Valor Econômico
Seria realmente uma coincidência todos os
países ricos do mundo, com exceção de alguns com recursos naturais abundantes,
serem democracias liberais?
Na semana
passada, discuti o estado precário da democracia em webinário
organizado por uma organização de mídia indiana. Depois de minha apresentação,
uma pessoa do público perguntou por que os indianos deveriam ter qualquer
interesse na democracia. Não seria uma ideia do Ocidente imposta ao restante do
mundo? Os países em desenvolvimento não estariam em melhor situação com
autocracias tradicionais?
Fiquei ao mesmo tempo perturbado e satisfeito
com a pergunta - perturbado porque quando um membro da elite com ensino da
Índia a faz em um fórum público, ela revela alguma coisa, mas satisfeito porque
sei que muitos outros também a estão fazendo neste momento, e não apenas em
países em desenvolvimento. O poder de atração da tirania está crescendo.
O relatório Freedom in the World 2024, de um centro de estudos independente, a Freedom House, assevera que “a liberdade global diminuiu pelo 18º ano consecutivo em 2023”. Nos últimos dez anos, houve um grande declínio nos direitos políticos e civis em muitos países em desenvolvimento. Sob o governo de Narendra Modi, a Índia é, infelizmente, um desses países.
Será que tais declínios talvez sejam um preço
que vale a pena pagar em troca de um desenvolvimento econômico mais rápido? No
nível mais amplo, isso parece bastante improvável. Se deixarmos de lado alguns
países ricos em recursos naturais e Hong Kong e Cingapura, os países mais ricos
do mundo são, todos, democracias liberais. Seria realmente apenas uma
coincidência?
Mesmo assim, os mais céticos ainda podem
argumentar que a democracia não é a melhor maneira para os países pobres se
tornarem mais ricos. Eles podem apontar, por exemplo, para o incrível histórico
de crescimento da China nos últimos 40 anos. No entanto, as evidências não
sustentam esse ponto de vista. Um estudo de 2019, “Democracia Causa Crescimento”, de Daron Acemoglu e outros
autores, argumenta que “há um efeito positivo significativo economicamente e
estatisticamente da democracia no PIB per capita futuro”. Dessa forma, “o PIB
de longo prazo aumenta em torno a 20%-25% nos 25 anos seguintes a uma
democratização”. Um ponto crucial é que isso também se aplica a países nos
estágios iniciais de desenvolvimento.
Possivelmente, muito mais importante, como
observa Carl Henrik Knutsen em nota informativa de 2019 para o V-Dem Institute, os
resultados gerados por autocracias mostram uma variância muito maior. Portanto,
quando os autocratas são bons, eles podem de fato ser muito bons, mas quando
são ruins, são horríveis. Stalin, Hitler, Pol Pot e Mao Tsé-tung mataram
pessoas aos milhões. Pode ter sido assim porque eles assim o queriam, ou porque
não se importavam que assim fosse. A questão é que a autocracia é um governo
sem prestação de contas. Governos que não precisam prestar contas podem fazer
qualquer coisa.
Em um recente e brilhante artigo, o historiador Timothy Snyder
argumenta que “o governo de um líder de mão forte é uma fantasia”. “Essencial
para isso é a ideia de que um líder de mão forte será o ‘seu’ líder de mão
forte. Ele não será. Em uma democracia, os representantes eleitos dão ouvidos
aos eleitores. Consideramos isso como certo e imaginamos que um ditador nos
deverá algo. Mas o voto que você dá a ele afirma sua irrelevância [a do
eleitor]. Toda a questão é que o líder de mão forte não nos deve nada. Sofremos
abusos e ficamos acostumados a isso”.
É ainda pior do que isso. O aspirante a
tirano não é um ser humano normal. Ele quase sempre é consumido pelo desejo de
poder. Uma vez que ele conseguiu o que quer, como se livrar dele, se ele se
mostrar louco? Como preservar a integridade das instituições básicas contra
ele? Como administrar a sucessão? Sabemos que uma monarquia constitucional pode
funcionar bem. Sabemos que um autocrata pode se sair bem em um país pequeno,
como Cingapura, se ele reconhecer que isso requer um Estado de Direito e
direitos de propriedade seguros. Sabemos que, na Coreia do Sul e em Taiwan, os
autocratas supervisionaram o início de um processo rápido de desenvolvimento.
Sabemos também que a China teve, em Deng Xiaoping, um líder que não estava
obcecado pelo poder pessoal. Então, como os chineses dizem, é possível ter um
“bom imperador”. Mas o que fazer quando, como tantas vezes acontece, se tem um
mau?
A democracia é uma inovação recente, mas não
significa que não seja valiosa, mesmo quando é imperfeita e quando as
autocracias funcionam bem por um tempo. As democracias exigem que os governos
prestem contas. Isso é muito melhor do que servir aos caprichos de déspotas
A democracia evita tais resultados execráveis
porque tem métodos incorporados de correção. Mesmo que uma democracia tenha
direitos civis, políticos e legais inadequados, como muitas têm, as eleições
ainda podem fazer a diferença. Isso se mostrou verdadeiro na Polônia em 2023 e,
agora, na Turquia. Na Índia, o fato de haver eleições também serve de freio. Em
sistemas parlamentares, os membros do Parlamento também podem se revoltar, como
fizeram no Reino Unido contra Boris Johnson e Liz Truss.
O grande argumento a favor da democracia não
é que ela produzirá um bom governo, mas que ela impedirá um governo terrível, o
pior que pode acontecer a uma sociedade, com exceção da ausência de governo -
em outras palavras, a anarquia. Quanto mais completo for o conjunto de
direitos, melhores serão os freios: haverá também, então, debates abertos,
liberdade para protestar, meios de comunicação livres e instituições
independentes.
A democracia sempre é frágil. É frágil porque
alguns indivíduos querem ser tiranos e um número grande demais de pessoas
querem confiar neles. Isso também se torna mais provável quando as democracias
não conseguem gerar os bens desejados pelas pessoas - uma sensação de
pertencimento, de segurança, de ser valorizado. Nas palavras de Yascha Mounk no
livro “The Identity Trap”, as democracias são mais frágeis em sociedades mais
desiguais e mais diversificadas, especialmente porque aspirantes a tiranos se
aproveitarão de tais divisões. De fato, já é difícil, em primeiro lugar,
conseguir criar democracias liberais em sociedades assim, como argumentam Dani
Rodrik, de Harvard, e Sharun Mukand, em “The Political Economy of Liberal Democracy”.
Meu interlocutor estava certo: a democracia é
uma inovação recente. Mas também estava errado: que a democracia seja recente,
não significa que não seja valiosa. Isso é verdade mesmo quando as democracias
são imperfeitas e quando as autocracias, às vezes, funcionam bem por algum
tempo. As democracias dão voz aos cidadãos e exigem que os governos prestem
contas. Isso é muito melhor para nós do que servir aos caprichos dos
déspotas. (Tradução de Sabino Ahumada)
*Martin Wolf é editor e principal analista
econômico do Financial Times.
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