Governo ainda deve solução eficaz para armamentismo
O Globo
Há mais de 1,6 milhão de armas em situação
irregular e quase 1 milhão nas mãos de amadores
O avanço do armamentismo no governo passado
se transformou em herança pesada para a gestão Luiz Inácio Lula da
Silva. Dos 2,89 milhões de armas registradas na Polícia Federal (PF) em nome de
civis, servidores públicos, policiais e guardas municipais para defesa pessoal,
1,6 milhão, mais da metade, está em situação irregular, com o registro vencido,
de acordo com reportagem do Jornal Nacional. Esse total não inclui os
Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), a categoria de
amadores que se multiplicou no governo Jair
Bolsonaro, atraídos pela facilidade de comprar armas e munições.
De 2018 ao final de 2022, a quantidade de CACs sextuplicou, de 117.467 para 783.385. O novo governo suspendeu decretos armamentistas de Bolsonaro, determinou a concentração na PF do controle de todo o armamento em mãos de civis. Concluído no ano passado, o recadastramento da PF contou 939.154 armas em poder de amadores. Mas a resistência do Exército a abrir mão do controle dos CACs e da própria PF a assumir a função, alegando falta de estrutura, tem mantido intocado esse arsenal. As armas continuam em circulação e, como mostrou reportagem do GLOBO, os clubes de tiro continuam funcionando a pleno vapor. Pouco se avançou na solução desse grave problema.
A atuação da PF para apreender armas ilegais
tem sido prejudicada pela legislação em vigor. De acordo com o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) formado em 2020, arma com registro vencido
deixou de ser delito penal. Agora é enquadrada como mera irregularidade
administrativa. Antes, a polícia podia instaurar inquérito e pedir ao juiz um
mandado de busca e apreensão. Com a nova jurisprudência, é preciso esperar o
desfecho do inquérito administrativo. Essa é a razão, segundo policiais federais,
de tantas armas com registro vencido.
A maior concentração das armas, revelou
reportagem do GLOBO, está em regiões ligadas ao agronegócio, em especial a
pecuária. Há mais CACs no sul de Goiás, nas regiões de Rio Verde e Jataí, em
Mato Grosso e no entorno do Parque do Xingu. Também no norte gaúcho e no
interior de Santa Catarina e Paraná. Fica nesse estado a cidade com a maior
concentração de armamentos: Clevelândia, com uma arma para cada 15 moradores.
Ainda que a maior parte do arsenal esteja no
interior, persiste o risco nas cidades. Além do uso frequente por organizações
criminosas de armamento comprado legalmente por CACs, cresce o risco de
acidentes. No último fim
de semana, explodiu em Campinas, interior de São Paulo, o apartamento do
coronel da reserva Virgílio Parra Dias, que transformara sua despensa num paiol.
Além de 35 quilos de pólvora, 3 mil munições e quase 20 mil cartuchos, havia no
apartamento duas granadas e 111 armas, entre revólveres, rifles, fuzis e
espingardas. Com o alastramento das chamas, 44 moradores tiveram de ser
resgatados. O coronel Dias é registrado como CAC, informou o Comando Militar do
Sudeste.
A falta de entendimento entre Exército, PF e
governo tem atrasado a adoção de uma solução duradoura para a banalização da
posse e do uso de armas sob Bolsonaro. Desastres como o de Campinas são apenas
um exemplo do risco que o armamentismo representa para o país. Lula ainda deve
a seus eleitores uma redução drástica no arsenal em poder da população.
Altruísmo extremo é mais comum do que
costumamos imaginar
O Globo
Bravura do auxiliar de logística que salvou
bebês e mãe de enxurrada reflete fatores culturais e evolutivos
‘Não pensei
em nada. Só queria salvar a vida deles.’ Foi essa a explicação
do auxiliar de logística Marcos Vinícius de Souza Vasconcelos, 20 anos, para
seu ato heroico na semana passada. Dependurado num ônibus em Nova Iguaçu,
Baixada Fluminense, ele resgatou duas bebês gêmeas de 1 ano e a mãe de dentro
de um carro, depois arrastado pela enxurrada. Sua coragem evitou uma tragédia.
