; o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto; e empresários com grande influência nos rumos da economia brasileira.

Além de expor a trégua entre Pacheco e Lira, rompidos desde o imbróglio a respeito da tramitação de medidas provisórias nas duas Casas, o evento selou um pacto de lideranças a favor da agenda econômica no Congresso. Como mostrou o Estadão, a presença de representantes de algumas das maiores empresas dos segmentos industrial, financeiro e varejista legitimou, também, a figura do ministro Fernando Haddad como o interlocutor do governo junto ao Legislativo e ao setor produtivo – e a expressiva votação que os deputados deram a favor do arcabouço fiscal também reflete esse entendimento.

Isso, no entanto, em nada se confunde com a construção de uma base de sustentação verdadeiramente sólida no Congresso. Os ajustes que os parlamentares fizeram ao texto impuseram novos limites aos gastos, reduziram exceções a serem contabilizadas nas despesas, resgataram o contingenciamento obrigatório, criaram gatilhos e retomaram sanções, à revelia do que desejava o Executivo.

A boa notícia, para o governo, é que pôde contar com o apoio da maior parte do Centrão – o que inclui cerca de 30% da bancada do PL, partido do expresidente Jair Bolsonaro. A má notícia é que legendas de esquerda e com pastas na Esplanada dos Ministérios, como o PSOL e a Rede, rejeitaram o projeto – e um terço da bancada petista votou a favor da proposta a muito contragosto, apenas por lealdade ao presidente Lula.

Há um mês, em entrevista ao Valor, o vice-presidente da Câmara e presidente nacional do Republicanos, Marcos Pereira (SP), classificou a base de sustentação do governo como “gelatinosa”.

Em vez de procurar culpados pelas evidentes omissões na articulação política entre os ministros, Pereira acertadamente atribuiu a responsabilidade por essas falhas ao “maestro Lula”. Disse, apesar disso, que seu partido votaria a favor das pautas com as quais concordasse, o que se confirmou na apreciação do arcabouço fiscal – dos 39 deputados que registraram voto, apenas 5 se opuseram ao texto.

O governo, entretanto, deve assimilar o fato de que não terá vida fácil no Legislativo. Na terça-feira, após o almoço e antes da aprovação da proposta, Lira e Pacheco traçaram os limites do Congresso. Deixaram claro que não aceitarão rever o entendimento de temas sobre os quais os parlamentares se debruçaram há pouco tempo, como o Marco do Saneamento, a autonomia do Banco Central e a privatização da Eletrobras, mas sinalizaram apoio ao que veem como avanços na agenda econômica, caso do arcabouço fiscal e da reforma tributária, temas que contam com simpatia da maioria dos congressistas.

A paralisia na tramitação das medidas provisórias, as mudanças no parecer do texto que reestrutura a Esplanada dos Ministérios, o adiamento da votação do Projeto de Lei das Fake News, as numerosas Comissões Parlamentares de Inquérito abertas e a quantidade de audiências públicas para ouvir ministros expõem o outro lado dessa mesma moeda. Indicam, portanto, que o governo será mais bem-sucedido se for mais modesto em suas relações com o Legislativo e em suas pretensões políticas.

O valor da autonomia no trabalho por aplicativo

O Estado de S. Paulo

Trabalhadores por aplicativo preferem ter liberdade de escolha a ter direitos, diz pesquisa; por isso, é preciso criar regras que concedam benefícios sem prejudicar a autonomia

Recente pesquisa do Datafolha mostra que 3 em cada 4 trabalhadores por aplicativo preferem manter o atual modelo, com autonomia para escolher a plataforma com a qual querem trabalhar, em vez de uma contratação com carteira assinada, como defendem os sindicatos e o governo de Lula da Silva. Além disso, 9 em 10 dizem aprovar novos direitos, desde que não interfiram na flexibilidade.

Claramente, a liberdade de escolher quando, onde e quanto trabalhar é prioridade. Mas isso é incompatível com as condições de habitualidade e subordinação do emprego celetista. Por outro lado, é preciso garantir um mínimo de proteção contra acidentes, doenças, velhice ou invalidez.

Países do mundo inteiro buscam uma regulação adequada da chamada economia gig (dos “bicos”, em tradução livre), em que serviços pontuais são contratados através da mediação de plataformas digitais. Não são só motoristas e entregadores, mas pedreiros, designers, cabeleireiros e até médicos. Uma regulação ideal otimizaria ao máximo os benefícios das três pontas do triângulo: lucro para as empresas, serviços bons e baratos para os consumidores e boa remuneração e proteção social para os trabalhadores.

O trabalho por aplicativo trouxe evidentes oportunidades para os prestadores de serviços, como flexibilidade, diversidade geográfica, acesso rápido e eficiente à demanda ou segurança nos pagamentos. Mas, como de hábito em novas modalidades de trabalho, os benefícios para empresas e consumidores se consolidaram mais rápido, em detrimento das condições de trabalho. Muitos desafios para os trabalhadores precisam ser enfrentados, como pagamento razoável, benefícios e proteções sociais, segurança, qualificação, representação e equilíbrio de poder.

As plataformas advogam alguma regulação e muitas têm se antecipado e oferecido voluntariamente benefícios como seguro-saúde. Mas, naturalmente, tendem ao mínimo de regulação possível.

