1. A crise de legitimidade política: Não nos representam Era uma vez a democracia
* Primeiro capítulo (parte) do livro. Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2018
Democracia, escreveu faz tempo Robert Escarpit, é quando batem na sua porta às cinco da manhã e você supõe que é o leiteiro. Nós que vivemos o franquismo sabemos o valor dessa visão minimalista de democracia, que ainda não foi alcançada na maior parte do planeta. Contudo, após milênios de construção de instituições às quais possamos delegar o poder soberano que, teoricamente, nós cidadãos detemos, aspiramos a algo mais. E de fato é isso que o modelo de democracia liberal nos propõe. A saber: respeito aos direitos básicos das pessoas e aos direitos políticos dos cidadãos, incluídas as liberdades de associação, reunião e expressão, mediante o império da lei protegida pelos tribunais; separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário; eleição livre, periódica e contrastada dos que ocupam os cargos decisórios em cada um dos poderes; submissão do Estado, e de todos os seus aparelhos, àqueles que receberam a delegação do poder dos cidadãos; possibilidade de rever e atualizar a Constituição na qual se plasmam os princípios das instituições democráticas. E, claro, exclusão dos poderes econômicos ou ideológicos na condução dos assuntos públicos mediante sua influência oculta sobre o sistema político.
Por mais simples que o modelo pareça, séculos de sangue, suor e lágrimas foram o preço pago para chegar à sua realização na prática institucional e na vida social, mesmo levando em conta seus múltiplos desvios em relação aos princípios de representação que aparecem em letra miúda nas leis e na ação enviesada de parlamentares, juízes e governantes. Por exemplo, quase nenhuma lei eleitoral aplica o princípio de “uma pessoa, um voto” na correspondência entre o número de votos e o número de assentos. E a estrutura do Poder Judiciário depende indiretamente do sistema político, incluindo os tribunais que interpretam os princípios constitucionais. Na realidade, a democracia se constrói em torno das relações de poder social que a fundaram e vai se adaptando à evolução dessas relações, mas privilegiando o poder que já está cristalizado nas instituições. Por isso não se pode afirmar que ela é representativa, a menos que os cidadãos pensem que estão sendo representados. Porque a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas. Se for rompido o vínculo subjetivo entre o que os cidadãos pensam e querem e as ações daqueles a quem elegemos e pagamos, produz-se o que denominamos crise de legitimidade política; a saber, o sentimento majoritário de que os atores do sistema político não nos representam. Em teoria, esse desajuste se autocorrige na democracia liberal com a pluralidade de opções e as eleições periódicas para escolher entre essas opções. Na prática, a escolha se limita àquelas opções que já estão enraizadas nas instituições e nos interesses criados na sociedade, com obstáculos de todo tipo aos que tentam acessar uma corriola bem-delimitada. E pior, os atores políticos fundamentais, ou seja, os partidos, podem diferir em políticas, mas concordam em manter o monopólio do poder dentro de um quadro de possibilidades preestabelecidas por eles mesmos. A política se profissionaliza, e os políticos se tornam um grupo social que defende seus interesses comuns acima dos interesses daqueles que eles dizem representar: forma-se uma classe política, que, com honrosas exceções, transcende ideologias e cuida de seu oligopólio. Além disso, os partidos, como tais, experimentam um processo de burocratização interna, predito por Robert Michels desde a década de 1920, limitando a renovação à competição entre seus líderes e afastando-se do controle e da decisão de seus militantes. E mais, uma vez realizado o ato da eleição, dominado pelo marketing eleitoral e pelas estratégias de comunicação, com escasso debate e pouca participação de militantes e eleitores, o sistema funciona autonomamente em relação aos cidadãos. Tão somente tomando o pulso da opinião, nunca vinculante, através de pesquisas cujo desenho é controlado pelos que as encomendam. Mesmo assim, os cidadãos votam, elegem e até se mobilizam e se entusiasmam por aqueles em que depositam esperanças, mudando volta e meia quando a esperança supera o medo de mudança, que é a tática emocional básica na manutenção do poder político. Mas a recorrente frustração dessas esperanças vai erodindo a legitimidade, ao mesmo tempo que a resignação vai sendo substituída pela indignação quando surge o insuportável. Quando, em meio a uma crise econômica, bancos fraudulentos são salvos com o dinheiro dos contribuintes, enquanto são reduzidos serviços básicos para a vida das pessoas. Com a promessa de que as coisas vão melhorar se elas aguentarem e seguirem engolindo, e, quando não é assim, é preciso romper com tudo ou aguentar tudo. E o rompimento fora das instituições tem um alto custo social e pessoal, demonizado por meios de comunicação que, em última análise, são controlados