Conhecida como altruísmo extremo, a decisão
de pôr a própria vida em risco para salvar desconhecidos é mais frequente do
que parece. No final do ano passado, um motoboy brasileiro deteve com o
capacete um homem que investia com uma faca contra transeuntes em Dublin, na
Irlanda, onde vivia. No Pará, o pescador José Cardoso Lemos resgatou 35 pessoas
de um barco naufragado em 2022. Esses são apenas dois exemplos. Heróis anônimos
são muito mais comuns do que costumamos imaginar.
Nos Estados Unidos, um fundo criado pelo
industrial Andrew Carnegie em 1904 premia anualmente quem pratica atos de
heroísmo. Até hoje, mais de 100 mil pessoas foram inscritas e 10 mil medalhas
foram entregues, 20% póstumas. Um estudo da Universidade Yale com os premiados
mostra que a explicação de Marcos Vinícius é predominante entre os heróis. Quem
se arrisca para salvar alguém em perigo geralmente toma a decisão em questão de
segundos, sem pensar.
Do ponto de vista evolutivo, o comportamento
dos heróis levanta uma questão paradoxal. Quem pratica atos de heroísmo tem
mais chances de morrer e não passar adiante sua carga genética. O próprio
Charles Darwin, diante do paradoxo, escreveu em 1871: “Aquele que estava pronto
a sacrificar a sua vida (...) muitas vezes não deixava descendência para herdar
sua natureza nobre. Os homens mais corajosos, que sempre estiveram dispostos a
ir à frente de batalha na guerra e arriscavam livremente suas vidas pelos outros,
pereciam, em média, em maior número”. Por essa lógica, altruístas extremos
deveriam ter sido extintos faz tempo. Darwin não achou resposta.
Os estudiosos hoje desmentem esse paradoxo
aparente lembrando que, ao longo da História humana, ter poder e ascendência
sobre os pares sempre ajudou no acasalamento. E, para chegar a essa posição,
evitar a pecha de covarde e conquistar o status de herói só ajuda. Quase 500
militares americanos que ganharam a Medalha de Honra na Segunda Guerra Mundial
tiveram mais filhos que seus colegas das Forças Armadas.
Embora seja esclarecedora, a análise baseada
apenas na genética desconsidera o peso da cultura no comportamento. Diferentes
sociedades em todas as partes do planeta valorizam o altruísmo, algo que se
manifesta em religiões, lares, novelas, filmes e livros. Marcos Vinícius sentiu
isso ao abrir uma vaquinha on-line depois de sua família perder móveis e
eletrodomésticos com as chuvas. A meta inicial era arrecadar R$ 6 mil. Em
poucas horas, o total ultrapassou R$ 78 mil. Desde criança, ele queria ser
bombeiro para “ajudar as pessoas”. Em bravura, já provou ser nota 10.
Lula deve um plano para a energia limpa
Folha de S. Paulo
Retórica pró-ambiente do governo contrasta
com ausência de programa para a transição, em meio à expansão do petróleo
Para um país dado a perfilar-se como potência
ambiental, suscita estranheza a ambivalência do Brasil quanto à transição
energética. Sonha com a venda futura de biocombustíveis e hidrogênio verde para
o mundo, mas no
presente investe de fato em combustíveis fósseis.
Neste momento, nem mesmo contamos com um
programa atualizado de enfrentamento da crise climática. O Plano Nacional sobre
Mudança do Clima data de 2008 e só fixava objetivos até 2017.
Estamos, assim, em completa defasagem até com
as metas nacionais para o Acordo de Paris (2015), que outros países estão a
revisar para torná-las mais ambiciosas. A nova versão do plano brasileiro só
deve sair em 2025, ano da COP30 marcada em Belém do Pará.
Falar é fácil, como fez em 2021 o então
ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, no governo de Jair Bolsonaro (PL). O
sucessor de Ricardo Salles anunciou na COP26 que o Brasil iria zerar suas
emissões líquidas de carbono até 2050.
Falta pouco mais de um quarto de século para
esse horizonte, mas qual era a trajetória programada para alcançar tal meta?
Não havia, como não há.
