Chuvas são inevitáveis; mortes, não
O Globo
Governo deve adotar planos eficazes de
contingência e políticas de moradia que evitem áreas de risco
O ano mal começou, e as primeiras chuvas
intensas já foram suficientes para demonstrar o despreparo das cidades
brasileiras para enfrentar intempéries que tendem a tornar-se cada vez mais
intensas e letais em decorrência das mudanças
climáticas. As respostas a esses eventos previsíveis — e inevitáveis
— têm sido insuficientes, como mostra a contagem de mortes depois de cada
temporal.
Embora houvesse previsão de chuvas fortes no fim de semana, a cidade do Rio e os municípios da Baixada Fluminense se revelaram despreparados. Até ontem, as autoridades fluminenses contavam 12 mortos e dois desaparecidos. Vias essenciais, como a Avenida Brasil, tiveram de ser interditadas. Parte de um hospital na Zona Norte ficou alagada. Carros da polícia e do Corpo de Bombeiros não puderam deixar os quartéis devido à inundação.
O Rio reproduziu o drama de cidades paulistas
na sexta-feira e no sábado, quando pelo menos duas pessoas morreram. Em São
Bernardo do Campo, um morador foi soterrado pelo deslizamento de uma encosta.
No município de Juquitiba, um menino morreu num carro arrastado para dentro de
um córrego. Dias antes, um homem fora eletrocutado na capital durante um
temporal que provocou alagamentos, quedas de árvores e corte de energia.
O ano de 2023 já havia sido trágico. O Rio
Grande do Sul registrou recordes de chuvas, com mortes e prejuízos. No Litoral
Norte de São Paulo, mais de 60 perderam a vida em deslizamentos de encostas
provocados por temporais.
O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas
de Desastres Naturais (Cemaden) estimou que 8,3 milhões de brasileiros viviam
em áreas sujeitas a inundações ou deslizamento (2,5 milhões em áreas de alto
risco). Ao longo de décadas, governos não agiram para mudar tal quadro. Nas
grandes cidades, é conhecida a leniência com a ocupação irregular de encostas,
um risco iminente. É verdade que algumas implantaram sistemas de emergência,
como sirenes para retirar as famílias de áreas de risco. Mas eles são ainda insuficientes
e, mesmo quando instalados, nem sempre funcionam.
Faltam ações para desobstruir rios, além de
campanhas para conscientizar os moradores a não jogar lixo nos córregos, depois
sujeitos a inundação. Há ainda carência nos serviços de limpeza e coleta de
dejetos, essenciais para facilitar o escoamento. Sem consciência da população e
empenho das autoridades, não há como melhorar.
As prefeituras precisam de planos de
contingência eficazes para as situações de emergência. Na chuva que atingiu o
Rio, houve casos de moradores resgatados em colchões e até em latas de lixo.
Houve mortes por afogamento. Se há previsão de chuvas intensas, é fundamental
que os municípios tenham protocolos para retirar com agilidade as populações
que vivem nas áreas de maior risco, como encostas e imediações de rios. Agir
depois não adianta.
Não há dúvida de que as chuvas têm sido excepcionais. Causariam estrago em qualquer parte. Com as mudanças climáticas, a tendência é haver piora na frequência e na intensidade. O remédio, ante tamanha fúria, é investir em prevenção, protocolos de redução de danos, treinamento — não só da Defesa Civil, mas também da população — e políticas habitacionais consistentes, capazes de retirar famílias de áreas de risco e levá-las a locais seguros. É preciso agir logo. Nada garante que as próximas chuvas serão diferentes.
Polícia e Exército não são solução duradoura
para reserva ianomâmi
O Globo
Embora necessário, envio de tropas não exime
poder público de criar alternativas ao garimpo ilegal
Combater garimpeiros ilegais na Terra
Indígena Yanomami é tarefa das mais difíceis. Localizada nos estados de Roraima e Amazonas, a
maior reserva indígena do Brasil tem área ligeiramente superior à de Portugal.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva merece crédito por ao menos tentar
combater os criminosos, em contraste com o governo anterior. No ano passado,
repetidas operações de repressão obtiveram sucesso. O governo chegou a
festejar, mas os efeitos foram passageiros. Para enfrentar a questão, Lula
decidiu criar postos permanentes das Forças Armadas e da Polícia Federal na
região. Embora necessária, a medida terá pouca chance de dar certo se não for
acompanhada de outras.
