O Globo
Lula e Bolsonaro tentam editar declarações
comprometedoras numa era em que vídeos deixam pouca margem para dúvida
Numa era em que declarações de políticos
ganham as redes sociais, com direito a vídeo em questão de minutos, tentar
reescrever declarações e adicionar “contextos” ou interpretações posteriores
tem pouca validade para além de apaziguar as torcidas organizadas. Foi o que
tentaram fazer, no mesmo dia, Lula e Jair Bolsonaro, com falas recentes que
causaram celeuma.
O presidente concedeu entrevista ao
jornalista Kennedy Alencar em que se apegou ao fato de não ter usado a palavra
“Holocausto” em sua declaração em Adis Abeba, onde disse que o único precedente
para o que Israel comete na Palestina tinha sido “quando Hitler resolveu matar
os judeus”.
Não é preciso fazer um tratado de
interpretação de texto para saber que a ausência da denominação histórica dada
à matança dos judeus pela Alemanha nazista não elimina a comparação disparatada
feita pelo presidente brasileiro.
Esse tipo de contorcionismo poderia e deveria ser evitado por Lula. Se ele não viu razões para se retratar da fala, não há por que achar que Holocausto foi “interpretação” de Benjamin Netanyahu. Não foi o primeiro-ministro de Israel que deu nome ao evento histórico nefasto do Holocausto.
E, se é verdade que o governo de Israel
surfou no episódio da fala de Lula de formas bem pouco republicanas e tentou
extrair dele dividendos políticos num momento de contestação interna, isso não
atenua o fato de a declaração de Lula ter ferido judeus brasileiros e do mundo
todo, e a eles deveria ser dirigida alguma reflexão do petista a respeito. Não
um truque retórico, mas uma sincera avaliação a respeito de comparar momentos
históricos que não se prestam a isso, quando não era necessário fazê-lo para
pressionar pelo fim imediato das violações humanitárias e crimes de guerra em
Gaza.
A tentativa canhestra de aliados de Jair
Bolsonaro de socorrê-lo das próprias palavras na Avenida Paulista soa a
desespero. É sabido que a autossuficiência de Bolsonaro geralmente lhe rende
complicações judiciais e policiais, e já era previsível que, colocado diante de
uma multidão vestida de camisas da Seleção Brasileira, ele tivesse grandes
chances de produzir evidências contra si mesmo.
Foi o que fez ao tentar se desvencilhar das
minutas golpistas que circularam livremente pelo governo, a ponto de guardar a
cópia de uma delas meses depois em seu escritório no PL. Acabou por admitir sua
existência, ainda que minimizando a gravidade.
De nada adiantará o esforço de reescrita das
palavras do ex-presidente feita por advogados e assessores. A fala fartamente
distribuída nas tão veneradas redes sociais bolsonaristas já está em poder da
Polícia Federal e deverá ser usada como prova de corroboração de evidências já
reunidas pelos investigadores a respeito das sucessivas tramas golpistas
lideradas pelo então chefe do Poder Executivo.
Tanto Lula quanto Bolsonaro escorregaram na
mesma armadilha política, ainda mais tentadora em tempos de polarização
inflamada: falar para as claques.
O presidente pouco ou nada agregou em termos
de apoio interno ao comparar a ofensiva israelense contra os palestinos ao
Holocausto, com ou sem o título. Pode ter emocionado a ala mais radicalizada da
esquerda, mas assustou a mais moderada e ainda provocou aversão na comunidade
judaica, que, como se viu na Paulista no domingo, acaba se voltando para
Bolsonaro diante dessa revolta.
Bolsonaro também não teria nada a ganhar do
ponto de vista jurídico conclamando uma micareta golpista na Paulista. Mas
ficou todo orgulhoso ao constatar o que pesquisas já mostravam: mantém a
ascendência sobre parcela significativa do eleitorado. Que de nada adianta
diante de sua inelegibilidade e que não terá valia também diante das esperadas
complicações dos demais inquéritos a que responde e para os quais não cansa de
fornecer evidências.
2 comentários:
Perfeito.
Não há nível de comparação.
Postar um comentário