Existe, sim, um projeto, em tudo
contraditório com ela, de expandir a produção petrolífera, se possível para
além de 2050. No recente Fórum Econômico Mundial, o ministro de Minas e
Energia, Alexandre Silveira (PSD), apostou que o petróleo ainda será fonte
energética importante por 20 ou 30 anos.
Poderia ser só deslize de ministro sequioso
de agradar a ala desenvolvimentista (para não dizer fóssil) no Planalto, mas
parece política de governo. Na falta de um plano para o clima, cabe atentar
para o Novo PAC lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Como assinalou Natalie Unterstell, do
Instituto Talanoa, o eixo transição energética do PAC prevê recursos de R$
565,4 bilhões, dos quais 64%
para petróleo e gás e meros 12% para energia limpa. Os dois
combustíveis fósseis receberão investimento principalmente do Estado, enquanto
fontes alternativas dependerão de aportes privados.
Difícil imaginar expressão mais clara das
reais prioridades do governo. Nem mesmo o argumento de que a renda dos fósseis
financiaria a transição para de pé; se assim fosse, o direcionamento de
recursos já estaria ocorrendo.
Foi-se o tempo em que o governo brasileiro
podia posar de bom moço verde prometendo meramente reduzir o desmatamento,
ainda nossa maior fonte individual de gases do efeito estufa.
Para projetar-se como liderança crível à
frente da COP30, cabe-lhe apresentar até lá um plano minucioso de como pretende
conciliar o ufanismo petrolífero com a inadiável transição energética.
Prevenir e tratar
Folha de S. Paulo
Com envelhecimento da população, SUS precisa
controlar diabetes e hipertensão
Diabetes e hipertensão são duas das doenças
crônicas não transmissíveis que precisam de acompanhamento contínuo. Entretanto 7 em
cada 10 municípios não mediram a hemoglobina glicada e a pressão arterial em
ao menos 50% dos pacientes com essas condições, como noticiou a Folha.
Essa é a meta estipulada pelo programa
Previne Brasil, que em 2019 estabeleceu um modelo de financiamento das redes de
saúde baseado no cumprimento de critérios de desempenho.
Desde lá, houve melhorias. No primeiro
quadrimestre de 2022, a taxa de municípios que não atingiram o controle mínimo
foi de 97% para diabetes e 95% para hipertensão; ao final daquele ano, 83% e
84%, respectivamente, com queda para para 74,8% e 72,8% em 2023.
Estamos longe, porém, da meta de 50%, também
preconizada pela Organização Mundial de Saúde.
Segundo o último relatório global sobre a
hipertensão da OMS, divulgado em 2023 com dados de 2019, 50,7 milhões
de brasileiros entre 30 e 79 anos tinham a doença, o que representa
45% desse estrato —no mundo, a taxa é de 33%. Seria necessário atender mais 8,4
milhões de pacientes para atingir a marca de 50% de controle.
O número de pessoas com hipertensão no mundo
dobrou entre 1990 e 2019, de 650 milhões para 1,3 bilhão. Fenômeno semelhante
ocorre com a diabetes.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, a
prevalência foi de 8,5% para 12,1% entre 2020 e 2023. Estudo da Universidade de
Washington do ano passado aponta 529 milhões de pessoas com diabetes no mundo
—e que o montante
dobrará até 2050, ao atingir cerca de 1,3 bilhão.
Com o envelhecimento global da população, as
doenças crônicas não transmissíveis, que matam 41 milhões de pessoas por ano
(74% das mortes no mundo), serão acada vez mais comuns.
O lado bom é que são males preveníveis e controláveis. É preciso fortalecer a atenção primária em saúde e as taxas de controle. Deve-se atuar nas causas desde a mais tenra idade. Atividade física, dieta saudável, conter o tabagismo e o consumo de álcool são medidas capazes de salvar vidas.
Freio ao revisionismo histórico do STF
O Estado de S. Paulo
O ministro Mendonça autoriza a renegociação
de valores dos acordos de leniência firmados por empresas pilhadas na Lava
Jato, mas não a revisão da história, como pretendia Toffoli
Em audiência de conciliação anteontem, o
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça autorizou empresas
que firmaram acordos de leniência no âmbito da Operação Lava Jato a
renegociarem os termos pactuados com órgãos públicos. Na superfície, pode
parecer que a decisão aprofunda ainda mais a bagunça institucional promovida
pelo voluntarismo revisionista do ministro Dias Toffoli. Na prática, é um passo
para pôr ordem na casa.