Nos quatro anos do governo Bolsonaro, cerca
de 20 mil garimpeiros ilegais agiram impunemente na reserva. Órgãos federais,
expulsos pelos criminosos, deram pouca atenção aos ianomâmis. As mortes de
crianças menores de 5 anos por causas evitáveis aumentaram 29%. A falta de
comida, de remédios e o mercúrio usado pelos garimpeiros na água afetaram a
saúde de toda a população. Casos de desnutrição, diarreia, dengue e malária
dispararam.
Ao assumir, Lula montou um grupo
interministerial, enviou equipes médicas para prestar assistência emergencial,
criou um hospital de campanha em Boa Vista e determinou o envio de toneladas de
medicamentos e alimentos pela Força Aérea Brasileira (FAB). Concomitantemente,
uma força-tarefa composta de Forças Armadas, Polícia Federal e Ibama deu início
ao combate aos criminosos. Em pouco tempo, cenas de indígenas atendidos por
médicos e acampamentos ilegais abandonados às pressas tranquilizaram a opinião
pública. Em setembro, o governo anunciou a redução de 80% na área atingida pelo
garimpo ilegal. A celebração, porém, foi prematura.
No final do ano passado, os garimpeiros
estavam de volta à reserva. Apesar de o espaço aéreo estar fechado, aviões de
pequeno porte voavam de um lado para outro. Em dezembro, fiscais do Ibama
constataram que um dos maiores garimpos da região voltara a operar. Não era o
único. Nas palavras do ministro da Casa Civil, Rui Costa, é uma perseguição de
gato e rato. Desde o início da greve do Ibama no início do mês, é provável que
a situação tenha piorado.
Os garimpeiros voltam depois de avaliar as
chances de ser pegos. Ao insistirem nas invasões, os empresários do crime e
seus empregados comprovam que ainda vale a pena correr o risco pelo ouro. Por
isso uma solução duradoura precisa atacar duas frentes. De um lado, criar novas
oportunidades de trabalho para desestimular o apelo do garimpo à população
local. De outro, reprimir de forma mais eficiente as ações criminosas. Não
apenas na reserva, mas nas cidades, onde há um ecossistema para a venda do ouro
ilegal, conserto e abastecimento de aeronaves, barcos e demais equipamentos. Só
a presença permanente da polícia e dos militares na reserva não bastará.
Modelo de tarifas de energia precisa ser
reavaliado
Valor Econômico
A energia que já sobra derruba os preços no
mercado livre, enquanto eles não param de subir no mercado regulado
No fim de 2023, pouco antes do Natal, o
presidente Lula aproveitou cerimônias como a entrega de habitações do programa
Minha Casa, Minha Vida e uma celebração de catadores de reciclagem em Brasília
para criticar o mercado brasileiro de energia. Lula mencionou o fato de grandes
consumidores pagarem pela energia valor menor do que a tarifa cobrada dos mais
pobres: “Três milhões de pessoas, que são os empresários, pagam um terço do
preço que paga o pobre. É justo o rico pagar menos do que o pobre?". Lula
repetiu números que o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, citou:
de cerca de 90 milhões de consumidores, 3 milhões estão no mercado livre
consumindo 45% da energia do país, pagando R$ 250 o megawatt-hora (MWh). Por
outro lado, os demais consumidores, em torno de 87 milhões, pagam R$ 650 o MWh,
em média.
As falas de Lula ocorreram um pouco antes de
mais uma etapa da abertura do mercado livre de energia. Embora exista desde
1996, o mercado livre de energia elétrica, em que o consumidor pode escolher o
seu fornecedor e estabelecer contratos por fonte, prazo ou preço, só estava
acessível a menos de 38 mil empresas, com demanda acima de 500 quilowatts (kW),
e contas acima de R$ 150 mil por mês.
