CartaCapital
Se setor privado e governo cortam gastos, a renda agregada cai e o risco de crédito sobe
Nos tempos da crise financeira de 2008, Paul
Krugman discorreu a respeito das relações entre gasto, renda e dívida. Peço
licença ao leitor de CartaCapital para relembrar as afirmações do
economista americano:
Nossa dívida (privada) consiste
principalmente de dinheiro que devemos uns aos outros; ainda mais importante,
nossa renda provém principalmente de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é
minha renda e meu gasto é sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo
reduzir gastos simultaneamente a fim de reduzir suas dívidas? Resposta: a
renda cai.
Outro exemplo de inconsistência conceitual
está abrigado na separação entre oferta e demanda, apresentada nos manuais de
Macroeconomia. A separação – o “lado da demanda” e o “lado da oferta” – não faz
sentido para o tratamento da “economia como um todo”, tal como a concebia
Keynes, o John Maynard.
Em uma carta endereçada aos assessores de Roosevelt, Keynes desfiou argumentos a respeito das relações oferta e demanda.
“Nós produzimos a fim de vender. Em outras
palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que nós
possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-se de gastar. Então, como
eu disse, a resposta é óbvia.
“Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão
tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto
significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como,
então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo?
Esse pensamento desnorteia o público.
“No entanto, um comportamento que pode fazer
um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta,
ele não afeta só a si mesmo, mas a outros. A despesa é uma transação bilateral.
Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não
aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.
“Se você responder comprando algo que eu
posso fazer para você, então minha renda também é aumentada. Assim, quando
estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como
um todo. O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua
despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros.
“Há apenas um limite para que o rendimento de
uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade
física de produzir.”
Seria audacioso imaginar economistas do
mainstream dispostos a aceitar a concepção keynesiana de demanda efetiva.
Keynes procurou explicitar a conjugação entre os elementos objetivos e
subjetivos que condiciona a decisão de acumular riqueza em uma economia
monetária.
A construção do princípio da demanda efetiva
supõe um tratamento não convencional das relações entre oferta e demanda: o
preço de oferta agregada é definido como a expectativa de receitas – deduzidos
os custos dos fatores – que os empresários esperam receber, caso ofereçam (nos
dois departamentos: bens de produção e bens de consumo) um determinado volume
de emprego e um dado nível de ocupação da capacidade instalada. A demanda
agregada é imaginada pelos empresários a partir das expectativas de rendimentos
– deduzido o custo de uso – que esperam receber dos gastos em consumo e
investimento por parte da comunidade, isto é, dos consumidores e dos próprios
empresários.
A demanda efetiva é um conceito fundado no
“estado de expectativas” dos que decidem a produção nos dois departamentos. Não
se confunde, portanto, com o que se convencionou chamar de demanda agregada, um
conceito-resultado. A intersecção entre as funções de oferta e de demanda
determina um ponto em que se efetivam as decisões dos empresários-capitalistas,
a partir de certo estado de expectativas. Esse ponto se desloca ao longo da
curva de “demanda efetiva”, diante das mudanças das avaliações empresariais. Na
realidade, Keynes está afirmando a interdependência entre oferta e demanda na
economia capitalista submetida ao controle das decisões por uma categoria
social. A análise de Keynes deve ser aplicada às decisões de gasto do governo:
as autoridades podem decidir gastar mais em uma situação de desalento do
dispêndio privado. Não se trata de gastar a rodo, mas sim de coordenar as
expectativas dos empresários desalentados. Déficits ou superávits vão depender
da resposta do setor privado ao estímulo do gasto público.
Se o governo corta o gasto em uma conjuntura
de encolhimento do gasto privado – empresas e famílias – a queda da renda
“agregada” vai inexoravelmente levar a um aumento dos déficits e das dívidas
públicas e privadas, com exacerbação do risco de crédito e efeitos indesejáveis
sobre os balanços dos bancos financiadores. Essas são as lições exauridas de
todas as crises e em todas as crises. •
Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital,
em 04 de setembro de 2024.
Um comentário:
Excelente! A Economia não é só um balanço entre o que se gasta e o que se recebe, e nem entre o que o Governo Federal arrecada e o que ele gasta/investe.
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