Em setembro passado, Toffoli fez terra
arrasada de anos de trabalho de diversas instituições estatais, concedendo uma
liminar que anulou todas as provas obtidas por meio do acordo de leniência da
Odebrecht (hoje Novonor). Em dezembro, suspendeu a multa acertada com a
J&F. Logo depois, suspendeu a multa da Odebrecht.
São decisões eivadas de impropriedades, na
forma e no conteúdo. Toffoli deveria ter se declarado impedido na ação da
J&F, de quem sua esposa é advogada. De resto, é incompetente. Toffoli
assumiu sob sua jurisdição o pedido da J&F, sob o pretexto de que teria
relação com uma ação proposta pela Odebrecht. Mas o acordo da J&F,
celebrado com o Ministério Público Federal de Brasília sem qualquer relação com
os casos de Curitiba, deveria ter sido redistribuído. Casos como esses, de
imensa comoção pública e impacto multibilionário para o erário, deveriam ter
sido submetidos imediatamente ao plenário. Mas Toffoli tomou decisões
monocráticas, algumas em pleno recesso judiciário, cujos efeitos se mantêm.
Ainda mais absurda foi a sua fundamentação.
Na decisão que anulou as provas obtidas com a Odebrecht, Toffoli descreveu a
Lava Jato como uma imensa “conspiração” com o objetivo de “conquista do
Estado”, o “ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”. Essas
alegações genéricas – que ecoam a narrativa lulopetista de um complô urdido
pelo FBI e a Justiça brasileira para destruir empresas nacionais e golpear o
“governo do povo” – basearam o entendimento de que 100% do que ocorreu na Lava
Jato está contaminado.
Em concreto, a única justificativa relevante
era de “dúvida razoável” a respeito da voluntariedade dos acordos. A alegação
flagrantemente irrazoável é de que empresários amparados por batalhões de
advogados dos mais caros do País teriam sido coagidos (no “pau de arara do
século 21”, conforme Toffoli) a confessar crimes que não cometeram. A ser
assim, os acordos deveriam ser anulados. Mas no entendimento de Toffoli o
suposto constrangimento ilegal deve sustar o ônus dos acordos (como multas e
restrições à participação em licitações públicas), preservando seu bônus (a não
persecução penal).
Todas essas, por sinal, são as alegações dos
autores da ação julgada por Mendonça, os partidos de esquerda PCdoB, PSOL e
Solidariedade – incomumente sensibilizados com a “perseguição” sofrida por
megaempresários num contexto de “Estado de coisas inconstitucional” –, para
pedir que os acordos sejam invalidados.
Mas, se havia “dúvida razoável” de
“constrangimento ilegal” das empresas, ela caiu por terra na audiência
promovida por Mendonça: nenhuma delas sustentou este argumento. Ou seja, os
crimes aconteceram, tal como foram confessados. O que as empresas querem é
abrandar a sua classificação e, assim, o cálculo das multas. Mas os fatos, como
afirmou o ministro, não estão sujeitos à revisão.
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso,
gosta de dizer que o papel da Corte é ser uma vanguarda iluminista que empurra
a história na direção certa. A ambição de Toffoli – que já disse que os
ministros são “editores” do País – parece um pouco mais modesta: reescrever a
história conforme a narrativa lulopetista. Mas, nesse afã, acabou sendo mais
católico que o papa – nem os empresários admitem sua “tese da coação” – e a
emenda saiu pior que o soneto – o próprio governo, de olho nas receitas
polpudas pactuadas nos acordos, apresentou, por meio da Advocacia-Geral da
União, um parecer questionando a suspensão das obrigações pecuniárias da
Odebrecht.
O fato é que já passou da hora de o STF
deixar a história seguir seu curso, e simplesmente aplicar a lei.
