Brasil não pode fugir da agenda da produtividade
O Globo
Governo precisa incentivar o aprimoramento de
trabalhadores a partir de demandas das empresas
A taxa de desemprego tem caído há mais de um
ano. Fechou o trimestre encerrado em junho em 6,9%, melhor marca para o período
desde 2014. Dados divulgados pelo IBGE na
quarta-feira mostram que o contingente de trabalhadores ocupados nunca foi tão
alto, a criação de empregos com carteira assinada bateu recorde, e a renda
cresceu. Por óbvio, todos esses resultados merecem ser festejados. É um erro,
porém, achar que encerram as preocupações com o mercado de trabalho.
É urgente o governo adotar uma agenda para elevar a produtividade. Nos próximos anos, cairá o contingente em idade de trabalhar em relação aos aposentados, em consequência do envelhecimento da população. Cada profissional terá de ser mais eficiente. Sem isso, a economia crescerá pouco. Nesse quesito, o Estado tem papéis fundamentais. O mais lembrado é a educação de crianças e jovens. Outro crucial é o aperfeiçoamento, em parceria com o setor privado, de quem já trabalha ou busca o primeiro emprego.
Um dos principais desafios é mapear as
habilidades demandadas pelas empresas, para escapar da situação em que não
faltam ações, mas seus efeitos são irrisórios. Foi justamente o que aconteceu
com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec),
criado em 2011. Consumiu bilhões em recursos públicos sem efeito notável. Uma
exceção entre as iniciativas do programa, de acordo com artigo de pesquisadores
do Observatório da Produtividade Regis Bonelli, foi o braço gerido pelo
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Não por coincidência,
aquele que coletava as demandas das empresas para orientar a oferta de cursos
de aprimoramento profissional.
Outra estratégia positiva é conhecida como
“contrato de impacto social”. Nesse caso, o governo descentraliza a operação e
determina uma meta. O pagamento às empresas de treinamento especializadas só é
feito ao fim do curso se os alunos obtiverem uma taxa alta de aceitação no
mercado de trabalho com a nova qualificação.
De nada adianta um profissional estar bem
preparado se não encontrar vaga para pôr em prática os ensinamentos que recebeu
e ganhar um salário condizente. O Brasil dispõe de um sistema público de
intermediação de mão de obra, o Sine, mas seu desempenho fica muito abaixo do
razoável. De acordo com Fernando Veloso, um dos maiores especialistas em
produtividade no país, é preciso melhorar a descrição dos perfis de cada
trabalhador. Sem isso, não há como fazer o casamento com os empregadores. Essa
é uma tarefa em que a inteligência artificial poderá ser determinante. Permitir
a operação de empresas privadas de intermediação junto ao Sine, como faz a
Alemanha, seria outro passo na direção certa. Com um potente sistema de
avaliação de resultado, o Estado só remuneraria o agente privado em caso de
sucesso.
Entre 1995 e 2023, o principal determinante
do crescimento da produtividade do trabalho foi o capital humano. Para
continuar evoluindo, o Brasil precisa redobrar os esforços na educação dos
jovens e no aprimoramento dos trabalhadores.
Surto de febre oropouche desafia autoridades
sanitárias no país
O Globo
Após dengue, zika e chicungunha, população
enfrenta mais um vírus transmitido por mosquitos
Não bastasse a miríade de doenças que levam
multidões diariamente ao SUS, as autoridades sanitárias brasileiras agora têm
mais uma com que se preocupar: a febre
oropouche. O Brasil já registrou 7.286 casos neste ano, aumento de
776% em relação ao acumulado de 2023. No dia 25 de julho, o Ministério da
Saúde confirmou duas mortes, ambas na Bahia. O fato é
preocupante porque até então não havia, segundo a pasta, relato na literatura
científica de morte pela moléstia.