A partir deste ano, por iniciativa do próprio
Ministério de Minas e Energia (MME) poderão entrar no mercado livre
consumidores conectados à alta e média tensão, com contas entre R$ 10 mil e R$
15 mil por mês. Quase 13 mil consumidores já solicitaram a migração, de acordo
com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) junto às
distribuidoras, entre os quais estão pequenas indústrias, padarias, hospitais,
shoppings, redes de farmácias e supermercados, que vão assim ganhar
competitividade e poderão reduzir seus preços.
Segundo dados da Câmara Comercializadora de
Energia Elétrica (CCEE), dos 202 mil consumidores de alta e média tensão, há 38
mil que já estão no mercado livre e 93 mil que aderiram ao modelo de geração
distribuída. Sobram quase 72 mil com potencial para aderir ao segmento livre
pagando tarifas cerca de 40% menores do que a do mercado de energia distribuída
pelas concessionárias, no chamado Ambiente de Contratação Regulada (ACR), do
qual fazem parte os consumidores residenciais, de baixa tensão.
Lula promete que o assunto será discutido
neste ano e encarregou o ministro Alexandre Silveira da tarefa. Espera-se que o
debate seja sério. Politizar e polarizar o assunto, com um discurso estilo
Robin Hood, em nada ajuda. É preciso discutir a questão a fundo para se exporem
os motivos pelos quais a energia elétrica é tão cara, a começar pela distorção
criada por sua companheira de partido, a ex-presidente Dilma Rousseff. Em 2012,
ela resolveu reduzir o preço da energia na marra, antecipando a renovação das
concessões das usinas hidrelétricas com a Medida Provisória 579. Em um primeiro
momento, as tarifas realmente caíram 20%, mas recuperaram tudo já no ano
seguinte. Para complicar, houve uma seca que esvaziou os reservatórios das
usinas e colocou mais pressão nos preços.
Segundo cálculos da Aneel a iniciativa de
Dilma causou um aumento de quase R$ 200 bilhões nos custos do setor, repassado
para as tarifas, e incluiu subsídios para os consumidores de fontes
incentivadas, como a energia eólica e de pequenas centrais hidrelétricas
(PCHs).
A prática dos subsídios só cresce. Os preços
da energia brasileira estão entre os maiores do mundo. Paradoxalmente, sobra
cada vez mais energia. Apenas as de fontes eólica e solar saltarão dos 38 GW
atuais para 100 GW em 2027, pouco inferior ao consumo total de 108 GW. Somadas
às demais fontes de energia, o total da geração naquele ano será de 281 GW,
“uma sobra cavalar, inédita em todo o mundo”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor
da Aneel (O Globo, 4 de janeiro). A energia que já sobra derruba os preços no
mercado livre, a que poucos ainda têm acesso. A saída de mais consumidores do
mercado regulado torna a conta mais salgada, pois os custos recairão sobre
menor número de pessoas, que não podem escolher o mercado de menor preço.
A inserção de “jabutis” em medidas em
discussão no Congresso é um dos vários mecanismos que resultam no aumento das
tarifas. Geralmente são inspiradas pelos lobbies ligados a setores como
transporte e distribuição de gás, geração distribuída e eólicas do Nordeste.
A mais recente iniciativa do tipo foi o
projeto de lei 11.247/2018 das eólicas offshore, aprovado pela Câmara dos
Deputados no fim de novembro com apenas 16 votos contrários, com emendas
polêmicas que causarão um custo de R$ 25 bilhões ao ano nas tarifas, resultando
em aumento de 11%, segundo a consultoria PSR. Há estimativas maiores, de até R$
28 bilhões ao ano, de acordo com a Abrace. O PL, entre outros jabutis, permite
a contratação de poluentes usinas térmicas a carvão até 2050 e prorroga por dez
anos os descontos nas tarifas de uso de sistemas de distribuição para energias
renováveis. Os subsídios que pousarão na conta do consumidor este ano são de R$
37 bilhões. Em 2023, foram R$ 35 bilhões. Eles ampliam a sobra de energia, e a
conta fica cada vez maior. É um modelo que precisa ser séria e urgentemente
reavaliado.
Toffoli abre a porteira
Folha de S. Paulo
Decisões do Supremo que anulam ações contra
corrupção deveriam ser colegiadas
Para a surpresa de ninguém que acompanhe o
noticiário, a Novonor, nome de rebatismo da antiga Odebrecht, pleiteou no
Supremo Tribunal Federal a suspensão
dos pagamentos à União dos valores previstos no acordo de leniência que
a empresa firmou em 2016.