A maior dívida social do Brasil
O Estado de S. Paulo
O Marco do Saneamento abriu um leque de
possibilidades de investimento. Mas o poder público, o maior responsável por
perpetuar essa chaga civilizacional, ainda precisa fazer mais
O Brasil é um dos países mais desiguais do
mundo e nada expõe mais essa desigualdade do que o acesso à água e ao esgoto.
Segundo o Censo do IBGE, com dados de 2022, quase 50 milhões de brasileiros,
1/4 da população, não têm coleta de esgoto. Quase 40 milhões despejam seus
dejetos em fossas rudimentares ou buracos e cerca de 4 milhões em rios, lagos
ou no mar. Mais de 6 milhões de brasileiros não têm acesso à água e dependem de
caminhões-pipa ou água da chuva, rios ou açudes sem o devido tratamento. Mas o problema
pode estar subestimado: pelos critérios do Sistema Nacional de Informações
sobre Saneamento, de 2022, são 93 milhões de brasileiros (44%) sem coleta de
esgoto e 33 milhões (15%) sem água tratada.
Os números do IBGE escancaram ainda a
desigualdade regional. No Norte e no Nordeste, respectivamente, só 46% e 58% da
população têm coleta de esgoto.
Para adicionar insulto à injúria, 1,2 milhão
de crianças, segundo o Censo Escolar do Inep, estudam em colégios sem acesso à
água potável.
Além da incidência de doenças relacionadas
diretamente à exposição a ambientes sem saneamento (leptospirose, disenteria,
tifo, cólera), a falta de saneamento impacta o meio ambiente, a produtividade
do trabalho, o rendimento escolar, os valores imobiliários e o turismo. Segundo
o Instituto Trata Brasil, a universalização do saneamento básico proporcionaria
um retorno de R$ 1,125 trilhão nas próximas duas décadas.
Essa tragédia humanitária não é uma
consequência natural da realidade socioeconômica do Brasil – o saneamento no
País está bem abaixo da média de outros países de renda média-alta e mesmo de
renda média. Portanto, é só incúria, pura e simples, do poder público.
Diferentemente de outros setores – como
energia, telecomunicações e, em alguma medida, transportes –, que foram
transformados por reformas que abriram os mercados nos anos 90, o saneamento
permaneceu por mais duas décadas sob o modelo do monopólio estatal, à mercê da
voracidade clientelista e corporativista. Não é uma coincidência que justamente
nos Estados do Norte e Nordeste, onde esse modelo prevalece, o saneamento é
mais periclitante.
O Marco do Saneamento, aprovado em 2020,
buscou reverter esse quadro, definindo metas para a universalização, obrigando
a licitação para a escolha dos prestadores, garantindo mais segurança jurídica
à privatização das companhias estaduais, estimulando a prestação regionalizada
de serviços e conferindo à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)
o papel de padronizar a regulação e a fiscalização dos serviços.
Os resultados já se fazem sentir. Segundo as
projeções da Carta de Infraestrutura da consultoria Inter.B, os investimentos
totais em saneamento, que em 2022 somaram R$ 21,1 bilhões, devem chegar em 2024
a R$ 30,4 bilhões. A concorrência do setor privado deu inclusive um impulso ao
investimento de algumas grandes empresas estatais. Ainda assim, para
universalizar os serviços até 2033, será preciso atingir uma média anual de R$
50 bilhões.
Tudo isso apesar dos tremores causados pelas
tentativas do atual governo, frustradas pelo Congresso, de reverter as regras
do Marco, restaurando privilégios obscenos e inconstitucionais das estatais.
Ainda há muito a fazer. A ANA ainda precisa
regulamentar o sistema de prestação regional que viabilizará o chamado modelo
“filé com osso” de contratos casados entre grandes municípios altamente
rentáveis (o filé) e aqueles desprovidos de capacidade técnica e financeira (o
osso). O Congresso ainda precisa regulamentar os regimes de exceção na reforma
tributária, com o potencial de reduzir tarifas de serviços essenciais, como o
saneamento. Investimentos mais substantivos podem ser destravados com formatos
bem estruturados de concessões, PPPs ou venda de participação acionária.
Fundamental é uma política fiscal crível e sustentável para melhorar a nota do
País junto às agências de classificação de risco.
