domingo, 4 de agosto de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Brasil não pode fugir da agenda da produtividade

O Globo

Governo precisa incentivar o aprimoramento de trabalhadores a partir de demandas das empresas

A taxa de desemprego tem caído há mais de um ano. Fechou o trimestre encerrado em junho em 6,9%, melhor marca para o período desde 2014. Dados divulgados pelo IBGE na quarta-feira mostram que o contingente de trabalhadores ocupados nunca foi tão alto, a criação de empregos com carteira assinada bateu recorde, e a renda cresceu. Por óbvio, todos esses resultados merecem ser festejados. É um erro, porém, achar que encerram as preocupações com o mercado de trabalho.

É urgente o governo adotar uma agenda para elevar a produtividade. Nos próximos anos, cairá o contingente em idade de trabalhar em relação aos aposentados, em consequência do envelhecimento da população. Cada profissional terá de ser mais eficiente. Sem isso, a economia crescerá pouco. Nesse quesito, o Estado tem papéis fundamentais. O mais lembrado é a educação de crianças e jovens. Outro crucial é o aperfeiçoamento, em parceria com o setor privado, de quem já trabalha ou busca o primeiro emprego.

Um dos principais desafios é mapear as habilidades demandadas pelas empresas, para escapar da situação em que não faltam ações, mas seus efeitos são irrisórios. Foi justamente o que aconteceu com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado em 2011. Consumiu bilhões em recursos públicos sem efeito notável. Uma exceção entre as iniciativas do programa, de acordo com artigo de pesquisadores do Observatório da Produtividade Regis Bonelli, foi o braço gerido pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Não por coincidência, aquele que coletava as demandas das empresas para orientar a oferta de cursos de aprimoramento profissional.

Outra estratégia positiva é conhecida como “contrato de impacto social”. Nesse caso, o governo descentraliza a operação e determina uma meta. O pagamento às empresas de treinamento especializadas só é feito ao fim do curso se os alunos obtiverem uma taxa alta de aceitação no mercado de trabalho com a nova qualificação.

De nada adianta um profissional estar bem preparado se não encontrar vaga para pôr em prática os ensinamentos que recebeu e ganhar um salário condizente. O Brasil dispõe de um sistema público de intermediação de mão de obra, o Sine, mas seu desempenho fica muito abaixo do razoável. De acordo com Fernando Veloso, um dos maiores especialistas em produtividade no país, é preciso melhorar a descrição dos perfis de cada trabalhador. Sem isso, não há como fazer o casamento com os empregadores. Essa é uma tarefa em que a inteligência artificial poderá ser determinante. Permitir a operação de empresas privadas de intermediação junto ao Sine, como faz a Alemanha, seria outro passo na direção certa. Com um potente sistema de avaliação de resultado, o Estado só remuneraria o agente privado em caso de sucesso.

Entre 1995 e 2023, o principal determinante do crescimento da produtividade do trabalho foi o capital humano. Para continuar evoluindo, o Brasil precisa redobrar os esforços na educação dos jovens e no aprimoramento dos trabalhadores.

Surto de febre oropouche desafia autoridades sanitárias no país

O Globo

Após dengue, zika e chicungunha, população enfrenta mais um vírus transmitido por mosquitos

Não bastasse a miríade de doenças que levam multidões diariamente ao SUS, as autoridades sanitárias brasileiras agora têm mais uma com que se preocupar: a febre oropouche. O Brasil já registrou 7.286 casos neste ano, aumento de 776% em relação ao acumulado de 2023. No dia 25 de julho, o Ministério da Saúde confirmou duas mortes, ambas na Bahia. O fato é preocupante porque até então não havia, segundo a pasta, relato na literatura científica de morte pela moléstia.

Os doentes costumam apresentar sintomas como febre, dor de cabeça, dor no fundo dos olhos, náuseas, vômitos, diarreia, dores nas pernas e cansaço. Nas formas mais graves, surgem manchas vermelhas e roxas pelo corpo, há sonolência e sangramento grave, com queda abrupta na contagem de hemoglobina e plaquetas sanguíneas. Como alguns desses sintomas se confundem com os da dengue, o desafio se torna ainda maior.

A febre oropouche é causada pelo vírus Orthobunyavirus oropoucheense, transmitido principalmente pelo mosquito Culicoides paraensis, conhecido na Região Amazônica como maruim ou mosquito-pólvora. Em áreas silvestres, ela pode ser transmitida por dois outros insetos: o Coquilletti diavenezuelensis e o Aedes serratus. Em áreas urbanas, onde é menos comum, também pelo mosquito Culex quinquefasciatus.

