CartaCapital
Suspeita-se que a leitura de ‘O Capital’
provocaria apagões na cachola liberal-positivista da economista
Imagino que o leitor de CartaCapital, em sua
busca de opiniões divergentes, se entregue à contemplação de matérias e artigos
dos jornais brasileiros e forâneos.
Em minha diária peregrinação na busca de
concepções e opiniões que divergem das minhas, deparei-me com o artigo de
Deirdre McCkloskey. Em poucas linhas, a professora emérita da Universidade de
Illinois cuida de desacreditar a Teoria do Valor-Trabalho de Karl Marx:
“Na década de 1870, os economistas de repente perceberam por que a teoria do trabalho está totalmente errada. A economia e as opções econômicas são sempre sobre decisões atuais que causam resultados futuros. Não têm a ver com a história. Você não pode ‘decidir’ sobre o passado. Os custos fixos já foram gastos. Economia tem a ver com o que você deve fazer a seguir. Portanto, a teoria do valor correta é o ‘produto marginal’, isto é, o produto futuro que obtemos de um pouquinho mais de trabalho, capital e terra. Os insumos já gastos não entram na conta. Marx morreu em 1883, depois da ‘Revolução Marginal’. Mas ele não reconheceu isso, deixando seus devotos seguidores no escuro, até hoje”.
Os mestres da senhora Deirdre professam a
Teoria da Utilidade Marginal. A Economia Política de
Stanley Jevons concentrou suas investigações nas escolhas individuais de consumidores e
produtores, os utilitaristas que definem a alocação de recursos dados e
escassos entre usos alternativos.
A escassez é condição importante para a
avaliação subjetiva que converte os bens da vida em riqueza e lhes confere
valor. Os objetos de desejo devem ter oferta limitada. “Assim, cada mercadoria
deve ser ofertada quando é mais desejada: nada deve ser ofertado em demasia,
isto é, fabricado em quantidades excessivas, [de modo] que seria melhor
empregar trabalho na manufatura de outras coisas… O propósito é obter a maior
riqueza com o menor custo.”
Trata-se de descobrir as formas concretas que
brotam do processo de movimento do capital
A produção envolve a combinação entre terra,
trabalho e capital. A substitutibilidade entre os bens e a substitutibilidade
entre fatores de produção criam as condições para a escolha individual. Isto
posto, a produtividade depende de duas condições: da Ciência e da Divisão do
Trabalho. “A Ciência nos habilita a fazer nossas tarefas com grande economia de
trabalho… A divisão do trabalho promove a invenção de um grande número de
máquinas que facilitam e encurtam o trabalho e permitem que um homem faça as tarefas
de muitos.”
Na teoria do Equilíbrio Geral de Walras, a
relação entre os indivíduos, consumidores ou proprietários privados de riqueza
é entendida a partir dos interesses conciliados pela ação racional-calculadora
dos indivíduos coordenada pelas virtudes do mercado competitivo. A socialização
dos indivíduos privados está ancorada na racionalidade otimizadora que ajusta
os desejos aos bens escassos.
Ainda hoje, os filhotes de Leon Walras
sustentam a lenda da separação entre o real e o monetário. O dinheiro em
Walras é apenas um numerário, um véu que encobre a realidade dos preços reais,
relativos.
As opiniões rápidas da emérita Deirdre
sugerem que ela estudou a Teoria do Valor-Trabalho de Karl Marx nos deploráveis
Manuais de Economia da União Soviética.
Marx faz a crítica de A Teoria do
Valor-Trabalho de Adam Smith e David Ricardo. (Crítica não é rejeição,
mas, sim, uma reconstrução.) Ele começa a investigação do Regime do Capital
cuidando da mercadoria, forma elementar da riqueza. Os produtores de
mercadorias fabricam diretamente para a troca, com o objetivo de transformar a
sua mercadoria particular em dinheiro, enquanto forma do valor e expressão
geral (social) da riqueza. Esse é o sentido do Regime do Capital como sistema
de intercâmbio generalizado de mercadorias.
“A natureza particular do dinheiro
evidencia-se de novo na separação dos negócios do dinheiro das relações
mercantis propriamente ditas. Vemos, portanto, como é imanente ao dinheiro
realizar suas finalidades à medida que simultaneamente se empenha em negá-las;
se autonomiza em relação às mercadorias; de meio, devir fim; realizar o valor
de troca das mercadorias ao se separar dele; facilitar a troca ao cindi-la;
superar as dificuldades da troca imediata de mercadorias ao generalizá-las;
autonomizar a troca em relação aos produtores na mesma medida em que os
produtores devem estar dependentes da troca… se pretendemos que o dinheiro só
troca riquezas materiais já existentes, então isto é falso, já que com o
dinheiro se troca e se compra também trabalho, ou seja, a própria atividade
produtiva, a riqueza potencial.”
Capital-dinheiro como riqueza potencial é
fundamental para a compreensão das articulações construídas ao longo dos três
volumes de O Capital. Vou encerrar com um depoimento de Karl Marx no Livro III
de O Capital:
“No Livro I, investigamos os modos de
manifestação que o processo de produção capitalista, considerado em si mesmo,
apresenta como processo direto de produção; nessa análise, ainda abstraíamos de
todos os efeitos secundários provocados por circunstâncias alheias a ele. Mas o
processo direto de produção não esgota a biografia do capital. Ele é
complementado, no mundo real, pelo processo de circulação, que constituiu o
objeto das investigações do Livro II. Nesse último, especialmente na Seção III,
dedicada à análise do processo de circulação como mediação do processo social
de reprodução, mostramos que o processo de produção capitalista, considerado
como um todo, consiste na unidade de processo de produção e processo de
circulação. Neste Livro III, nosso objetivo não poderia ser o de desenvolver
reflexões gerais sobre essa unidade. Trata-se, antes, de descobrir e expor as
formas concretas que brotam do processo de movimento do capital considerado
como um todo. Em seu movimento real, os capitais confrontam-se em formas
concretas, para as quais a configuração do capital no processo direto de
produção, do mesmo modo que sua configuração no processo de circulação, aparece
apenas como momento particular. Assim, as configurações do capital, tal como as
desenvolvemos neste livro, aproximam-se passo a passo da forma em que se
apresentam na superfície da sociedade, na ação recíproca dos diferentes
capitais, na concorrência e no senso comum dos próprios agentes da produção”.
Suspeito que leitura de O Capital provocaria
apagões na cachola liberal-positivista de Deirdre McCkloskey.
*Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital,
em 10 de abril de 2024.
Um comentário:
Blá-blá-blá-blá-blá-blá...
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