A multa, de R$ 6,8 bilhões, foi fixada para
ressarcir o erário pelos desfalques do esquema de corrupção confessado na
esfera penal por 77 ex-executivos da companhia. Autoridades nacionais dos
Estados Unidos e da Suíça selaram pactos concomitantes com a Odebrecht.
Não há indício de que norte-americanos e
suíços estejam dispostos a voltar atrás nas sanções aplicadas. Já no Brasil uma
larga porteira para a suspensão dessas reparações bilionárias foi aberta pela
vontade monocrática do ministro Dias Toffoli, da corte constitucional.
O primeiro ato do solilóquio, embalado num
libelo de bajulação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deu-se em
setembro, com a anulação das provas colhidas pela Lava Jato que embasaram o
acordo de leniência com a Odebrecht.
O ministro acatou o argumento de que os
métodos empregados por procuradores e juiz da Lava Jato —expostos pela ação de
um hacker— tornavam imprestáveis todas as provas da corrução escandalosa
obtidas pela investigação. Não se acautelou de exigir análise detalhada de cada
prova. Pressionou o botão da destruição em massa.
A decisão soou como toque de clarim para o
ataque aos acordos de leniência. A primeira a avançar foi a J&F, que obteve de
Toffoli a interrupção do ressarcimento à União —a despeito de o
conglomerado manter sob contrato a mulher do ministro, advogada que atua numa
disputa empresarial afetada pelos termos da leniência.
Agora a própria sucedânea da Odebrecht requer
o benefício, na esteira do raide da J&F. Está fadada a consegui-lo, a
julgar pela boa vontade do ministro com a causa.
É um despautério que um juiz singular do
Supremo, com 11 integrantes, continue concentrando tamanho poder. Desfazer num
rabisco o que dezenas de autoridades em várias instâncias judiciais e
administrativas construíram em quase uma década deveria exigir necessariamente
o convencimento de outros cinco colegas ao menos.
O atual presidente do tribunal, ministro Luís
Roberto Barroso, foi um dos que resistiram ao revisionismo açodado que está
estimulando novamente a corrupção. Deveria ser do seu interesse levar ao
plenário decisões monocráticas sobre o tema, como as de Toffoli.
O Congresso Nacional também tem legitimidade
para aprovar leis que assegurem a colegialidade nas deliberações da corte
suprema, desde que se paute por racionalidade e equilíbrio, não pela vingança.
O não de Taiwan
Folha de S. Paulo
Opositor de Pequim é eleito, mas urnas
revelam mensagem ambígua na ilha autônoma
Os taiwaneses que foram às urnas no sábado
(13) enviaram sinais ambíguos para a China, ditadura continental que considera
a ilha autônoma parte de seu território.
O mais
importante foi a eleição do atual vice-presidente, Lai Ching-te,
para liderar o país nos próximos quatro anos. O político é um dos mais vocais
opositores à pressão chinesa pela reintegração do país ao comando de Pequim.
O status político de Taiwan é complexo. A
ilha foi governada por nacionalistas chineses, que perderam a disputa com os
comunistas em 1949, e só transformou-se em uma democracia nos anos 1990.
Apenas 11 dos 193 membros da ONU a reconhecem
como um país. De tempos em tempos, Pequim sinaliza que pode fazer valer sua
vontade "manu militari".
Quando firmaram relações com os chineses, em
1979, os americanos reconheceram implicitamente a demanda de Pequim sobre
Taiwan. Ao mesmo tempo, estabeleceram mecanismos pelos quais fornecem ajuda
militar à ilha e sugerem proteção em caso de agressão.
Essa duplicidade estimula movimentos
independentistas, embora Washington sempre
reitere ser contra tal ruptura e defenda o diálogo com os chineses.
Nos últimos anos, visitas de altas
autoridades americanas irritaram Pequim a ponto de ser constituído um regime
permanente de pressão militar, com incursões
aéreas e exercícios navais.
Em vez de tirar do poder o Partido
Democrático Progressista (PDP), o ambiente conduziu Lai a um inédito terceiro
mandato da sigla —um tapa na cara de Xi Jinping.