Os doentes costumam apresentar sintomas como
febre, dor de cabeça, dor no fundo dos olhos, náuseas, vômitos, diarreia, dores
nas pernas e cansaço. Nas formas mais graves, surgem manchas vermelhas e roxas
pelo corpo, há sonolência e sangramento grave, com queda abrupta na contagem de
hemoglobina e plaquetas sanguíneas. Como alguns desses sintomas se confundem
com os da dengue, o desafio se torna ainda maior.
A febre oropouche é causada pelo vírus
Orthobunyavirus oropoucheense, transmitido principalmente pelo mosquito
Culicoides paraensis, conhecido na Região Amazônica como maruim ou
mosquito-pólvora. Em áreas silvestres, ela pode ser transmitida por dois outros
insetos: o Coquilletti diavenezuelensis e o Aedes serratus. Em áreas urbanas,
onde é menos comum, também pelo mosquito Culex quinquefasciatus.
Apesar de se tratar de uma doença endêmica
da Amazônia,
onde se concentram 80% dos casos, ela já é encontrada também em estados do
Sudeste e Sul. Uma das mortes sob investigação aconteceu no Paraná, com
possível transmissão em Santa Catarina.
A doença tem implicações preocupantes. No
início de julho, o Ministério da Saúde informou ter identificado quatro casos
de microcefalia em recém-nascidos relacionados à infecção da mãe pela febre
oropouche. Casos parecidos já haviam ocorrido com mães infectadas pela zika. Há
também a suspeita de que o vírus que circula no Brasil sofreu mutações que
poderiam estar ligadas às mortes recentes.
A disseminação da febre oropouche pelo país,
sobrecarregando ainda mais o já claudicante sistema de saúde, expõe o fracasso
das políticas sanitárias para conter seus transmissores. O ministério alega que
a distribuição inédita, a partir de 2023, de testes diagnósticos para a rede
nacional de laboratórios fez com que casos antes concentrados no Norte e no
Nordeste aparecessem também em outras regiões. É plausível. Mas, com teste ou
sem teste, a doença se espalhou e cresce.
A dificuldade para barrar o avanço ficara
patente no caso da dengue. Embora agora ela esteja em declínio depois de bater
todos os recordes, os números são vergonhosos. Diante do agravamento do quadro
da febre oropouche, ministério, estados e prefeituras precisarão traçar
estratégias para testar a população — medida essencial, pois os sintomas se
confundem com os de outras doenças —, tratar os doentes e combater os focos. Os
mesmos governos que não conseguiram dar conta de dengue, zika e chicungunha
agora têm mais uma doença na lista.
Controle de emendas depende da política
Folha de S. Paulo
Medidas para disciplinar avanço do Congresso
sobre Orçamento são corretas, mas governo Lula tem escasso apoio partidário
São corretas, no mérito, as providências
determinadas pelo ministro Flávio Dino,
do Supremo Tribunal Federal, para dar maior transparência à execução de gastos
incluídos por deputados e senadores no Orçamento. Se a iniciativa será eficaz,
é outra discussão.
Não é a primeira vez que o STF tenta
preservar princípios de moralidade e publicidade ante a escalada das chamadas
emendas parlamentares nos últimos anos. As determinações estabelecidas no
governo Jair
Bolsonaro (PL), entretanto, surtiram
escasso efeito.
O comando do Congresso tem se valido da
fragilidade do Executivo para ampliar seu poder sobre a destinação de verbas
públicas. Regras básicas para o controle das emendas, como a identificação de
autores e beneficiários, têm sido esvaziadas.
Assim, parlamentares
conseguem beneficiar seus redutos eleitorais, elevando suas chances
de conquistarem novos mandatos, sem responder por eventuais —frequentes, na
verdade— desmandos na aplicação dos recursos.
Ao final da gestão Bolsonaro, o Supremo
derrubou o mecanismo pelo qual o relator do Orçamento, indicado pela cúpula do
Congresso, tinha autonomia para promover rateio em larga escala de verbas.
