segunda-feira, 2 de setembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Efeito fiscal de pente-fino em benefícios é incerto

O Globo

Revisão em pagamentos do INSS e no cadastro do BPC é positiva. Mas economias projetadas são otimistas

Ao anunciar o detalhamento dos R$ 25,9 bilhões de cortes que pretende implementar no Orçamento de 2025, o governo deu destaque aos gastos sociais. Do total, a estimativa é que R$ 6,4 bilhões venham do Benefício de Prestação Continuada (BPC), R$ 10,5 bilhões de benefícios do INSS (incluindo o auxílio-doença) e R$ 2,3 bilhões do Bolsa Família. Só nessas três rubricas, o governo acredita haver R$ 19,2 bilhões em pagamentos indevidos.

Ao todo, 5,9% dos gastos do governo em 2023 (ou R$ 261,6 bilhões) foram destinados a programas como Bolsa Família e BPC. Numa definição mais elástica de gastos sociais que inclui a Previdência, 16,7% do PIB — ou quase R$ 800 bilhões — tem por finalidade a proteção social.

O governo faz bem em dedicar maior atenção a essas despesas. Elas têm exercido enorme poder de atração sobre estelionatários e fraudadores, e não faltam evidências de que existem quadrilhas especializadas em disputar esse dinheiro com quem de fato precisa de ajuda do Estado. Mas é incerto que o combate às fraudes terá o efeito fiscal almejado pelo governo.

A primeira fase de um pente-fino em andamento feito pelo Ministério da Previdência Social nos auxílios-doença identificou o pagamento indevido a 45 mil segurados do INSS. Havia irregularidades em nada menos que 45% dos benefícios auditados. O desvio de recursos se deve a quem volta a trabalhar e não pede a suspensão do auxílio ou obtém emprego e omite a informação de que o recebe. O objetivo da fiscalização até o fim do ano é averiguar 800 mil pagamentos. O governo espera que, encerrada a auditoria, haja economia de R$ 3 bilhões.

O caso do pente-fino no BPC, que paga um salário mínimo a idosos ou a deficientes sem condições financeiras, levanta dúvidas sobre essas estimativas. O governo tem pedido a quem recebe o benefício que regularize sua situação no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), criado para identificar aqueles que precisam de apoio do Estado. Para quem não atualizar o cadastro, há risco de suspensão do benefício. A previsão inicial era que a economia com a eliminação de pagamentos indevidos chegaria a R$ 6 bilhões, mas na semana passara o próprio ministério anunciou que dificilmente atingirá esse valor, pois a entrada de novos beneficiários tem compensado a suspensão dos benefícios irregulares.

Isso não significa que o pente-fino seja desnecessário. Ao contrário. Onde há muito dinheiro público, proliferam esquemas para tentar desviá-lo. Em 2005, o Ministério Público Federal realizou um cruzamento dos beneficiários do Bolsa Família com a relação dos funcionários da Prefeitura de Teresina, capital do Piauí. Havia mais de 1.100 servidores municipais recebendo indevidamente.

O fato de haver beneficiários de programas sociais fora do CadÚnico já é um sinal de falhas na gestão desses recursos. É espantoso que o cadastro esteja corrompido. O zelo por informações atualizadas sobre os beneficiários e o controle rigoroso deveriam ser a regra em qualquer governo. O pente-fino nos gastos de programas sociais se deve à necessidade de cumprir as metas fiscais. Mas esse pretexto não deveria ser necessário para o governo administrar com austeridade os recursos recolhidos em impostos. O combate a desvios precisa ser constante.