Entretanto o resultado não foi esmagador. O
vitorioso teve 40,1% dos votos, ante 33,5% e 26,5% dos candidatos do Kuomintang
chinês e do Partido do Povo de Taiwan (PPT), respectivamente.
Ambos os rivais, favoráveis a negociar a
situação de Taiwan com a China, chegaram até a ensaiar uma candidatura conjunta
contra Lai.
Além disso, o PDP conquistou 51 cadeiras do
Parlamento, enquanto seus opositores somaram 62. Isso poderá dificultar a vida
do governo.
Mais importante, sinaliza que o não a Pequim
tem nuances. Ainda assim, prevalece a rejeição taiwanesa a uma adesão à China
em termos análogos aos de Hong Kong.
Entregue por Londres em 1997, este território era orgulhosamente apresentado por Pequim como modelo de autonomia —até que, em 2020, os chineses rasgaram o tratado que a garantia até 2047.
Eis a conta do populismo tributário
O Estado de S. Paulo
Como era mais do que previsível, Estados
começam a aumentar alíquota padrão de ICMS sobre bens e serviços para compensar
as perdas de receitas com combustíveis, energia e telecomunicações
Diversos Estados brasileiros decidiram
aumentar em até 2,5 pontos porcentuais as alíquotas modais do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) neste ano. Segundo reportagem
publicada pelo Estadão, seis deles já começaram a cobrar mais e outros cinco
pretendem fazê-lo até abril.
A alíquota modal corresponde ao padrão cobrado sobre a maioria dos bens e serviços. Hoje, ela varia entre 17% e 22%, a depender do Estado, segundo o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita, Tributação ou Economia dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz).
De maneira oportunista, alguns Estados das
Regiões Sul e Sudeste chegaram a culpar a reforma tributária pelo aumento do
imposto. Em carta divulgada às vésperas da aprovação da proposta pelo
Congresso, os Estados afirmavam que a elevação da alíquota modal era uma
resposta a um dispositivo que, tomando como base a média de arrecadação do ICMS
entre 2024 e 2028, poderia comprometer suas receitas ao longo dos próximos 50
anos.
Era, por óbvio, uma desculpa para livrar
governadores do ônus político de elevar a carga tributária. Mas o tiro saiu
pela culatra, e os parlamentares optaram por retirar o trecho do texto final
que foi a promulgação. São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul decidiram
recuar, mas Paraná e Rio de Janeiro mantiveram os planos iniciais e vão elevar
suas alíquotas modais em março.
Não cabe fazer um julgamento moral sobre os
governadores, como se elevar o ICMS fosse uma decisão que definisse toda a
atuação de um gestor público. Quem já elevou as alíquotas em seus Estados não é
pior do que aqueles que somente voltaram atrás por causa da pressão popular –
mesmo porque nada indica que essa decisão tenha caráter definitivo.
Fato é que a situação fiscal dos Estados, de
maneira geral, está muito longe do equilíbrio. A exemplo da União, os Estados
possuem certo grau de rigidez nas contas públicas, especialmente em gastos com
servidores públicos e aposentadorias. Reformas podem estancar a curva de
crescimento desses dispêndios, mas não costumam ter efeitos imediatos e
requerem um apoio político difícil de ser obtido das Assembleias Legislativas.
Por isso, é prudente não aumentar essas
despesas de maneira excessiva e não abrir mão da arrecadação necessária para
sustentá-las. Foi o exato oposto do que se viu nos últimos anos. De forma
irresponsável, os governadores optaram por aproveitar o fim da pandemia de
covid-19 e a proximidade das eleições para contratar funcionários e conceder
aumentos salariais. Em tempos normais, já seria algo questionável, mas o fato é
que isso aconteceu em um momento em que as receitas eram atacadas em múltiplas
frentes.
No Judiciário, o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidia que os Estados não mais poderiam cobrar alíquotas majoradas de
ICMS sobre bens e serviços essenciais. No Executivo, o ex-presidente Jair
Bolsonaro, já em campanha para a reeleição, iniciava uma cruzada pela redução
dos preços dos combustíveis e culpava os Estados por reajustes ocasionados pelo
aumento das cotações internacionais de petróleo. Pressionado, o Congresso
aprovava leis que alteraram a tributação de bens e serviços que respondiam pela
maior parte da arrecadação estadual.