pelo dinheiro ou pelo Estado, apesar da resistência muitas vezes heroica dos jornalistas. Em situação de crise econômica, social, institucional, moral, aquilo que era aceito porque não havia outra possibilidade deixa de sê-lo. E aquilo que era um modelo de representação desmorona na subjetividade das pessoas. Só resta o poder descarnado de que as coisas são assim, e aqueles que não as aceitarem que saiam às ruas, onde a polícia os espera. Essa é a crise de legitimidade. É o que está acontecendo na Espanha, na Europa e em grande parte do mundo. Mais de dois terços dos habitantes do planeta acham que os políticos não os representam, que os partidos (todos) priorizam os próprios interesses, que os parlamentos não são representativos e que os governos são corruptos, injustos, burocráticos e opressivos. Na percepção quase unânime dos cidadãos, a pior profissão que existe é a de político. Ainda mais quando se reproduzem eternamente e muito raro voltam à vida civil, enquanto puderem medrar pelos emaranhamentos da burocracia institucional. Esse sentimento amplamente majoritário de rejeição à política varia segundo países e regiões, mas se verifica em todas as partes. Em países como os da Escandinávia, inclusive, onde a limpeza democrática tem sido uma referência geradora de esperança, já faz algum tempo que a tendência da opinião pública vai no mesmo sentido. Por isso, tomo a liberdade de remeter o leitor ao compêndio estatístico de fontes confiáveis que se encontra no site relacionado a este livro,a para que possa fazer suas próprias constatações em diversas áreas do mundo. Contudo, como o livro foi escrito e publicado originalmente na Espanha, ilustrarei aqui o argumento com alguns dados desse país. Se, em 2000, 65% dos cidadãos não confiavam nos partidos políticos, a desconfiança subiu para 88% em 2016. Em relação ao Parlamento, aumentou de 39% em 2001 para 77% em 2016, enquanto que, em relação ao governo, passou de 39% para 77% no mesmo período. E sublinho o fato de que esse desmoronamento da confiança se refere tanto a governos socialistas quanto a populares. De fato, a maior queda foi a de 80% de desconfiança em 2011, precipitando a debandada do governo do Psoe (Partido Socialista Operário Espanhol) com Rodríguez Zapatero. Embora em menor medida, mais da metade dos espanhóis também não confia no sistema legal (54% em 2016, em comparação com 49% em 2001). As autoridades regionais e locais tampouco se saem bem, embora neste caso tenha havido uma redução no grau de desconfiança, de seu máximo de 79% em 2014 para 62% em 2017, após a eleição nos “municípios da mudança”b (liderados pelo Podemos e suas confluências) em 2015. Por fim, a polícia é a que tem a melhor avaliação. Somente 36% dos cidadãos revelavam desconfiança em 2014, e a tendência está em baixa: 24% em 2017. A intervenção policial contra a corrupção e o instinto de buscar uma ordem para além dos políticos parecem favorecer a ideia de que os servidores do Estado são mais confiáveis do que seus chefes. Não é de estranhar, visto que em 2016 quase três quartos dos espanhóis achavam que “os políticos não se preocupam com pessoas como eu” e que “não importa quem esteja no poder, eles sempre beneficiam seus interesses pessoais”.
Pois bem, se as coisas são assim no âmbito mundial, mesmo ressalvando as diferenças, talvez seja esse o destino de qualquer instituição humana. E também da democracia liberal. Continuamos nos referindo frequentemente à célebre frase de Churchill em 1947, segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos”. Pode ser. Contudo, para além de um debate metafísico sobre a essência da democracia, o que observo é que cada vez menos gente acredita nessa forma de democracia, a democracia liberal, ao mesmo tempo que a grande maioria continua defendendo o ideal democrático. Precisamente porque as pessoas querem crer na democracia, o desencanto é ainda mais profundo em relação à forma como a vivem. E desse desencanto nascem comportamentos sociais e políticos que estão transformando as instituições e as práticas de governança em toda parte. Isso é o que me parece importante analisar. Quanto à inevitabilidade da deturpação do ideal democrático, não creio ser muito útil filosofar sobre a malfadada natureza humana, discurso paralisante e justificador da continuidade desse estado de coisas. Mais relevante é investigar algumas das causas pelas quais a separação entre representantes e representados se acentuou nas duas últimas décadas, até chegar ao ponto de ebulição da rejeição popular aos que estão lá em cima, sem distinções. Algo que, do ponto de vista do establishment político e midiático, é pejorativamente denominado populismo, porque são comportamentos que não reconhecem os enviesados canais institucionais que se oferecem para a mudança política. Na realidade, as emoções coletivas são como a água: quando encontram um bloqueio em seu fluxo natural, abrem novas vias, frequentemente torrenciais, até inundar os exclusivos espaços da ordem estabelecida.
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