Valor Econômico
Ato mostra realidade que contraria análises
que previam uma pacificação do país após a eleição de 2022 e um declínio na
relevância política do ex-presidente
Sob qualquer métrica, o ex-presidente Jair
Bolsonaro atingiu seus objetivos com a manifestação realizada na Avenida
Paulista no último domingo. Acuado diante de investigações contra ele e membros
de seu círculo pessoal, Bolsonaro deu uma demonstração de força política.
Dados da Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo apontam que entre 600 mil e 750 mil pessoas compareceram ao ato.
Ainda que esses números não sejam precisos - ou sejam até mesmo inflados - as
imagens deixam claro que a manifestação teve um tamanho considerável. Por sua
vez, o pedido do ex-presidente para que os participantes evitassem cartazes
criticando diretamente o Judiciário foi atendido - o que atenua o risco
(relevante) de dar mais munição a ações judiciais contra ele. Finalmente, as
grandes lideranças nacionais de direita compareceram ao evento.
A manifestação pode ser examinada sob duas óticas: suas repercussões de curto prazo ou que ela indica sobre o futuro da política brasileira. A segunda é bem mais relevante que a primeira.
No curto prazo, pouco de fato muda. A
situação jurídica do ex-presidente segue a mesma: embora o ato tenha
evidenciado sua força política, o Supremo Tribunal Federal (STF) já deu vários
indícios de que vê parte do movimento bolsonarista como uma ameaça ao estado
democrático de direito. As evidências coletadas nas últimas rodadas de
investigações reforçaram essa percepção, e os tribunais dificilmente serão
influenciados pelas ruas. Na margem, por sinal, o discurso de Bolsonaro no
protesto de domingo pode ter piorado sua situação jurídica, já que ele insinuou
que teria conhecimento da minuta propondo suspender o resultado das eleições.
O protesto também não altera o jogo político
no Congresso ou a capacidade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva encaminhar
sua agenda legislativa. Parlamentares são influenciados pela perspectiva futura
de poder, orientações ideológicas e acesso a benefícios. Embora o poder de
barganha do Executivo tenha caído estruturalmente na última década, um
presidente razoavelmente popular e com cargos e verbas para distribuir sempre
pode construir maiorias parlamentares, mesmo que pontuais. Lula tem aprovação ainda
acima de 50%, e a economia vai razoavelmente bem - assim, lideranças de centro
dificilmente queimarão suas pontes com o Planalto.
Disputa de 2026 passa por Bolsonaro, já que
não há “espaço vazio” a ser ocupado por moderado de centro-direita
Mas é sob a lente do que ele indica sobre o
futuro do país que o protesto de domingo tem mais relevância. O ato mostra que
o país segue profundamente dividido, e que Bolsonaro mantém sua força política,
mesmo inelegível (e possivelmente futuramente preso). Essa realidade contraria
análises que previam uma pacificação do país após a eleição de 2022 e um
declínio na relevância política do ex-presidente.
Dados de opinião pública reforçam o
diagnóstico de que nada mudou desde as eleições. Em janeiro de 2024, 38% dos
eleitores acreditavam que o ex-presidente recebeu mais votos que Lula, segundo
levantamento da AtlasIntel. Um ano antes, eram 40%. Ao mesmo tempo, 43% dos
eleitores continuam apoiando o ex-presidente - um patamar quase idêntico ao
registrado pela pesquisa na data da eleição.
Um ano de investigações, denúncias sobre a
venda ilegal de presentes recebidos no exercício do cargo de presidente e
suspeitas de tentativa de golpe de estado tiveram impacto nulo sobre o apoio
popular a Bolsonaro.
Esse resultado se alinha a dados da IPSOS
Public Affairs, que mensura anualmente a percepção de que o “sistema está
quebrado” entre eleitores de 25 países. A pesquisa mostra que esse índice tende
a cair após uma eleição, conforme os eleitores do vencedor se sentem mais
representados. O que chama a atenção, no entanto, é o grau de estabilidade em
respostas que sugerem uma profunda falta de confiança em instituições como a
mídia, o Judiciário e a classe política.
Em países profundamente divididos como o
Brasil e os EUA, a política nacional tem períodos de calma na superfície: logo
após uma eleição, o presidente goza de uma aprovação um pouco maior, a oposição
recua e seus apoiadores se recolhem um pouco mais. Esse fenômeno foi visto no
Brasil - exacerbado, claro, pelas repercussões de 8 de janeiro - e nos
primeiros anos do governo do presidente Joe Biden nos Estados Unidos. Mas lá,
como aqui, quase 40% da população se opõe estruturalmente ao governo atual, e é
leal a uma liderança que se posiciona como “contra o sistema”. É uma questão de
tempo até que esse eleitorado volte a se manifestar.
Em outras palavras: a aparente calmaria não
deve ser confundida com um sinal de ausência de divisão profunda na sociedade.
Um “racha” que, no Brasil, está se aprofundando conforme as investigações
conduzidas pelo STF reforçam a visão do eleitorado conservador de que os
tribunais estão coibindo direitos individuas e a liberdade de expressão.
O que isso significa na prática?
Primeiro, a candidatura de oposição na
disputa presidencial de 2026 passa pelo ex-presidente. Não há um “espaço vazio”
deixado por Bolsonaro que possa ser ocupado por uma liderança moderada de
centro-direita. Quem quer que tenha o apoio do ex-presidente deverá entrar na
disputa em vantagem no campo da oposição ao governo atual - uma realidade já
compreendida no campo oposicionista. Chama a atenção que quase todas as
principais lideranças da oposição - incluindo as mais moderadas - participaram
do ato na Avenida Paulista. Essa lista incluiu os governadores de São Paulo,
Minas Gerais, Santa Catarina e Goiás, assim como o prefeito de São Paulo,
Ricardo Nunes. Todos reconhecem que o custo eleitoral de ser visto como
“traidor” do ex-presidente tende a ser alto.
Segundo, o custo do apoio de Bolsonaro tende
a subir ao longo do tempo. Antes do ato, algumas lideranças mais moderadas
deram sinais de dúvida sobre se estariam presentes - ao final do dia, a maioria
dessas lideranças compareceu. Mas, à medida que as dificuldades jurídicas e
criminais do ex-presidente crescem e ele enfrenta o risco de ser preso,
Bolsonaro deve cobrar declarações mais públicas em sua defesa. Assim, o
ex-presidente certamente escolherá alguém que lhe seja muito fiel - diminuindo
a possibilidade de vir a apoiar lideranças mais moderadas para 2026.
Finalmente, com quase 40% do eleitorado
conservador acreditando que a eleição de 2022 foi “roubada”, e certamente
enxergando ações do STF como um cerceamento de direitos individuais, propostas
no Congresso para limitar os poderes dos tribunais não vão desaparecer tão
cedo. Embora não haja condições políticas para que elas sejam aprovadas este
ano, essa ambiente de opinião pública garante que essas propostas sempre terão
chances de avançar no Congresso.
*Christopher Garman é diretor executivo para
as Américas do Eurasia Group
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