São medidas que devem estar no rol de
prioridades máximas dos Três Poderes, nas instâncias federal, estaduais e
municipais, se esta geração quiser sanar a maior chaga civilizacional da
história brasileira.
A improvável meta fiscal
O Estado de S. Paulo
Acionamento dos impopulares gatilhos do
arcabouço será o maior teste da credibilidade de Haddad
A Instituição Fiscal Independente (IFI) do
Senado reviu para cima sua estimativa inicial para as receitas geradas pelas
medidas aprovadas pelo Congresso no ano passado. O órgão, que previa uma
arrecadação extra de R$ 105,3 bilhões para este ano, elevou a projeção para R$
130,4 bilhões na edição do Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de
fevereiro. A nova previsão, no entanto, ainda corresponde a menos da metade dos
R$ 274,7 bilhões que o Executivo espera obter no ano em que se propõe a zerar o
déficit primário.
Os cálculos da IFI não foram exageradamente
pessimistas, ao contrário. Para a instituição, a tributação dos fundos
exclusivos, aprovada no fim do ano passado, deve render R$ 24,6 bilhões, bem
mais que os R$ 13,3 bilhões previstos pelo próprio governo. Muitas das
projeções da entidade correspondem exatamente àquelas que o Executivo calculou,
como a arrecadação esperada com a taxação das apostas de quota fixa e com a
reoneração dos combustíveis.
As inconsistências são as mesmas já
mencionadas pela IFI em edições anteriores do relatório. O governo espera
arrecadar R$ 35,3 bilhões com a cobrança de tributos federais em operações de
subvenção estadual, bem mais que os R$ 7,6 bilhões considerados pela
instituição, e recuperar R$ 97,9 bilhões em créditos em disputa no Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), muito mais que os R$ 32,3 bilhões
projetados pelo órgão. Do lado das despesas, a IFI acredita que o Executivo
subestimou os desembolsos que terá com benefícios previdenciários em nada menos
que R$ 24,1 bilhões.
Chama a atenção a insistência do governo em
desprezar a renúncia gerada pela desoneração da folha de pagamento, aprovada
pelo Congresso no ano passado. A IFI, de maneira prudente, estima uma renúncia
de R$ 20 bilhões, mas o Executivo projeta uma perda de apenas R$ 5,6 bilhões –
cenário que só seria factível se a medida provisória que reonera os 17 setores
fosse aprovada pelo Congresso sem qualquer mudança.
Tal obstinação só se explica pela guerra que
a Fazenda trava para manter a meta de déficit zero neste ano. Tudo que o
ministro quer é postergar ao máximo a necessidade de contingenciar despesas,
mesmo que os números só tenham validade no papel. Nas contas da IFI, o bloqueio
teria de atingir R$ 49,7 bilhões para que o objetivo fosse cumprido.
Em paralelo, o governo também confia na
benevolência do Tribunal de Contas da União (TCU). Espera que o órgão dê
guarida à estapafúrdia tese de que o arcabouço fiscal e a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) limitaram o contingenciamento em R$ 25,9 bilhões,
ultrapassando diretrizes da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Caso a meta seja descumprida, e na hipótese de que não seja alterada antes disso, será preciso acionar os gatilhos previstos no arcabouço fiscal para ajustar o crescimento das despesas, o que promete ser o maior teste de credibilidade do ministro. Haddad pode até ganhar alguns meses com essa estratégia, mas não escapará do necessário debate de corte de gastos por muito tempo.
Inflação ainda tem um longo caminho até a
meta
Valor Econômico
É desejo de todos que o Banco Central corte
de forma mais acelerada e profunda os juros, mas, para tanto, seria preciso
maior coordenação entre os instrumentos monetários e fiscais
O Banco Central fez progressos notáveis em
baixar a inflação desde seu pico, em 2021, mas os índices de preços mais
recentes sugerem que ainda há um bom caminho a percorrer para cumprir a meta de
3% estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Certamente, seria mais
fácil se houvesse um maior alinhamento entre a política monetária e a fiscal,
com uma postura mais austera na administração dos gastos públicos.
