O Globo
O conflito aberto entre a OpenAI e a atriz Scarlett Johansson pode abrir precedentes e definir muito da relação entre nós, humanos, e a inteligência artificial. Uma semana após o anúncio do ChatGPT 4o, Johansson denunciou a empresa por usar uma voz tão “sinistramente similar” à dela que seus amigos mais próximos e a imprensa ficaram em dúvida se não havia um acordo de cessão de direitos. Ocorre que Sam Altman, o CEO da OpenAI, havia mesmo tentado contratá-la para licenciar sua voz. Tentou primeiro num encontro pessoal há meses e, depois de ouvir o “não”, insistiu poucos dias antes de fazer o anúncio da nova versão. Scarlett é a atriz que dá voz a Samantha, a IA do filme “Ela”, do diretor Spike Jonze.
A voz não é da atriz, o timbre é diferente,
um quê mais grave. A OpenAI apresentou ao Washington Post documentos sobre a
contratação de outra atriz, ainda antes do encontro de Johansson e Altman.
Mostrou também a descrição técnica dada à agência que recrutou quem cedeu seu
timbre ao algoritmo: buscavam vozes “masculinas, femininas e não binárias” que
fossem “calorosas, envolventes, carismáticas”. Mas, ainda que a voz não seja
igual, ela tem de fato um calor, uma coisa suspirada e mesmo um clima que evoca
o filme em que Johansson e Joaquin Phoenix fazem os papéis principais. Não
bastasse, horas antes do lançamento Altman tuitou uma única palavra: “Her”, o
nome original do filme. Ele queria deixar clara a referência.
A relação entre ficção científica e
tecnologia real não tem nada de tênue. Satélites geoestacionários foram
inventados nos textos de Arthur C. Clarke antes de o primeiro entrar em órbita,
quase 20 anos depois. A inspiração é tão reconhecida que aquele trecho do
além-Terra foi batizado “órbita de Clarke”. A empresa Facebook mudou
seu nome para Meta com
o objetivo de criar uma versão real do metaverso, presente no romance “Snow
crash”, de Neal Stephenson, publicado em 1992. Ficção científica está entre os
gêneros literários mais consumidos pelos inventores de tecnologia.
Não está dado que uma inteligência artificial
se relacionará conosco de um jeito ou de outro. A maneira como o algoritmo
trata cada um de nós precisa ser criada. Pode ter a impessoalidade do HAL 9000,
de “2001 — Uma odisseia no espaço”, do diretor Stanley Kubrick. Ou então a
secura sempre atenta, curiosa, do senhor Data de “Jornada nas estrelas: a nova
geração”. Ficção científica dá pistas de como implementar tecnologias a toda
hora. E os programadores que criavam o GPT evidentemente assistiram a “Ela” e
chegaram à conclusão de que aquela forma, emocionalmente envolvida, num flerte
ligeiro, tornaria a inteligência artificial mais atraente. E torna, mesmo.
Esse não é um debate consolidado. No Google, a
convicção é que, ao se apresentar ao público, IAs não devem se envolver
emocionalmente. A empresa já teve problemas com isso. Quando primeiro mostrou
uma IA no palco de lançamentos, há cinco anos, era um aplicativo que ligava
para restaurantes para marcar jantares em nosso lugar. Foi um pandemônio de
críticas, com gente reclamando que não queria conversar com um bot sem saber
que não era humano. Mais recentemente, um engenheiro da companhia deu
entrevistas convencido de que a inteligência artificial se tornara senciente.
Consciente. Era delírio. É só uma máquina de calcular probabilística.
Escaldado, o Google terá uma IA impessoal. Sem calor humano. É uma ferramenta,
poupará muito trabalho. Mas é coisa, não gente.
Scarlett Johansson não foi a primeira atriz
contratada por Jonze para o papel de Samantha. Outra voz foi gravada. O diretor
sentiu que não dava liga suficiente para que a história do usuário que se
apaixona pela IA fosse crível. E o sucesso do filme se dá porque, com aquela
voz, o amor parece mesmo possível. Há criação artística, autoral, no trabalho
de Johansson. Esse trabalho não inspira a empresa à toa. Mas onde está o limite
do direito de autor? É possível registrar um clima entre humanos e máquinas?
Há um ano, roteiristas, atores e atrizes de
Hollywood entraram em greve. Na pauta, entre outros assuntos, queriam a
garantia de que IAs não roubariam sua criação nem os substituiriam. O problema
se tornou real muito rápido. E de um jeito inimaginável, com resultado nos
tribunais imprevisível. Criará jurisprudência mundial. Uma jurisprudência
importante.
Uma correção necessária: meu querido professor
Muniz Sodré puxou minha orelha. Afirmei nesta coluna que o “o” da nova versão
do GPT vem do grego omni. Omni, ora, não tem nada de grego. É latim. Quer dizer
todo, completo.
Um comentário:
Boa reflexão.
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