Congresso precisa desfazer manobra para tirar auxílio-gás do Orçamento

O Globo

Artimanha para driblar arcabouço fiscal não fará desequilíbrio sumir. Só erodirá credibilidade do governo

O Congresso terá de modificar o Projeto de Lei (PL) enviado pelo Executivo prevendo mudanças no repasse do auxílio-gás aos inscritos no Cadastro Único. A meta é ampliar o universo de famílias beneficiadas dos atuais 5,6 milhões para 20,8 milhões até dezembro de 2025. O governo não apresentou evidências da necessidade de expandir o programa nessa extensão, nem para o salto no gasto, que sairá de R$ 3,4 bilhões este ano para R$ 13,6 bilhões em 2026. Pior: pelo plano, o custo adicional não será registrado como despesa no Orçamento, para evitar que interfira nas metas fiscais.

Pela artimanha contábil elaborada no Executivo, o Tesouro abrirá mão de receitas oriundas da exploração do pré-sal, e o dinheiro será repassado diretamente à Caixa para operar o programa. A renúncia de arrecadação em momento de grave crise nas contas públicas é um subterfúgio para tentar escapar das limitações de gastos criadas pelo próprio governo. Se o Congresso não agir, a credibilidade do arcabouço fiscal sofrerá um golpe duro. Não será o primeiro.

Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o programa Pé-de-Meia, auxílio mensal de R$ 200 para estudantes de baixa renda do ensino médio em escolas públicas mediante o cumprimento de critérios como frequência mínima ou participação em exames de avaliação. A intenção era gastar R$ 6 bilhões neste ano e R$ 20 bilhões até 2026. Tudo fora do limite de despesas do arcabouço fiscal. Em maio, o Congresso aprovou a antecipação de R$ 15,7 bilhões, sem saber se as receitas extraordinárias que permitiriam a despesa se confirmariam. O Planalto preferiu inserir o valor como “jabuti” no projeto que recriou o seguro obrigatório de veículos.

A crise fiscal diante do país é alarmante. Em julho, o resultado primário do setor público (déficit de R$ 21,3 bilhões) ficou muito aquém do esperado (R$ 6,7 bilhões). Nos 12 meses até julho, o déficit chega a 2,29% do PIB, ou R$ 257,7 bilhões. Se nada for feito, a dívida pública seguirá seu ritmo inexorável de alta, pondo em risco a inflação e o crescimento.

Iniciativas como o novo auxílio-gás ou o programa Pé-de Meia podem ser defensáveis, mas, quando houver aumento de despesa, o governo precisa dizer onde fará o corte correspondente para não agravar o desequilíbrio crônico nas contas públicas. Não é o que tem feito. Numa dança esquizofrênica, ora jura compromisso com o equilíbrio das contas públicas, ora tenta burlar as regras. Anúncios de cortes de gastos e operações de pente-fino são seguidos de lançamentos de programas sociais fora do Orçamento. Artimanhas não farão o desequilíbrio fiscal sumir. Apenas erodirão a credibilidade da política fiscal. O Congresso precisa dar sua contribuição, zelando para que o PL sobre o auxílio-gás não tenha impacto nas contas públicas.

Governo apresenta orçamento com excesso de otimismo

Valor Econômico

Sem buscar superávits crescentes, a dívida, já alta em relação aos emergentes, continuará subindo

O Projeto de Lei Orçamentária de 2025 prevê déficit zero, e, para sua obtenção, apoia-se em R$ 166,5 bilhões em receitas extras (R$ 46,7 bilhões dependentes de aprovação do Congresso) e cortes de gastos de apenas R$ 25,9 bilhões. As despesas primárias crescerão 7,1%, ou R$ 159,4 bilhões em relação à melhor estimativa disponível para o comportamento dos gastos este ano, a do terceiro balanço bimestral de receitas e despesas, de R$ 2,22 trilhões. Com um avanço previsto da receita líquida de 8,3% em relação ao exercício deste ano - se realizado -, fica garantida nova expansão de 2,5% das despesas em 2026, caso o governo obtenha déficit zero ou de -0, 25% do PIB em 2024.