Encontraram-se, porém, outros meios de operar
a barganha fisiológica. Luiz Inácio Lula da
Silva (PT),
que na campanha eleitoral atacara as emendas de relator, já no primeiro ano de
governo concordou com uma subordinação informal de ações ministeriais aos
pleitos de deputados e senadores.
Agora, Dino estabeleceu que só pode haver
liberação de dinheiro para emendas rastreáveis, ou seja, com autor e
finalidade identificados. A norma mira em particular despesas propostas por
comissões da Câmara e do Senado —que,
suspeita-se, têm sido usadas para camuflar demandas individuais.
Dada a proximidade do magistrado com Lula,
sua determinação será inevitavelmente vista como
atendimento a interesses do Planalto, o que tende a acirrar tensões
entre os Poderes.
Não resta dúvida de que o Legislativo, se tem
a prerrogativa democrática de deliberar sobre prioridades do poder público,
deveria prestar contas de suas decisões com máxima transparência.
Há, todavia, o fato incontornável de que o
Executivo não dispõe de maioria sólida em um Congresso fragmentado. Sem um
entendimento em outras bases com os partidos, a governabilidade dependerá do
varejo orçamentário.
Limites à alta corte
Folha de S. Paulo
Pacote de Biden para Supremo dos EUA estimula
debate importante também no Brasil
Joe Biden,
presidente dos Estados
Unidos, pretende propor um pacote de
reformas na Suprema Corte do país. As chances de aprovação são
mínimas, já que republicanos dominam a Câmara e a maioria dos democratas no
Senado é apertada. A ideia, contudo, constitui uma oportunidade de reflexão
—não só para os americanos.
Uma das questões é o tempo de permanência dos
ministros. Nos EUA, eles só deixam o cargo quando morrem ou por vontade
própria, independentemente de suas condições físicas ou mentais. Em tese, o
magistrado também pode perder o cargo por impeachment, mas isso nunca
aconteceu.
No Brasil também existe a vitaliciedade,
porém limitada pela aposentadoria compulsória —que ocorre aos 75 anos e vale
para todos os servidores públicos.
A longa permanência é essencial, pois
favorece a independência dos juízes em relação a quem os nomeou. Tivemos uma
demonstração disso por aqui. Políticos do PT foram condenados
no processo do mensalão,
apesar de a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal que os julgou ter
sido indicada em governos petistas.
Ao que tudo indica, Biden sugerirá mandatos
fixos de 18 anos. Parece razoável. A vantagem desse modelo sobre o compulsório
é que inibe-se a tentação de mandatários de indicar juízes cada vez mais
jovens, expandindo assim a projeção do poder presidencial.
No Brasil, de todo modo, essa não é questão
tão importante.
Bem mais urgente, tanto lá como cá, é o
problema da conduta pública. Não basta que juízes sejam honestos, é preciso que
pareçam honestos —e imparciais.
Em ambos os países, são recorrentes casos de
ministros que se tornam próximos de
empresários com interesses na corte e que se permitem
manifestações explícitas de preferências políticas.
Tal comportamento mina a credibilidade do
tribunal e de suas decisões, por mais técnicas que sejam.
Por isso, o pacote de Biden também sugere a elaboração de um código de
conduta que defina claramente o que é ou não aceitável e as
situações em que ministros devem declarar-se impedidos.
Não há motivo para relutância. Já há códigos similares para diversas profissões sujeitas à confiança do público. E não há órgão que dependa mais da imagem que projeta do que uma corte constitucional.
A morte e a morte do orçamento secreto
O Estado de S. Paulo
Beneficiários e cúmplices do orçamento
secreto engambelaram o STF, mas a Corte, ainda que com atraso, determina
medidas para acabar com a indecência. A ver se desta vez será respeitada
A audiência de conciliação presidida pelo
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino sobre o orçamento
secreto, mais especificamente sobre o descumprimento da decisão do STF que
ordenou o fim do esquema, não foi nada conciliadora. E nem haveria de ser
mesmo. Afinal, a apropriação de um robusto quinhão do Orçamento pelo Poder
Legislativo sem a devida transparência é uma flagrante e persistente violação
da Constituição – e por isso tem de ser cessada, não acomodada da maneira que
for entre as partes envolvidas.