O IPCA-15 de fevereiro, que é a prévia do
Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ficou em 0,78%, um pouco abaixo da
mediana das projeções de consultorias e instituições financeiras coletadas
pelo Valor Data, de 0,82%. A primeira reação do mercado financeiro foi
positiva, com uma leve queda na curva de juros futuros. É bem provável que, a
partir dessa surpresa, as projeções de inflação dos especialistas para o IPCA
fechado de fevereiro sofram um recuo. Também podem se esperar impactos
positivos para as expectativas de inflação de 2024, que na última semana já
recuaram levemente, de 3,82% para 3,8%.
O índice de 0,78%, em si, é alto,
representando mais do que o dobro do 0,31% de janeiro. Mas já era algo
esperado. Todos os anos, nos meses de fevereiro, a inflação dá uma acelerada
temporária porque entram em vigor os reajustes das mensalidades escolares.
Neste mês, tivemos também o impacto negativo do aumento do ICMS cobrado pelos
Estados nos combustíveis.
O que preocupa um pouco, no IPCA-15, é a
falta de progressos na queda da inflação acumulada em 12 meses. Na verdade, o
índice subiu levemente, de 4,47% para 4,49%, entre janeiro e fevereiro. É mais
um dado que confirma que, depois da grande desinflação dos dois últimos anos,
os avanços tendem a ser mais lentos daqui por diante.
Por ora, não há dúvida sobre a direção
baixista, apesar do soluço do IPCA-15 de fevereiro. A aposta do próprio Banco
Central é que esse processo de desinflação prossiga neste ano e no próximo, com
o recuo do IPCA para 3,5% em 2024 e para 3,2% em 2025. Embora um pouco menos
otimista, o mercado também acredita que a direção da inflação é de queda, para
3,8% em 2024 e 3,5% em 2025.
No entanto, essa é a estimativa feita pelos
especialistas com base nos seus modelos macroeconômicos, que, por mais bem
calibrados que sejam, na essência representam uma tentativa de prever o futuro.
Os indicadores qualitativos de inflação - os chamados núcleos - efetivamente
coletados e medidos a cada mês auxiliam para confirmar se as projeções estão no
caminho certo.
De novo, a direção segue correta. A média dos
cinco núcleos de inflação preferidos pelo Banco Central voltaram a recuar, nos
dados acumulados em 12 meses, de 4,24% para 4,12%, e seguem abaixo da inflação
cheia. Porém, atualmente eles não estão mais recuando com a mesma velocidade
observada no segundo semestre de 2024.
Merece maior visibilidade um núcleo de
inflação em especial: os serviços subjacentes, que apresentaram uma nova
aceleração, de 4,91% para 4,99%, entre janeiro e fevereiro. É a terceira alta
seguida. O Banco Central costuma acompanhar com atenção esse núcleo de inflação
porque ele reflete mais de perto o grau de aquecimento da economia e de aperto
no mercado de trabalho.
Até fins de 2023, todo esse conjunto de
núcleos de inflação baixou de forma acelerada graças, em grande parte, ao recuo
dos preços de alimentos, combustíveis e bens industriais, com a normalização
das cadeias de fornecimento global depois da pandemia. Com a queda do índice, a
inércia inflacionária perdeu força, levando a uma moderação inclusive nos
preços de serviços.
Ao que parece, esse processo se esgotou. O
recuo da inflação passou a depender mais diretamente dos esforços da política
monetária, que, até agora, têm sido bem-sucedida em desacelerar a economia sem
provocar uma recessão. O Banco Central está mantendo os juros sob rédea curta,
promovendo cortes de 0,5 ponto percentual na taxa Selic e, ao mesmo tempo,
sinalizando que vai manter os juros no campo restritivo.
É desejo de todos que o Banco Central corte
de forma mais acelerada e profunda os juros, criando condições financeiras mais
propícias para a volta dos investimentos na produção. Para tanto, porém, seria
preciso maior coordenação entre os instrumentos monetários e fiscais.
Podem-se discutir os méritos de programas de
gastos em particular, mas, no conjunto, a expansão da despesa está atuando na
contramão dos esforços desinflacionários, por pelo menos dois canais. Primeiro,
representa um aumento na demanda agregada, num momento em que a taxa Selic
procura contê-la. Segundo, deteriora a percepção sobre a solvência do governo,
pressionando a cotação do dólar e dificultado a ancoragem das expectativas de
inflação.
