terça-feira, 28 de maio de 2024

Pedro Doria - Aquela voz suspirada no ouvido

O Globo

O conflito aberto entre a OpenAI e a atriz Scarlett Johansson pode abrir precedentes e definir muito da relação entre nós, humanos, e a inteligência artificial. Uma semana após o anúncio do ChatGPT 4o, Johansson denunciou a empresa por usar uma voz tão “sinistramente similar” à dela que seus amigos mais próximos e a imprensa ficaram em dúvida se não havia um acordo de cessão de direitos. Ocorre que Sam Altman, o CEO da OpenAI, havia mesmo tentado contratá-la para licenciar sua voz. Tentou primeiro num encontro pessoal há meses e, depois de ouvir o “não”, insistiu poucos dias antes de fazer o anúncio da nova versão. Scarlett é a atriz que dá voz a Samantha, a IA do filme “Ela”, do diretor Spike Jonze.

A voz não é da atriz, o timbre é diferente, um quê mais grave. A OpenAI apresentou ao Washington Post documentos sobre a contratação de outra atriz, ainda antes do encontro de Johansson e Altman. Mostrou também a descrição técnica dada à agência que recrutou quem cedeu seu timbre ao algoritmo: buscavam vozes “masculinas, femininas e não binárias” que fossem “calorosas, envolventes, carismáticas”. Mas, ainda que a voz não seja igual, ela tem de fato um calor, uma coisa suspirada e mesmo um clima que evoca o filme em que Johansson e Joaquin Phoenix fazem os papéis principais. Não bastasse, horas antes do lançamento Altman tuitou uma única palavra: “Her”, o nome original do filme. Ele queria deixar clara a referência.

A relação entre ficção científica e tecnologia real não tem nada de tênue. Satélites geoestacionários foram inventados nos textos de Arthur C. Clarke antes de o primeiro entrar em órbita, quase 20 anos depois. A inspiração é tão reconhecida que aquele trecho do além-Terra foi batizado “órbita de Clarke”. A empresa Facebook mudou seu nome para Meta com o objetivo de criar uma versão real do metaverso, presente no romance “Snow crash”, de Neal Stephenson, publicado em 1992. Ficção científica está entre os gêneros literários mais consumidos pelos inventores de tecnologia.

Não está dado que uma inteligência artificial se relacionará conosco de um jeito ou de outro. A maneira como o algoritmo trata cada um de nós precisa ser criada. Pode ter a impessoalidade do HAL 9000, de “2001 — Uma odisseia no espaço”, do diretor Stanley Kubrick. Ou então a secura sempre atenta, curiosa, do senhor Data de “Jornada nas estrelas: a nova geração”. Ficção científica dá pistas de como implementar tecnologias a toda hora. E os programadores que criavam o GPT evidentemente assistiram a “Ela” e chegaram à conclusão de que aquela forma, emocionalmente envolvida, num flerte ligeiro, tornaria a inteligência artificial mais atraente. E torna, mesmo. 

Esse não é um debate consolidado. No Google, a convicção é que, ao se apresentar ao público, IAs não devem se envolver emocionalmente. A empresa já teve problemas com isso. Quando primeiro mostrou uma IA no palco de lançamentos, há cinco anos, era um aplicativo que ligava para restaurantes para marcar jantares em nosso lugar. Foi um pandemônio de críticas, com gente reclamando que não queria conversar com um bot sem saber que não era humano. Mais recentemente, um engenheiro da companhia deu entrevistas convencido de que a inteligência artificial se tornara senciente. Consciente. Era delírio. É só uma máquina de calcular probabilística. Escaldado, o Google terá uma IA impessoal. Sem calor humano. É uma ferramenta, poupará muito trabalho. Mas é coisa, não gente.

Scarlett Johansson não foi a primeira atriz contratada por Jonze para o papel de Samantha. Outra voz foi gravada. O diretor sentiu que não dava liga suficiente para que a história do usuário que se apaixona pela IA fosse crível. E o sucesso do filme se dá porque, com aquela voz, o amor parece mesmo possível. Há criação artística, autoral, no trabalho de Johansson. Esse trabalho não inspira a empresa à toa. Mas onde está o limite do direito de autor? É possível registrar um clima entre humanos e máquinas?

Há um ano, roteiristas, atores e atrizes de Hollywood entraram em greve. Na pauta, entre outros assuntos, queriam a garantia de que IAs não roubariam sua criação nem os substituiriam. O problema se tornou real muito rápido. E de um jeito inimaginável, com resultado nos tribunais imprevisível. Criará jurisprudência mundial. Uma jurisprudência importante.

Uma correção necessária: meu querido professor Muniz Sodré puxou minha orelha. Afirmei nesta coluna que o “o” da nova versão do GPT vem do grego omni. Omni, ora, não tem nada de grego. É latim. Quer dizer todo, completo.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Boa reflexão.