Dino foi enfático, para não dizer duro, com
os representantes do Congresso, do Tribunal de Contas da União (TCU), da
Advocacia-Geral da União (AGU), da Controladoria-Geral da União (CGU) e da
Procuradoria-Geral da República (PGR) ao manifestar sua insatisfação diante da
fragilidade das explicações, chamemos assim, que lhe foram dadas sobre os
supostos mecanismos de transparência que teriam sido adotados para novos
repasses de emendas parlamentares. “Onde estão as informações?”, indagou o
ministro. “Não é minha cognição que está em pauta, mas não consegui entender.
Imagine o cidadão, que é dono do dinheiro”, concluiu.
Os representantes do Congresso, do TCU, da
AGU, da CGU e da PGR presentes na sessão não foram convincentes o bastante para
demonstrar que a decisão colegiada do STF, de dezembro de 2022, de fato, estava
sendo cumprida e o orçamento secreto havia acabado. Não convenceram nem o
ministro, nem este jornal, nem decerto os cidadãos minimamente informados por
uma razão elementar: o orçamento secreto não acabou, apenas tem sido moldado à
exata medida das necessidades e da avidez de deputados e senadores por recursos
públicos fora dos controles institucionais.
Beneficiários e cúmplices do orçamento
secreto, verdade seja dita, engambelaram o STF e a sociedade brasileira. Quando
daquela decisão da Corte Suprema, às vésperas da posse do presidente Lula da
Silva, o STF, a rigor, não determinou o fim da subversão das emendas de relator
(RP-9); determinou, por óbvio, o fim do orçamento secreto. Mas, com muita
malandragem, abusando da desfaçatez, os congressistas entenderam a decisão,
relatada à época pela ministra Rosa Weber, da forma que melhor convinha a seus
interesses paroquiais, quando não antirrepublicanos.
As emendas de relator, é verdade, deixaram de
ser usadas de forma indevida, voltando a servir apenas para correção pontual do
texto da peça orçamentária, de resto a sua finalidade original. Mas outras
formas de sequestro de recursos orçamentários ao abrigo do escrutínio público
foram engendradas pelos parlamentares já no governo de Lula da Silva, com a
anuência, pois, do Palácio do Planalto. Aí estão as subversões das emendas
discricionárias (RP-2), destinadas à disposição de recursos por meio dos Ministérios,
e das emendas de bancada, sem falar nas famigeradas “emendas Pix”, estas mais
opacas do que quaisquer outras.
A bem da verdade, nem as emendas de relator
(RP-9) foram extintas, haja vista que Lula da Silva autorizou a transferência
de recursos do orçamento secreto subscritos nessa alínea ainda no governo de
Jair Bolsonaro como “restos a pagar”. Ou seja, a decisão do STF de 2022, aquela
que malandramente foi lida como restrita às RP-9, não vem sendo cumprida nem
pelo Congresso nem pelo governo federal. É uma desmoralização total.
Para colocar ordem nessa bagunça, o ministro
Flávio Dino, em decisão liminar, fixou uma série de medidas que devem nortear o
repasse de recursos públicos por meio de emendas parlamentares a partir de
agora. Entre as principais estão a “absoluta vinculação federativa” – ou seja,
um parlamentar só pode indicar emendas para o Estado pelo qual foi eleito,
“salvo projeto de âmbito nacional” –, a vinculação a políticas públicas
determinadas e a auditoria desses repasses pelo TCU e pela CGU.