O resultado não poderia ser outro: uma
redução estrutural de receitas de mais de R$ 100 bilhões de um ano para o
outro. No primeiro ano de mandato do presidente Lula da Silva, os Estados ainda
contaram com o auxílio financeiro do governo federal para arcar com suas
despesas. Mas essa ajuda não poderia durar para sempre, mesmo porque a União
também tem um déficit fiscal para administrar.
Como já se sabia, o corte nas alíquotas de
combustíveis, telecomunicações e energia era insustentável. E, agora, os
Estados decidiram compensá-lo. A solução foi aumentar a alíquota padrão, ou
seja, elevar a tributação de medicamentos, alimentos, bebidas, vestuário e
calçados, entre muitos outros itens. O pior é que nem mesmo a nova alíquota
modal será suficiente para recuperar todas as perdas, ou seja, vem mais aumento
por aí. Eis a conta do populismo tributário.
Filantropia além dos números
O Estado de S. Paulo
O terceiro setor contribuiu com 4,27% do PIB
brasileiro de 2022, segundo a Fipe. Mas a solidariedade com os mais vulneráveis
deve ser incentivada como traço distintivo de uma grande nação
AConstituição de 1988 definiu como objetivos
fundamentais da República, entre outros, a erradicação da pobreza e a redução
das desigualdades sociais e regionais (art. 3.º, III). Em qualquer país do
mundo, esse movimento civilizatório, para produzir resultados que garantam a
todos os cidadãos acesso ao mínimo necessário para uma vida digna, não deve
estar a cargo somente do Estado, mas também há de envolver organizações da
sociedade civil, cada indivíduo, no limite de suas possibilidades.
No Brasil, um país tão profundamente
desigual, essa integração em prol do bem comum torna-se ainda mais vital. Basta
dizer que, malgrado terem sido alçadas àquela condição pelos constituintes
originários há mais de três décadas, a pobreza e as desigualdades seguem tão
presentes como marcas nacionais que não saem das páginas dos jornais, ainda
pautam o debate público e inspiram toda sorte de políticas públicas e estudos
acadêmicos.
Não poderia haver evidências mais eloquentes
de que a Lei Maior está longe de ser cumprida no que concerne à dignidade da
pessoa humana do que a renitência da pobreza e das desigualdades e a falta de
incentivos para a consolidação de uma cultura de solidariedade e
responsabilidade social no País. Isso não só pode, como deve mudar, pois, como
lembrou em entrevista ao Estadão a diretora executiva do Movimento Bem Maior,
Carola Matarazzo, diminuir as desigualdades, não apenas de renda, assim como
preservar o meio ambiente, entre outras agendas humanitárias, são garantias de
que haverá “um planeta para se viver” no futuro e pessoas vivendo com
dignidade.
Nos últimos anos, a participação de empresas
do chamado terceiro setor no combate às desigualdades no País tem se revelado
um tanto mais estratégica, vale dizer, não limitada por uma ideia segundo a
qual filantropia não seria mais do que mera distribuição de dinheiro dos mais
ricos para os mais pobres. A diretora do Movimento Bem Maior, que reúne 11
altos executivos dos mais diversos segmentos econômicos, observou que “doação
não é caridade, é investimento”. Ou seja, iniciativas como financiamento de pesquisas
e apoio institucional a projetos relevantes para o País também fazem parte de
uma abordagem mais moderna de filantropia que, se for devidamente incentivada,
pode gerar bons frutos para o País.
O povo brasileiro já deu inúmeras mostras de
que é vocacionado para a solidariedade. Se ainda havia dúvidas quanto a isso, a
pandemia de covid-19 tratou de saná-las. Hoje, contudo, o grande desafio da
sociedade é reacender essa chama; é resgatar o espírito solidário, em todos os
níveis, como algo que transcende momentos de crise. Sem isso, será impossível
estabelecer uma base sólida para o florescimento da cultura da filantropia como
um dos eixos do desenvolvimento inclusivo e sustentável de que o Brasil tanto
carece.