Será novamente difícil alcançar a meta prevista. Em primeiro lugar, o governo estimou um avanço do PIB superior ao deste ano - 2,64% ante 2,59% da terceira revisão bimestral. A pesquisa Focus, com consultorias e bancos, indica expansão bem menor, de 1,86%. Ou seja, as receitas líquidas de R$ 2,35 trilhões podem não se realizar. Para um crescimento duvidoso maior, o PLOA estima inflação menor, de 3,3%, ante projeção de 3,9% do Focus e de 3,6% do cenário de referência do BC.

O governo espera que as receitas com dividendos e participações deem um salto de 36% no ano que vem, atingindo R$ 33,8 bilhões, ante os R$ 24,2 bilhões previstos para 2024. As receitas com recursos naturais (exploração de petróleo e minerais) também deverão crescer a dois dígitos, para R$ 131,6 bilhões, 11,2% mais que os R$ 118,13 bilhões atuais. Receitas com aumento de impostos ficarão restritas, por enquanto, aos aumentos da CSLL, válida apenas para 2025, onde os bancos pagarão a maior parte da conta (sobe de 20% para 22% para eles), e ao Imposto de Renda sobre Juros do Capital Próprio, aumentado de 15% para 20% de forma permanente.

Todas as esperanças de recursos adicionais estão por conta de acordos sobre pendengas judiciais. As que decorreram de desempate desfavorável ao contribuinte com a volta do voto de minerva para o governo retornou ao orçamento de 2025 mais modesto. A previsão inicial, no ano passado, era de receitas de R$ 54 bilhões. Na terceira revisão do orçamento do corrente exercício, caiu a R$ 37,7 bilhões, mas mesmo assim decepcionou - só R$ 87 milhões ingressaram nos cofres públicos até julho. Para 2025, estimam-se R$ 28,57 bilhões. A eles se acrescentam as expectativas depositadas nas transações tributárias, acertos com devedores, de R$ 26,48 bilhões, mais a recém-instituída transação integral, em que será possível fazer acertos com grandes empresas, a exemplo do realizado pela Petrobras, da qual se esperam R$ 31 bilhões.

Para fechar as contas, calcula-se o ingresso de R$ 15,4 bilhões de recebimento de créditos de dívida ativa, e de R$ 20 bilhões decorrentes da Dirb, nova declaração em que as empresas têm de indicar de quais benefícios tributários gozam, dispêndio no qual haveria supostas incorreções.

As duas principais despesas do orçamento cresceram acima da inflação e da projeção de receitas. O déficit da previdência deverá chegar a R$ 293,1 bilhões, com avanço de 9,1%. As despesas de pessoal pularam para R$ 416,2 bilhões, 11% a mais que na terceira revisão, como fruto dos acordos gerais para aumento de salários do funcionalismo público. Já os gastos para complementação do Fundeb e da educação aumentaram para R$ 56,5 bilhões, ante R$ 47,8 bilhões estimados para 2024.

O governo evitou fazer superávits robustos e por isso o endividamento voltou a crescer mais rapidamente, dada a bola de neve dos juros. Segundo dados do Banco Central, divulgados no dia em que o PLOA 25 foi enviado ao Congresso, o governo geral (inclui estatais, Estados e municípios) teve em julho o pior resultado desde outubro de 2021, com déficit de R$ 21,3 bilhões. A surpresa dos números coube aos rombo dos Estados e municípios, que cresceram bastante para R$ 11 bilhões no mês.

No ano, o governo central acumula déficit de R$ 79,3 bilhões, enquanto que a meta de déficit é de R$ 28,8 bilhões. Mas o déficit nominal, que inclui as despesas financeiras, está explodindo. Em um ano, foram 5,8 pontos percentuais do PIB de expansão da dívida bruta do governo geral (de 72,7% para 78,5%), e a dívida líquida, que desconta os ativos públicos, saltou de 58,5% do PIB para 61,9% do PIB. Como não há superávit primário, a conta dos juros só aumenta, e, como eles estão muito altos, o efeito é exorbitante. Em 12 meses, gastaram-se com eles R$ 869,7 bilhões. O déficit nominal, que os inclui, ultrapassou 10%.