Como se vê, são medidas elementares. Chega a
ser constrangedor que o STF tenha de reforçar seu imperativo numa democracia
que se pretende séria. Resta ver se, mesmo sendo simples, essas medidas vão
suplantar a enorme criatividade dos cupins da República.
A extorsão de Putin
O Estado de S. Paulo
Libertação de inocentes presos injustamente
na Rússia envolveu árduo trabalho diplomático; vitória, contudo, é do
chantagista Putin, que trocou jornalistas por criminosos a seu serviço
Condenado em um arremedo de julgamento a
passar 15 anos em uma colônia penal russa de segurança máxima por “espionagem”,
o jornalista americano Evan Gershkovich foi libertado após 16 meses preso por
um crime que não cometeu. Gershkovich, outros dois americanos e um grupo de
dissidentes russos foram utilizados por Vladimir Putin como moeda de troca.
Para liberá-los, o ditador exigiu o repatriamento de criminosos a seu serviço,
como o de um matador de aluguel que cumpria pena de prisão perpétua na Alemanha.
A notícia da libertação do jornalista
americano trouxe alívio à redação do Wall Street Journal (WSJ),
veículo pelo qual ele atuava como correspondente na Rússia. Já de volta aos
EUA, foi recebido pelo presidente Joe Biden e pela vice Kamala Harris em uma
base aérea. A diplomacia da gestão Biden, que trabalhou arduamente pela
libertação de Gershkovich, da também jornalista Alsu Kurmasheva e de um
ex-fuzileiro naval, merece os aplausos pelo trabalho conjunto com corpos
diplomáticos de outros países, sobretudo o da Alemanha, que tomou a difícil
decisão de liberar um capanga de Putin por solidariedade aos EUA.
A troca de prisioneiros, contudo, é uma
vitória de Putin, que sequestrou e privou inocentes da liberdade para poder
estender tapete vermelho a um grupo de criminosos russos, autores de delitos
graves que vão de assassinato a hackeamento. Todos já recebidos com pompa e
circunstância em Moscou, como se fossem campeões olímpicos. Putin, inclusive,
foi em pessoa ao aeroporto para receber seus malfeitores, concessão que não faz
a muitos líderes mundiais.
Além da recepção de Estado, Putin prometeu
premiar os criminosos repatriados, descritos como membros leais que prestaram
serviços valiosos à Rússia. Já em relação aos dissidentes russos que entraram
no combo de troca e agora se encontram no Ocidente, o Kremlin afirmou que eles
estão com quem os contratou. Trata-se de mensagem para consumo interno. Putin
acusa os dissidentes de fazer aquilo que ele faz, de modo a desacreditá-los. A
narrativa russa é de que os criminosos trazidos de volta são patriotas, enquanto
os inocentes libertados seriam traidores.
A recepção aos malfeitores também tranquiliza
outros delinquentes a serviço de Putin pelo mundo. Eles podem continuar
praticando seus ilícitos tranquilamente, pois, caso venham a ser presos, Putin
estará a postos para sequestrar algum inocente ocidental para trocá-lo por seu
comparsa.
Verdade seja dita, Putin não escondeu em
nenhum momento seus reais objetivos, e deixou claro que qualquer repórter que
vá a Rússia fazer seu trabalho pode terminar preso sob acusação de espionagem
ou traição. O caso da também jornalista Alsu Kurmasheva é ilustrativo das
táticas do ditador russo.
O “crime” de Kurmasheva, que tem cidadanias
russa e americana, foi coletar e publicar relatos de cidadãos russos contrários
à invasão da Ucrânia. Por esse feito, ela foi condenada pelo regime russo, para
o qual relatar ao mundo que nem todos no país estão satisfeitos com a ação
militar na Ucrânia equivale a espalhar informações falsas sobre o Exército.