É inegável que a pandemia catalisou a
solidariedade, revelando a face mais compassiva dos brasileiros. Doações
inauditas trouxeram alívio imediato para milhões de necessitados. Só o
Movimento Bem Maior angariou, em 2021, no auge da emergência sanitária, R$ 7
bilhões. No entanto, a sustentabilidade dessas ações e a manutenção do ímpeto
filantrópico após o período crítico da pandemia tornaram-se preocupações
relevantes para os que dependiam – e continuam dependendo – da caridade alheia
para viver.
O desafio, pois, não é apenas aumentar o
volume de doações, mas sim criar um ambiente propício à continuidade dessas
contribuições. O terceiro setor é extremamente importante para o País e precisa
ser estimulado. Um estudo da Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe), ligada à
FEA-USP, mostrou que as empresas que atuam no terceiro setor, isto é, que
desenvolvem atividades assistenciais e filantrópicas e empregam cerca de 6
milhões de pessoas, representaram 4,27% do PIB brasileiro em 2022.
Para além de números e estratégias
corporativas, porém, é forçoso lembrar que a solidariedade com os concidadãos
mais vulneráveis é um dos traços mais distintivos da grandeza de uma nação.
Uma cômoda dependência
O Estado de S. Paulo
Exportações para a China superam R$ 100 bi;
baixa diversificação demanda mais ousadia
Não deixa de ser auspicioso o fato de as
exportações brasileiras para a China terem cruzado pela primeira vez a vistosa
fronteira dos US$ 100 bilhões, como sublinhou a Secretaria de Comércio Exterior
(Secex) na divulgação da balança comercial de 2023. Há menos de 30 anos, o
Brasil sonhava com esse valor para o total de seus embarques. A perspectiva de
o governo Lula da Silva ver esse resultado ainda mais robusto neste e nos
próximos anos, entretanto, está entremeada por justas preocupações em torno da
diversidade e da qualidade de seu comércio exterior. A dependência cada vez
maior em relação ao mercado chinês, consumidor quase exclusivo de três
commodities brasileiras, é a principal delas.
A China foi o destino de 37,2% das
exportações brasileiras em 2023, quase exclusivamente de commodities. Há 18
anos, não passavam de 10%, como informou recente reportagem do Estadão. A
escalada deu-se em paralelo à redução da participação de mercados que,
tradicionalmente, absorvem manufaturas brasileiras, em especial os Estados
Unidos e a Argentina. O resultado mais visível dessa equação está na presença
da indústria de transformação nos embarques do País, que caiu de 66,2%, em
2016, para 52,2% no ano passado. Pode-se concluir que a qualidade das
exportações brasileiras, medida pelo seu valor agregado, recuou.
É certo que, no comércio exterior, muito vale
a pressão da demanda. A voracidade chinesa por minério de ferro, alimentos in
natura e petróleo – os principais bens brasileiros escoados para a China – tem
sido satisfeita pela alta produtividade da soja e outros grãos e da mineração
do País. O benefício, entretanto, está longe de ser totalmente mútuo. Primeiro,
pela resistência histórica da China em adquirir os produtos acabados do Brasil
– em vez da soja, mais carnes; em vez do minério, chapas e bens siderúrgicos.
Segundo, porque, no setor de commodities, as condições dos importadores valem
bem mais do que as expectativas dos exportadores. Em linguagem comercial, o
País se mantém na condição de “vendido” diante da China.
Será difícil Pequim ceder nesses padrões, que
tanto beneficiam sua economia. Mas nada impede um esforço concentrado do
governo e do setor privado brasileiros para buscar outros mercados para suas
commodities e, especialmente, para seus produtos com maior valor agregado. Na
pauta exportadora do Brasil, não faltam bens altamente competitivos no
agronegócio e na indústria de transformação. Nem outros setores cuja
atratividade externa possa ser alavancada pelo uso comprovado de energia limpa
e pelo respeito a normas ambientais.
É indiscutível que o embarque recorde para a China contribuiu significativamente para o superávit total da balança comercial de US$ 98,8 bilhões em 2023. Mas manter ou ampliar a dependência brasileira da demanda chinesa exclusiva por commodities não deixa ser uma lógica comodista. Passou da hora da adoção de políticas públicas e de demonstração de maior ousadia do setor privado para agregar valor às exportações e diversificar os mercados do Brasil.