Nada disso impede que o Banco Central cumpra
o seu dever, mas o caminho tende a ser lento, como mostra o IPCA-15. Em termos
práticos, ao fim do processo teremos juros mais altos e menos crescimento da
economia.
Reforma sobre a renda: necessária e urgente
Correio Braziliense
Mais uma vez é preciso falar da necessidade
de se promover uma reforma tributária sobre a renda, para que o custo do Estado
não recaia de forma tão pesada sobre a classe média brasileira, sobretudo os
trabalhadores, que têm o imposto descontado diretamente do salário
Termina amanhã o prazo para que as empresas
entreguem aos trabalhadores o Informe de Rendimentos do ano de 2023 para que os
mesmos possam, a partir de 15 de março, prestar contas ao fisco. Assim, mais
uma vez é preciso falar da necessidade de se promover uma reforma tributária
sobre a renda, para que o custo do Estado não recaia de forma tão pesada sobre
a classe média brasileira, sobretudo os trabalhadores, que têm o imposto
descontado diretamente do salário. O plano, embutido na própria reforma tributária,
é que o governo encaminhe ao Congresso as alterações na tributação sobre a
renda para que sejam apreciadas e votadas no primeiro semestre deste ano.
No entanto, especialistas e mercado
financeiro não acreditam mais na possibilidade de a reforma dos impostos sobre
a renda ser votada em 2024, principalmente por ser este um ano que terá
eleições para prefeitos e vereadores nos 5.568 municípios do país, o que
mobiliza parlamentares em suas bases eleitorais. O risco que se deve evitar é o
de ela ficar parada na Câmara ou no Senado, como a reforma tributária, que
tramitou por cerca de cinco anos após mais de 30 de discussões em torno do novo
regramento tributário do país.
Se houve celeridade no ano passado por
aprovar uma mudança nos impostos que incidem sobre o consumo, buscando atender
aos interesses de todos os setores da economia, é lógico se esperar a mesma
rapidez na condução das proposta que vão mudar a carga fiscal sobre a renda,
sob pena de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terminar seu mandato sem ver
implantada sua promessa de campanha de elevar a isenção do Imposto de Renda
Pessoa Física (IRPF) para R$ 5 mil, um valor que vai isentar quem ganha três
salários mínimos e meio.
Essa correção, no entanto, não deverá ocorrer
com a eliminação de gastos com saúde e educação, pois são serviços que o Estado
deveria prover a todos os brasileiros e, como não o faz, obriga uma parcela
significativa dos contribuintes a lançar essas despesas, que são, sobretudo, um
ressarcimento. Ao elevar a faixa de isenção e eliminar as deduções, o governo
está dando com uma mão e tirando com a outra. E isso não deve ocorrer sob pena
de ter um efeito contrário para o contribuinte que hoje tem despesas a deduzir.
A correção das alíquotas do Imposto de Renda
é fundamental para os trabalhadores brasileiros que veem sua renda corroída
pela inflação. Em uma comparação simples, as correções feitas na tabela do IR
em 2023 e este ano representam um aumento de 49% no valor da isenção, que
estava congelado em R$ 1.903,98 desde 2015. Nesses nove anos a inflação
acumulada chega a 67,54%. Isso significa que a inflação corrói a renda de um
lado e o governo leva parte dessa mesma renda, num quinhão cada vez maior em
relação ao poder de compra do salário. A correção simples, pela inflação do
período, levaria a faixa de isenção para R$ 3.189 já neste ano.
O valor é baixo e quase insignificante em
relação ao que o governo deixou de arrecadar com isenções tributárias, que
passaram de R$ 450 bilhões por ano, em números de 2022. Com a MP editada no
início deste mês, o governo estima abrir mão de R$ 3,03 bilhões em 2024, o que
representa 0,67% do total de isenções. Isso mostra que a correção da tabela não
é um problema do ponto de vista fiscal, mas sim político. É preciso que essa
barreira seja superada para que também os trabalhadores tenham a carga fiscal ajustada
à sua renda e não à necessidade de caixa do governo, que nem sempre é rigoroso
em relação a outros segmentos da sociedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário