Folha de S. Paulo
Governo israelense estabeleceu equivalência
entre civis palestinos e o Hamas
Naquele 10 de outubro, dia do sangue, do
sequestro e do estupro, Israel ganhou a oportunidade de livrar a si mesmo da
ignomínia da ocupação sem fim e, ao mesmo tempo, de libertar os palestinos da
maldição do Hamas. No lugar disso, Netanyahu, o rei devasso de Israel, escolheu
a perversidade. Hobbes passeia em Gaza.
"Israel está em guerra com o Hamas, não com a população de Gaza", afirmou o general Herzi Halevi, desculpando-se em nome das forças armadas que comanda pelo bombardeio contra um comboio humanitário da WCK (World Central Kitchen). Não é verdade: o padrão de violações das leis de guerra prova que o governo israelense estabeleceu uma equivalência entre os civis palestinos e o Hamas. Na prática, tudo que se move no diminuto território é visto como alvo legítimo.
A guerra justa nunca seria fácil. No poder
desde 2007, o Hamas enredou-se no tecido social de Gaza, infiltrou-se nos
hospitais, nas escolas e na agência da ONU para refugiados palestinos. Toda a
população do território foi convertida em um largo escudo humano. Israel
precisaria separar o escudo dos combatentes, por meio de ações militares
cirúrgicas e deslocamentos demográficos temporários, inclusive para dentro de
seu próprio território, como chegou a aventar a The Economist.
Contudo, no lugar disso, escolheu a via
criminosa da punição coletiva, engendrando uma crise de fome que se combina com
um desastre sanitário. De certa forma, o Hamas sai-se vitorioso da derrota
militar, pela difusão mundial da noção antissemita de que o Estado judeu não
tem o direito de existir.
A hegemonia militar é insuficiente. O triunfo
na guerra justa depende de uma saída política: a substituição da ditadura do
Hamas por um governo palestino unificado e representativo. A Autoridade
Palestina e os países árabes moderados revelaram-se dispostos a engajar-se na
tarefa, com a condição de que, no fim da estrada, ela conduza ao
estabelecimento de um Estado Palestino. Mas, desde o início, o governo
israelense barrou as articulações diplomáticas nessa direção.
Netanyahu deixou Biden falando sozinho,
provocando-lhe "crescente frustração". Sua visão do pós-guerra: uma
administração de clãs locais num território sob controle militar de Israel. O
nome disso é anarquia militarizada. No lugar do regime do Hamas, Gaza seria
convertida em teatro de guerra entre gangues de colaboracionistas pelo controle
de migalhas de ajuda humanitária.
É o que, embrionariamente, já acontece. A
maior parte das tropas israelenses retirou-se para o entorno de Gaza, enquanto
as forças remanescentes concentram-se na estrada que biparte o território.
Segundo relatos de trabalhadores humanitários, na terra sem governo impera a
lei das milícias. As casas de habitantes da Cidade de Gaza deslocados para o
sul são saqueadas por gangues e os frutos dos assaltos reaparecem em mercados
informais. Configura-se, aos poucos, uma economia subterrânea hobbesiana.
A lei do mais forte estende-se à ajuda
humanitária. Israel impede que a UNRWA, agência da ONU para refugiados
palestinos, continue a operar. A escassa ajuda externa não é distribuída por
soldados, mas lançada dos ares ou, até o ataque à WCK, transportada em veículos
de organizações internacionais. O resultado previsível são pilhagens realizadas
por gangues armadas. Semeia-se, assim, o surgimento de uma geração de
"mártires" jihadistas ainda mais fanáticos que os terroristas do
Hamas.
Netanyahu não mais guerreia contra o Hamas.
Sua guerra transformou-se, exclusivamente, numa estratégia de sobrevivência
política: evitar eleições antecipadas. Suspenso no fio tênue de uma coligação
com supremacistas judaicos, ele decidiu congelar o impasse sangrento. Só os EUA
dispõem dos meios para interromper a tragédia, pela suspensão da ajuda militar
a Israel. Terá Biden a coragem de negar Hobbes?
2 comentários:
Até o limitado Magnoli consegue ENTENDER e MOSTRAR o ÓBVIO...
Todos contra todos,o homem é o lobo do homem.
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