O poder público ensaia suas soluções. O Ministério Público do Trabalho tem proposto ações coletivas com a pretensão de enquadrar o trabalho por aplicativo nas características do vínculo empregatício. Mas, em sua primeira manifestação sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal, ainda por decisão monocrática, cassou uma decisão da Justiça do Trabalho que estabelecia vínculo de emprego entre um motorista e um aplicativo de transporte.

O governo criou um grupo de trabalho para discutir uma nova legislação. Mas seus preconceitos ideológicos são indisfarçáveis tanto no diagnóstico quanto no prognóstico. O presidente Lula da Silva e seu ministro do Trabalho, Luiz Marinho, comparam o trabalho por aplicativos a um “regime de escravos”. Marinho fala em “enquadrar” as empresas. O grupo é composto por 15 representantes do governo, 15 das plataformas e 15 dos trabalhadores. Mas os últimos são representados por centrais sindicais, cuja proposta é basicamente aplicar as regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), elaboradas há 80 anos, quando o mundo do trabalho era radicalmente diferente do atual.

O modelo binário – emprego com vínculo ou sem vínculo – claramente não responde a essa nova realidade. No caso do Brasil, a solução poderia ser uma simplificação do regime da CLT ou uma ampliação do MEI (Microempreendedor Individual). O Brasil possui mecanismos para proteger autônomos e microempreendedores. Novos modelos de seguro ou de contribuição ao INSS, tanto dos trabalhadores quanto das empresas, garantiriam proteções relevantes.

A solução para o vínculo jurídico e outros desafios dependerá de mais transparência por parte das empresas, novos mecanismos de organização coletiva dos trabalhadores e ampla participação da sociedade. Mas, nesse contexto, preocupa o descolamento da realidade do governo. As soluções certamente não serão encontradas restringindo a interlocução dos trabalhadores aos sindicatos, engessando a relação entre eles e as plataformas sob a legislação da Era Vargas ou atiçando a animosidade entre ambos com a retórica da “luta de classes”. Essa atitude só tende a prejudicar a autonomia que os trabalhadores prezam, sem trazer as proteções que eles precisam.

Os bons companheiros

O Estado de S. Paulo

No momento, o esforço de Lula para socorrer Fernández vale menos que a nota de 2 mil pesos

As novas notas de 2 mil pesos, em circulação na Argentina desde a última segunda-feira, evidenciam o desmonte da economia de um país com reservas internacionais escassas, inflação anual acima de 100% e déficit público de US$ 453 bilhões. Cada cédula impressa vale pouco mais de US$ 4 no “dólar blue”, a cotação do mercado paralelo que tem servido como boia de salvação para os argentinos desesperados em manter o valor de compra de seus ganhos. O cenário de calamidade econômica e social no país vizinho é temerário para o Brasil nestes tempos em que o presidente Lula da Silva não dispõe de recursos para socorrer seu principal sócio e grande aliado ideológico no Mercosul.

O quadro do país vizinho se agrava diante da eleição presidencial marcada para 22 de outubro – na qual o candidato de extrema direita Javier Milei escala nas pesquisas evocando ideias radicais, como a dolarização – e da baixíssima credibilidade do governo do peronista Alberto Fernández para tomar novos créditos ou mesmo ter acesso a antecipações de recursos do FMI.

O risco de resultado eleitoral desfavorável ao peronismo está estampado na hiperinflação de pré-candidatos à Casa Rosada a apenas 49 dias das primárias de agosto. Há seis nomes na disputa. A oposição de centro-direita parece mais coesa em torno do prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta. Mas é Milei, do Espacio Libertário, quem está no topo de recente pesquisa de intenções de voto, com 29%. Uma eventual vitória da direita radical na Argentina certamente causará tumulto na relação com o Brasil de Lula e animará a direita brasileira, o que explica a aflição do petista.

A crise econômica da Argentina, bem mais que seu rumo político, tem impacto imediato. Em Hiroshima, no último dia 20, Lula pediu à diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, “tempo e compreensão” com os argentinos. Verbalizou, assim, o pedido desesperado que Fernández lhe fizera no início do mês, em Brasília. O argentino recebeu também a promessa de criação de uma linha de financiamento para as exportações de manufaturas brasileiras a seu país – o que evitaria aumento de preços de produtos finais e paralisia de plantas dependentes de insumos.

Do lado de cá, trata-se de um meio de garantir às empresas nacionais o retorno financeiro por seus embarques. Mas chama a atenção o fato de, em vez de valer-se do BNDES, Lula ter optado por pedir ao banco dos Brics, presidido pela ex-presidente Dilma Rousseff, um aporte de recursos como garantia para essa linha de crédito. Para isso, decidiu despachar a Xangai o seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no momento em que se negocia o sensível tema do novo arcabouço fiscal. A ideia, parece óbvio, é poupar o Tesouro Nacional e os fundos governamentais que alimentam o BNDES de cobrir potenciais calotes de importadores argentinos.

No entanto, o estatuto do banco dos Brics não permite essa operação. Ou seja, mesmo que queira, a companheira Dilma terá dificuldade para ajudar o companheiro Fernández. Isso significa que os esforços de Lula para socorrer a Argentina, por ora, valem tanto quanto a nota de 2 mil pesos.

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