Folha de S. Paulo
Num ambiente polarizado, disputa entre
Congresso e Supremo não é ingênua
No Estado de Direito, os réus não escolhem os
juízes que irão julgá-los, nem os juízes podem escolher os réus que irão
julgar. Para evitar privilégios e arbitrariedades, o "juiz natural"
deve estar previamente estabelecido pela Constituição ou pela lei.
Na última semana, assistimos a um novo
episódio da interminável batalha dos Poderes, agora em torno da definição do
chamado foro por prerrogativa de função. A extrema direita, implicada na
tentativa de golpe, resgatou uma antiga PEC com o objetivo de esvaziar a
competência do Supremo Tribunal Federal para julgar os membros do Parlamento.
Na trincheira oposta, ministros do Supremo aproveitaram o julgamento de um habeas corpus em favor de um senador acusado da prática de rachadinha para revisitar uma decisão tomada pelo Supremo, em 2018, que estabelecia critérios para o exercício da jurisdição especial por parte do tribunal.
Em um ambiente de forte polarização entre o
Congresso e o Supremo, não se trata de uma disputa ingênua, até porque não são
poucos os senadores dispostos a dar início a um processo de impeachment de
ministros do Supremo para saciar a sede de vingança de eleitores mais
radicalizados.
Gostemos ou não da existência de foro
especial para determinadas autoridades, essa foi uma opção tomada pelo nosso
sistema constitucional desde sua origem. A justificativa republicana canônica
foi oferecida por Victor Nunes Leal, para quem a jurisdição especial não
deveria servir para proteger o "interesse pessoal do ocupante do
cargo", mas sim para favorecer o "bom exercício da função
pública", ou seja, a independência do mandato.
Mais do que isso, argumentava o jurista que,
ao se atribuir a um órgão colegiado a responsabilidade para julgar pessoas
poderosas, as Constituições buscavam evitar que essas pessoas pudessem
constranger um juiz singular. Trata-se, portanto, de "uma garantia
bilateral". De um lado, protege o mandato, de outro, a independência
judicial.
O fato é que a Constituição de 1988 tratou
do foro
por prerrogativa de função de maneira bastante sintética, deixando
espaço para conflitos interpretativos na definição dos seus contornos. As
principais controvérsias giram em torno de quais crimes praticados por
mandatários merecem ser objeto do foro especial e de inúmeras questões de
natureza temporal: os crimes praticados antes do início dos mandatos devem ser
objeto do foro especial? Os processos iniciados na jurisdição especial devem
ser enviados à primeira instância após o termino ou interrupção dos mandatos?
Em 2018, o Supremo aprovou proposta do
ministro Barroso definindo que: a) a jurisdição especial aplica-se apenas aos
crimes cometidos durante o mandato e a ele relacionados; b) os processos
deveriam ser enviados às instâncias inferiores com o término ou interrupção dos
mandatos, salvo quando a instrução já estivesse adiantada. Foi uma demonstração
de autocontenção por parte do Supremo.
A proposta neste momento em debate no Supremo
tem por objetivo dar um passo atrás, restringindo ainda mais a possibilidade de
desembarque daqueles que estejam ou venham a ser processados criminalmente no
Supremo. Esse movimento de fortalecimento do foro por prerrogativa de função
deixou em pânico parlamentares golpistas, milicianos e simpatizantes, daí a
retaliação veiculada pela PEC.
Independentemente da necessidade da calibração da regra para evitar impunidade, é fundamental que o Supremo compreenda que a constante flutuação de sua jurisprudência tem ampliado a desconfiança da opinião pública no tribunal. A legitimidade do tribunal depende, sobretudo, de sua capacidade de demonstrar que aplica de forma imparcial e consistente regras previamente estabelecidas.
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