Apesar de se tratar de uma doença endêmica da Amazônia, onde se concentram 80% dos casos, ela já é encontrada também em estados do Sudeste e Sul. Uma das mortes sob investigação aconteceu no Paraná, com possível transmissão em Santa Catarina.

A doença tem implicações preocupantes. No início de julho, o Ministério da Saúde informou ter identificado quatro casos de microcefalia em recém-nascidos relacionados à infecção da mãe pela febre oropouche. Casos parecidos já haviam ocorrido com mães infectadas pela zika. Há também a suspeita de que o vírus que circula no Brasil sofreu mutações que poderiam estar ligadas às mortes recentes.

A disseminação da febre oropouche pelo país, sobrecarregando ainda mais o já claudicante sistema de saúde, expõe o fracasso das políticas sanitárias para conter seus transmissores. O ministério alega que a distribuição inédita, a partir de 2023, de testes diagnósticos para a rede nacional de laboratórios fez com que casos antes concentrados no Norte e no Nordeste aparecessem também em outras regiões. É plausível. Mas, com teste ou sem teste, a doença se espalhou e cresce.

A dificuldade para barrar o avanço ficara patente no caso da dengue. Embora agora ela esteja em declínio depois de bater todos os recordes, os números são vergonhosos. Diante do agravamento do quadro da febre oropouche, ministério, estados e prefeituras precisarão traçar estratégias para testar a população — medida essencial, pois os sintomas se confundem com os de outras doenças —, tratar os doentes e combater os focos. Os mesmos governos que não conseguiram dar conta de dengue, zika e chicungunha agora têm mais uma doença na lista.

Controle de emendas depende da política

Folha de S. Paulo

Medidas para disciplinar avanço do Congresso sobre Orçamento são corretas, mas governo Lula tem escasso apoio partidário

São corretas, no mérito, as providências determinadas pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, para dar maior transparência à execução de gastos incluídos por deputados e senadores no Orçamento. Se a iniciativa será eficaz, é outra discussão.

Não é a primeira vez que o STF tenta preservar princípios de moralidade e publicidade ante a escalada das chamadas emendas parlamentares nos últimos anos. As determinações estabelecidas no governo Jair Bolsonaro (PL), entretanto, surtiram escasso efeito.

O comando do Congresso tem se valido da fragilidade do Executivo para ampliar seu poder sobre a destinação de verbas públicas. Regras básicas para o controle das emendas, como a identificação de autores e beneficiários, têm sido esvaziadas.

Assim, parlamentares conseguem beneficiar seus redutos eleitorais, elevando suas chances de conquistarem novos mandatos, sem responder por eventuais —frequentes, na verdade— desmandos na aplicação dos recursos.

Ao final da gestão Bolsonaro, o Supremo derrubou o mecanismo pelo qual o relator do Orçamento, indicado pela cúpula do Congresso, tinha autonomia para promover rateio em larga escala de verbas.

Encontraram-se, porém, outros meios de operar a barganha fisiológica. Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que na campanha eleitoral atacara as emendas de relator, já no primeiro ano de governo concordou com uma subordinação informal de ações ministeriais aos pleitos de deputados e senadores.

Agora, Dino estabeleceu que só pode haver liberação de dinheiro para emendas rastreáveis, ou seja, com autor e finalidade identificados. A norma mira em particular despesas propostas por comissões da Câmara e do Senado —que, suspeita-se, têm sido usadas para camuflar demandas individuais.

Dada a proximidade do magistrado com Lula, sua determinação será inevitavelmente vista como atendimento a interesses do Planalto, o que tende a acirrar tensões entre os Poderes.

Não resta dúvida de que o Legislativo, se tem a prerrogativa democrática de deliberar sobre prioridades do poder público, deveria prestar contas de suas decisões com máxima transparência.

Há, todavia, o fato incontornável de que o Executivo não dispõe de maioria sólida em um Congresso fragmentado. Sem um entendimento em outras bases com os partidos, a governabilidade dependerá do varejo orçamentário.

Limites à alta corte

Folha de S. Paulo

Pacote de Biden para Supremo dos EUA estimula debate importante também no Brasil

Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, pretende propor um pacote de reformas na Suprema Corte do país. As chances de aprovação são mínimas, já que republicanos dominam a Câmara e a maioria dos democratas no Senado é apertada. A ideia, contudo, constitui uma oportunidade de reflexão —não só para os americanos.