O fato de que a troca ocorre apenas dias após
a farsa de julgamento que resultou na condenação de Gershkovich deixa ainda
mais claro que Putin perseguiu, prendeu e condenou os jornalistas americanos no
intuito de trocá-los pelos bandidos que desejava libertar. Antes mesmo do
julgamento do correspondente do WSJ, o ditador russo já havia
sugerido, sem muita sutileza, o nome de Vadim Krasikov, o homicida que cumpria
pena na Alemanha pelo assassinato de um dissidente checheno.
Em carta à redação do Wall Street
Journal após a libertação de Gershkovich, a editora-chefe Emma Tucker
reconhece que a troca era a única solução possível por conta do cinismo da
Rússia, ainda que criminosos perigosos tenham sido postos em liberdade. A
avaliação de Emma é correta. Putin sabia que os governos ocidentais não
permitiriam que cidadãos inocentes perecessem nas infames prisões russas.
Explorou nos outros algo que não tem: sensibilidade humanitária. E venceu.
Ética esquisita
O Estado de S. Paulo
Causa perplexidade o caso de ex-secretários
da Fazenda que agora advogam para bets
Pouco tempo depois de trabalharem na
regulação das apostas esportivas no País, dois ex-secretários do Ministério da
Fazenda pularam para o lado oposto do balcão e passaram a defender, em uma
banca de advocacia, os interesses de clientes do mercado de bets. O caso foi
revelado em reportagem do Estadão, que trouxe ainda a informação de que a
Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República não viu problema na
atuação deles como advogados e apenas orientou que não façam uso de informações
privilegiadas nem atuem em processos dos quais tenham participado no
Ministério.
Trata-se de notícia que causa perplexidade, e
é o caso de perguntar qual é a ética que preside o Conselho de Ética da
Presidência. Ora, um dos preceitos básicos da ética pública é a observância de
quarentena na passagem à iniciativa privada, e o motivo, como no caso de uma
doença transmissível, é um só: evitar o contágio. No caso do funcionalismo, um
período mínimo de seis meses é o recomendado para que haja, digamos, uma certa
“descontaminação”. No caso em questão, foram apenas dois ou três meses.
Por certo quem participa de processos para a
criação de um ambiente regulatório detém não apenas o conhecimento profundo do
assunto em questão, mas também uma rede valiosa de contatos acumulados ao longo
de meses de negociações, detalhes sobre trâmites e até mesmo noções sobre
brechas e atalhos que eventualmente possam ser utilizados. É, de fato, uma
bagagem disputada por quem está do outro lado do balcão – no caso específico, o
escritório que arregimentou os dois experts atende 20 clubes de futebol e uma multinacional
do setor de apostas.
A maleabilidade da Comissão de Ética tem sido
surpreendente e chega a pôr em dúvida o propósito do órgão como tutor nas
normas éticas dos agentes públicos. São inúmeros os exemplos recentes de
decisões controversas. O sogro do Ministro das Comunicações, Juscelino Filho,
ocupou um gabinete no ministério mesmo sem cargo algum, como revelou reportagem
do Estadão. Recebia empresários até mesmo na ausência do ministro, mas seu
“trabalho voluntário” foi considerado “compreensível” pela Comissão.
Outro caso abafado pela Comissão foi o
processo contra o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Vinícius
Marques de Carvalho. Em caso também revelado por este jornal, a CGU negociava
acordo de leniência com a Novonor (ex-Odebrecht) e era assessorada pelo
escritório de advocacia VMCA (as iniciais do ministro), que o ministro mantinha
com a companheira, Marcela Mattiuzo. O caso foi arquivado no Conselho depois
que o ministro informou não ter união estável com a companheira e que se
afastou do escritório para assumir a CGU.
Também foi arquivada a investigação do caso
em que foi designado um gabinete do Palácio do Planalto para a primeira-dama
Janja da Silva, que não exerce – ao menos de direito – nenhum cargo público. A
Comissão de Ética considerou que havia “ausência de materialidade”.
Diante de tanta generosidade, talvez esteja na hora de criar um Conselho de Ética para o Conselho de Ética.
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