A importância da vacinação
Correio Braziliense
O CFM tem por obrigação zelar pelo bom
funcionamento da saúde no país. Levantar suspeitas sobre um fármaco tão
importante e comprovadamente seguro soa, no mínimo, estranho
O Ministério da Saúde, acertadamente, decidiu
incluir a vacina contra a covid-19 para crianças entre 6 meses e 5 anos no
Plano Nacional de Imunização (PNI). A decisão foi baseada em estudos
científicos profundos, que comprovaram a eficiência do fármaco para conter o
avanço do novo coronavírus. Somente no ano passado, 135 meninas e meninos nessa
faixa etária morreram vitimados pelo vírus. E a razão principal para os óbitos
foi a não vacinação.
Infelizmente, um movimento mundial contra a
imunização tem levado pais à falsa ideia de que vacinas fazem mal à saúde. Isso
a despeito de todas as provas, acumuladas ao longo de décadas, de que esses
medicamentos foram fundamentais para erradicar várias doenças e, praticamente,
dobrar a idade média de vida da população. No Brasil, antes da vacinação em
massa, os cidadãos viviam, em média, pouco mais de 40 anos. Agora, a
longevidade chega aos 80. Nunca o país teve tantos centenários, todos vacinados
desde a infância.
Pois a onda de inverdades sobre a vacina
ganhou, na semana passada, um estímulo para os pais que aderiram ao movimento
antivax. O Conselho Federal de Medicina (CFM), pela primeira vez em sua
história, decidiu fazer uma pesquisa questionando a comunidade médica sobre o
que acha da decisão do Ministério da Saúde de incluir a vacinação de crianças
menores de 5 anos contra a covid no Plano Nacional de Imunização. Foi como se o
órgão atiçasse fogo no palheiro da desconfiança.
Dado o papel institucional que possui, o CFM
tem por obrigação zelar pelo bom funcionamento da saúde no país, inclusive
punindo médicos que colocam em risco a vida de pacientes. Mas levantar
suspeitas sobre um fármaco tão importante e comprovadamente seguro soa, no
mínimo, estranho. Será que o mesmo questionamento será feito, por exemplo, em
relação à eficiência da importantíssima vacina contra a dengue, que tem matado
como nunca no país? Um tema tão relevante, como o Plano Nacional de Imunização,
que é modelo para o mundo, deve ser debatido com toda a responsabilidade
possível, sempre no sentido de aprimorá-lo, não no de levantar dúvidas a algo
comprovadamente bom para a população.
O debate em torno da pesquisa lançada pelo
CFM sobre a vacina contra a covid está movimentando os médicos, a maioria se
posicionando contra o questionário. Uma das vozes mais contundentes contrárias
ao Conselho está sendo entoada por Isabella Ballalai, diretora da Sociedade
Brasileira de Imunizações (SBIm). Para ela, perder um filho, uma filha ou um
neto para uma doença que pode ser evitada por meio da vacinação é inaceitável.
Portanto, é preciso apoiar o Plano Nacional de Imunização, não colocá-lo sob suspeição.
As pesquisas desenvolvidas pelos laboratórios
e pelas universidades em busca de proteção para todo tipo de doença estão cada
vez mais avançadas, e os resultados aparecendo em prazos menores — até bem
pouco tempo, para um imunizante ser incorporado pela rede pública, eram
necessários cerca de 10 anos, desde a comprovação de sua eficiência. Mas
técnicas cada vez mais modernas, às quais será adicionada a inteligência
artificial, reduzirão esse tempo. Há que se ressaltar: não fosse a rapidez na
descoberta da vacina contra a covid, a catástrofe da pandemia teria sido maior.
O Brasil perdeu mais de 700 mil vidas durante a pandemia. Certamente, muitas poderiam ter sido salvas se a vacinação tivesse ocorrido mais rapidamente. Diante disso e com toda a segurança dos imunizantes que estão à disposição, ninguém de bom senso pode aceitar que qualquer pessoa morra porque não teve a oportunidade de se proteger. Num mundo em que as notícias falsas se disseminam na velocidade da luz, o desafio de todos, autoridades, médicos, pais, educadores, deve ser no sentido de proteger a vida. E vacinas salvam vidas.
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