Uma das questões é o tempo de permanência dos ministros. Nos EUA, eles só deixam o cargo quando morrem ou por vontade própria, independentemente de suas condições físicas ou mentais. Em tese, o magistrado também pode perder o cargo por impeachment, mas isso nunca aconteceu.

No Brasil também existe a vitaliciedade, porém limitada pela aposentadoria compulsória —que ocorre aos 75 anos e vale para todos os servidores públicos.

A longa permanência é essencial, pois favorece a independência dos juízes em relação a quem os nomeou. Tivemos uma demonstração disso por aqui. Políticos do PT foram condenados no processo do mensalão, apesar de a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal que os julgou ter sido indicada em governos petistas.

Ao que tudo indica, Biden sugerirá mandatos fixos de 18 anos. Parece razoável. A vantagem desse modelo sobre o compulsório é que inibe-se a tentação de mandatários de indicar juízes cada vez mais jovens, expandindo assim a projeção do poder presidencial.

No Brasil, de todo modo, essa não é questão tão importante.

Bem mais urgente, tanto lá como cá, é o problema da conduta pública. Não basta que juízes sejam honestos, é preciso que pareçam honestos —e imparciais.

Em ambos os países, são recorrentes casos de ministros que se tornam próximos de empresários com interesses na corte e que se permitem manifestações explícitas de preferências políticas.

Tal comportamento mina a credibilidade do tribunal e de suas decisões, por mais técnicas que sejam.
Por isso, o pacote de Biden também sugere a elaboração de um código de conduta que defina claramente o que é ou não aceitável e as situações em que ministros devem declarar-se impedidos.

Não há motivo para relutância. Já há códigos similares para diversas profissões sujeitas à confiança do público. E não há órgão que dependa mais da imagem que projeta do que uma corte constitucional.

A morte e a morte do orçamento secreto

O Estado de S. Paulo

Beneficiários e cúmplices do orçamento secreto engambelaram o STF, mas a Corte, ainda que com atraso, determina medidas para acabar com a indecência. A ver se desta vez será respeitada

A audiência de conciliação presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino sobre o orçamento secreto, mais especificamente sobre o descumprimento da decisão do STF que ordenou o fim do esquema, não foi nada conciliadora. E nem haveria de ser mesmo. Afinal, a apropriação de um robusto quinhão do Orçamento pelo Poder Legislativo sem a devida transparência é uma flagrante e persistente violação da Constituição – e por isso tem de ser cessada, não acomodada da maneira que for entre as partes envolvidas.

Dino foi enfático, para não dizer duro, com os representantes do Congresso, do Tribunal de Contas da União (TCU), da Advocacia-Geral da União (AGU), da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao manifestar sua insatisfação diante da fragilidade das explicações, chamemos assim, que lhe foram dadas sobre os supostos mecanismos de transparência que teriam sido adotados para novos repasses de emendas parlamentares. “Onde estão as informações?”, indagou o ministro. “Não é minha cognição que está em pauta, mas não consegui entender. Imagine o cidadão, que é dono do dinheiro”, concluiu.

Os representantes do Congresso, do TCU, da AGU, da CGU e da PGR presentes na sessão não foram convincentes o bastante para demonstrar que a decisão colegiada do STF, de dezembro de 2022, de fato, estava sendo cumprida e o orçamento secreto havia acabado. Não convenceram nem o ministro, nem este jornal, nem decerto os cidadãos minimamente informados por uma razão elementar: o orçamento secreto não acabou, apenas tem sido moldado à exata medida das necessidades e da avidez de deputados e senadores por recursos públicos fora dos controles institucionais.

Beneficiários e cúmplices do orçamento secreto, verdade seja dita, engambelaram o STF e a sociedade brasileira. Quando daquela decisão da Corte Suprema, às vésperas da posse do presidente Lula da Silva, o STF, a rigor, não determinou o fim da subversão das emendas de relator (RP-9); determinou, por óbvio, o fim do orçamento secreto. Mas, com muita malandragem, abusando da desfaçatez, os congressistas entenderam a decisão, relatada à época pela ministra Rosa Weber, da forma que melhor convinha a seus interesses paroquiais, quando não antirrepublicanos.

