O Estado de S. Paulo
A eleição na Venezuela representa o maior teste para a política externa do governo Lula
Apesar do princípio constitucional de não interferência em assuntos internos de outros países, os governos do PT fizeram o contrário, como se observa agora na Venezuela. Apoiou Hugo Chávez e Nicolás Maduro nas eleições e respaldou politicamente e minimizou as restrições à democracia dos dois governos, apesar das evidências de medidas autoritárias e de o Mercosul ter suspendido a Venezuela por desrespeito à cláusula democrática. Autoridades brasileiras ressaltaram o papel de Lula para a realização das eleições, para a transparência do processo eleitoral e para a negociação do acordo de Barbados.
Desde o acordo de Barbados, em outubro de
2023, em que a Venezuela se comprometeu a realizar eleições livres e
transparentes, em troca da suspensão das sanções sobre a venda de petróleo e
gás, com o Brasil como um dos avalistas, o governo Lula aumentou seu apoio a
Maduro.
Exemplo claro foi o tratamento dado a Maduro
e as declarações de Lula antes do encontro de presidentes sul-americanos em
Brasília. Em seguida, Maduro antecipou as eleições previstas para dezembro e
tomou medidas para dificultar a candidatura oposicionista (inabilitação de
políticos, perseguições e medidas repressivas, limitação de eleitores no
exterior, cancelamento de convites para observadores independentes).
SANÇÕES. Os EUA revogaram a suspensão das
sanções com a crescente falta de transparência na campanha. O Brasil continuou
a apoiar a Venezuela com um silêncio ensurdecedor, com contatos diretos,
apresentando-se como possível mediador na disputa interna e com declarações
vagas estimulando a transparência nas eleições.
Apesar de todas as restrições, a oposição se
mantinha otimista quanto aos resultados. Poucas horas depois de encerrada a
votação, o presidente do Conselho Nacional Eleitoral anunciou, com 80% dos
votos apurados, a vitória de Maduro para um terceiro mandato de seis anos.
Apesar dos protestos da oposição, que
informou ter dados que contrariavam o anúncio, menos de 24 horas depois da
eleição, o CNE diplomou Maduro como presidente. O ministro da Defesa fez
pronunciamento respaldando a eleição. Como era previsível, manifestações de rua
contra a diplomação se multiplicaram, com crescente repressão policial,
causando dezenas de mortos e centenas de prisões.
A comunidade internacional manifestou dúvidas
quanto à lisura do pleito, como foi feito por nove países latino-americanos
(inclusive governos de esquerda de Chile e Colômbia), liderados pelo Uruguai.
Os representantes diplomáticos de sete desses países foram expulsos com prazo
de 72 horas para deixar o país, e a embaixada da Argentina foi ameaçada de
invasão para retirar venezuelanos exilados em seu interior. Buenos Aires pediu
ao governo brasileiro para representar os interesses argentinos.
ERRO. Nesse contexto, as ações e declarações
do governo brasileiros se complicaram rapidamente. O envio do assessor
internacional de Lula a Caracas foi um erro por colocar o Brasil no centro dos
acontecimentos e dar a impressão que poderia exercer o papel de mediador entre
o autoritarismo de Maduro e uma oposição fortalecida (o que, na realidade, não
existe).
A posição do Brasil foi de cautela, sem
declarações públicas sobre o resultado antes da divulgação das atas. Lula e
Amorim declararam que o governo brasileiro só deve reconhecer o resultado após
garantia de eleições justas, que não endossaria a narrativa de fraude sem ver
as atas, que é normal haver briga e não há nada de grave.
Lula disse que o reconhecimento do resultado
depende da publicação das atas e que, se houver contestação, a oposição deve
recorrer à Justiça, que deverá decidir sobre a pendência – e só então o governo
brasileiro vai se pronunciar.
Na prática, Lula antecipou o pedido de Maduro
– que publicamente solicitou a mesma coisa ao CNE – e reconheceu implicitamente
a reeleição de Maduro, visto que já se sabe qual a decisão do CNE (sempre a
favor do governo). Essa atitude de Lula criou uma armadilha contra o próprio
governo.
O quadro se complicou ainda mais pelos
pronunciamentos do Centro Carter (que disse que o processo eleitoral não pode
ser considerado democrático), da União Europeia, do G-7, dos países
latino-americanos, da OEA, apesar de não ter conseguido aprovar resolução
condenando a Venezuela, em função da abstenção do Brasil, que pediu a
divulgação das atas, juntamente com México e Colômbia.
RECONHECIMENTO. Os EUA reconheceram a vitória
da oposição. Sem falar da repressão às manifestações pela polícia e pelo
Exército, das investigações sobre o ataque de hackers da Macedônia do Norte ao
CNE, do fato de terem queimado e destruído documentos, dos ataques à oposição
como responsável pelos “atos de terrorismo” e de tentativa de golpe de Estado,
da ameaça de processo e prisão de María Corina Machado, todas contrárias às
declarações de Lula de que tinha confiança na normalidade no processo eleitoral
e não havia nada de grave na eleição venezuelana.
Algumas das consequências da atitude do
governo brasileiro, ao demorar em se pronunciar sobre o resultado da votação,
são a perda explícita da liderança política na América do Sul, o desgaste da
imagem internacional do presidente Lula e a perda da credibilidade da política
externa.
Caso reconheça a vitória de Maduro (o que me
parece improvável por razões de política interna, mas possível pelas
declarações até aqui) ou adie indefinidamente o reconhecimento, o governo Lula
enfrentará forte crítica, dificultando ainda mais a governança interna.
As eleições de 28 de julho passaram a representar o maior teste para a política externa do governo Lula, no sentido de que vai demonstrar qual é sua prioridade: a defesa dos interesses do país, da democracia e dos direitos humanos ou a prevalência da ideologia e dos interesses partidários.
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