As emendas de relator, é verdade, deixaram de ser usadas de forma indevida, voltando a servir apenas para correção pontual do texto da peça orçamentária, de resto a sua finalidade original. Mas outras formas de sequestro de recursos orçamentários ao abrigo do escrutínio público foram engendradas pelos parlamentares já no governo de Lula da Silva, com a anuência, pois, do Palácio do Planalto. Aí estão as subversões das emendas discricionárias (RP-2), destinadas à disposição de recursos por meio dos Ministérios, e das emendas de bancada, sem falar nas famigeradas “emendas Pix”, estas mais opacas do que quaisquer outras.

A bem da verdade, nem as emendas de relator (RP-9) foram extintas, haja vista que Lula da Silva autorizou a transferência de recursos do orçamento secreto subscritos nessa alínea ainda no governo de Jair Bolsonaro como “restos a pagar”. Ou seja, a decisão do STF de 2022, aquela que malandramente foi lida como restrita às RP-9, não vem sendo cumprida nem pelo Congresso nem pelo governo federal. É uma desmoralização total.

Para colocar ordem nessa bagunça, o ministro Flávio Dino, em decisão liminar, fixou uma série de medidas que devem nortear o repasse de recursos públicos por meio de emendas parlamentares a partir de agora. Entre as principais estão a “absoluta vinculação federativa” – ou seja, um parlamentar só pode indicar emendas para o Estado pelo qual foi eleito, “salvo projeto de âmbito nacional” –, a vinculação a políticas públicas determinadas e a auditoria desses repasses pelo TCU e pela CGU.

Como se vê, são medidas elementares. Chega a ser constrangedor que o STF tenha de reforçar seu imperativo numa democracia que se pretende séria. Resta ver se, mesmo sendo simples, essas medidas vão suplantar a enorme criatividade dos cupins da República.

A extorsão de Putin

O Estado de S. Paulo

Libertação de inocentes presos injustamente na Rússia envolveu árduo trabalho diplomático; vitória, contudo, é do chantagista Putin, que trocou jornalistas por criminosos a seu serviço

Condenado em um arremedo de julgamento a passar 15 anos em uma colônia penal russa de segurança máxima por “espionagem”, o jornalista americano Evan Gershkovich foi libertado após 16 meses preso por um crime que não cometeu. Gershkovich, outros dois americanos e um grupo de dissidentes russos foram utilizados por Vladimir Putin como moeda de troca. Para liberá-los, o ditador exigiu o repatriamento de criminosos a seu serviço, como o de um matador de aluguel que cumpria pena de prisão perpétua na Alemanha.

A notícia da libertação do jornalista americano trouxe alívio à redação do Wall Street Journal (WSJ), veículo pelo qual ele atuava como correspondente na Rússia. Já de volta aos EUA, foi recebido pelo presidente Joe Biden e pela vice Kamala Harris em uma base aérea. A diplomacia da gestão Biden, que trabalhou arduamente pela libertação de Gershkovich, da também jornalista Alsu Kurmasheva e de um ex-fuzileiro naval, merece os aplausos pelo trabalho conjunto com corpos diplomáticos de outros países, sobretudo o da Alemanha, que tomou a difícil decisão de liberar um capanga de Putin por solidariedade aos EUA.

A troca de prisioneiros, contudo, é uma vitória de Putin, que sequestrou e privou inocentes da liberdade para poder estender tapete vermelho a um grupo de criminosos russos, autores de delitos graves que vão de assassinato a hackeamento. Todos já recebidos com pompa e circunstância em Moscou, como se fossem campeões olímpicos. Putin, inclusive, foi em pessoa ao aeroporto para receber seus malfeitores, concessão que não faz a muitos líderes mundiais.

Além da recepção de Estado, Putin prometeu premiar os criminosos repatriados, descritos como membros leais que prestaram serviços valiosos à Rússia. Já em relação aos dissidentes russos que entraram no combo de troca e agora se encontram no Ocidente, o Kremlin afirmou que eles estão com quem os contratou. Trata-se de mensagem para consumo interno. Putin acusa os dissidentes de fazer aquilo que ele faz, de modo a desacreditá-los. A narrativa russa é de que os criminosos trazidos de volta são patriotas, enquanto os inocentes libertados seriam traidores.

A recepção aos malfeitores também tranquiliza outros delinquentes a serviço de Putin pelo mundo. Eles podem continuar praticando seus ilícitos tranquilamente, pois, caso venham a ser presos, Putin estará a postos para sequestrar algum inocente ocidental para trocá-lo por seu comparsa.

Verdade seja dita, Putin não escondeu em nenhum momento seus reais objetivos, e deixou claro que qualquer repórter que vá a Rússia fazer seu trabalho pode terminar preso sob acusação de espionagem ou traição. O caso da também jornalista Alsu Kurmasheva é ilustrativo das táticas do ditador russo.

O “crime” de Kurmasheva, que tem cidadanias russa e americana, foi coletar e publicar relatos de cidadãos russos contrários à invasão da Ucrânia. Por esse feito, ela foi condenada pelo regime russo, para o qual relatar ao mundo que nem todos no país estão satisfeitos com a ação militar na Ucrânia equivale a espalhar informações falsas sobre o Exército.

O fato de que a troca ocorre apenas dias após a farsa de julgamento que resultou na condenação de Gershkovich deixa ainda mais claro que Putin perseguiu, prendeu e condenou os jornalistas americanos no intuito de trocá-los pelos bandidos que desejava libertar. Antes mesmo do julgamento do correspondente do WSJ, o ditador russo já havia sugerido, sem muita sutileza, o nome de Vadim Krasikov, o homicida que cumpria pena na Alemanha pelo assassinato de um dissidente checheno.

Em carta à redação do Wall Street Journal após a libertação de Gershkovich, a editora-chefe Emma Tucker reconhece que a troca era a única solução possível por conta do cinismo da Rússia, ainda que criminosos perigosos tenham sido postos em liberdade. A avaliação de Emma é correta. Putin sabia que os governos ocidentais não permitiriam que cidadãos inocentes perecessem nas infames prisões russas. Explorou nos outros algo que não tem: sensibilidade humanitária. E venceu.

Ética esquisita

O Estado de S. Paulo

Causa perplexidade o caso de ex-secretários da Fazenda que agora advogam para bets

Pouco tempo depois de trabalharem na regulação das apostas esportivas no País, dois ex-secretários do Ministério da Fazenda pularam para o lado oposto do balcão e passaram a defender, em uma banca de advocacia, os interesses de clientes do mercado de bets. O caso foi revelado em reportagem do Estadão, que trouxe ainda a informação de que a Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República não viu problema na atuação deles como advogados e apenas orientou que não façam uso de informações privilegiadas nem atuem em processos dos quais tenham participado no Ministério.

Trata-se de notícia que causa perplexidade, e é o caso de perguntar qual é a ética que preside o Conselho de Ética da Presidência. Ora, um dos preceitos básicos da ética pública é a observância de quarentena na passagem à iniciativa privada, e o motivo, como no caso de uma doença transmissível, é um só: evitar o contágio. No caso do funcionalismo, um período mínimo de seis meses é o recomendado para que haja, digamos, uma certa “descontaminação”. No caso em questão, foram apenas dois ou três meses.

Por certo quem participa de processos para a criação de um ambiente regulatório detém não apenas o conhecimento profundo do assunto em questão, mas também uma rede valiosa de contatos acumulados ao longo de meses de negociações, detalhes sobre trâmites e até mesmo noções sobre brechas e atalhos que eventualmente possam ser utilizados. É, de fato, uma bagagem disputada por quem está do outro lado do balcão – no caso específico, o escritório que arregimentou os dois experts atende 20 clubes de futebol e uma multinacional do setor de apostas.

A maleabilidade da Comissão de Ética tem sido surpreendente e chega a pôr em dúvida o propósito do órgão como tutor nas normas éticas dos agentes públicos. São inúmeros os exemplos recentes de decisões controversas. O sogro do Ministro das Comunicações, Juscelino Filho, ocupou um gabinete no ministério mesmo sem cargo algum, como revelou reportagem do Estadão. Recebia empresários até mesmo na ausência do ministro, mas seu “trabalho voluntário” foi considerado “compreensível” pela Comissão.

Outro caso abafado pela Comissão foi o processo contra o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Vinícius Marques de Carvalho. Em caso também revelado por este jornal, a CGU negociava acordo de leniência com a Novonor (ex-Odebrecht) e era assessorada pelo escritório de advocacia VMCA (as iniciais do ministro), que o ministro mantinha com a companheira, Marcela Mattiuzo. O caso foi arquivado no Conselho depois que o ministro informou não ter união estável com a companheira e que se afastou do escritório para assumir a CGU.

Também foi arquivada a investigação do caso em que foi designado um gabinete do Palácio do Planalto para a primeira-dama Janja da Silva, que não exerce – ao menos de direito – nenhum cargo público. A Comissão de Ética considerou que havia “ausência de materialidade”.

Diante de tanta generosidade, talvez esteja na hora de criar um Conselho de Ética para o Conselho de Ética.

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