A desconfiança de que o governo será incapaz de produzir até mesmo resultados positivos muito modestos empurra os gastos financeiros para cima. Os juros podem subir em breve, se a inflação continuar desancorada e não cair, em parte devido aos estímulos fiscais que o governo não deveria estar concedendo.

O peso dos gastos financeiros fica claro no orçamento total. Todas as despesas do Estado central somam R$ 2,935 trilhões, enquanto as financeiras consomem R$ 2,77 trilhões. Sem buscar superávits crescentes, a dívida, já alta em relação aos emergentes, continuará subindo. Para o ano que vem, na estimativa otimista de que a Selic média não ultrapassará 9,6%, serão mais R$ 755 bilhões de encargos financeiros, 6,1% do PIB.

Inquéritos sigilosos são a origem do desequilíbrio

Folha de S. Paulo

Em boa hora o STF acena para a conclusão de ações em que o juiz acumula funções e investigados têm direitos restringidos

A estrepitosa decisão do ministro Alexandre de Moraes de suspender o acesso ao aplicativo X no Brasil, se for avaliada em si mesma, merece reparos pela desproporcionalidade de algumas medidas, embora a insistência da empresa em descumprir ordens judiciais não pudesse passar sem sanção.

O dono da plataforma, Elon Musk, deliberadamente empurrou o magistrado do Supremo Tribunal Federal para essa situação não porque o empresário seja paladino das liberdades. Musk é um conhecido aliado da ditadura chinesa em nome da proteção das operações da sua montadora, a Tesla, no país asiático.

Apontar a farsa sustentada por Musk, no entanto, não serve para justificar todas as medidas tomadas por Moraes. Há aspectos abusivos no rol das deliberações, como o de sequestrar contas de uma empresa não implicada na desobediência, a provedora Starlink, somente porque Musk é um de seus acionistas.

Felizmente o próprio ministro recuou de outra arbitrariedade, a de banir a oferta de aplicativos VPN, que protegem redes privadas de acessos não autorizados. Seria também punir firmas e pessoas sem ligação com a desobediência do X apenas porque o VPN pode ser usado para acessar furtivamente a rede social.

Para que os pontos frágeis da decisão de Moraes possam ser criticados e corrigidos, seria urgente que os 11 integrantes do Supremo deliberassem sobre ela. O ministro relator preferiu, no entanto, submetê-la nesta segunda-feira (2) ao crivo da Primeira Turma, onde atuam cinco ministros.

O incidente sobre o X, vale ressaltar, é apenas sintoma do desequilíbrio original que foi a corte se autoconceder poderes extraordinários, mal delimitados e incompatíveis entre si, a título de combater ameaças de extremistas contra o tribunal. A anomalia dos inquéritos especiais completou cinco anos.

Por meio desse mecanismo esdrúxulo, cidadãos diversos têm sido atingidos em seus direitos de se expressar, pelas decisões que derrubam contas em plataformas digitais, e de ir e vir, com a anulação de passaportes.

As medidas de força ocorrem em surdina, pois as ordens monocráticas são secretas, e as pessoas atingidas não têm acesso a elas para exercer o seu direito de defesa. Até hoje ninguém além de Moraes sabe exatamente quantos cidadãos foram alvejados nem as alegações de cada ação restritiva.

Em boa hora o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em entrevista a esta Folha, acena com a conclusão do inquérito das fake news, a partir da avaliação do procurador-geral da República, que poderá fazer denúncias baseadas no material ou solicitar o arquivamento das apurações.

O exemplo brasileiro ressalta a sapiência dos idealizadores do moderno Estado democrático de Direito. Entregar a alguém, mesmo que bem intencionado, poderes de mais e controles de menos é dar margem a abusos.

O Brics de Pequim e Moscou

Folha de S. Paulo

Com voz abafada, Lula expõe-se ao embaraço de ver Venezuela e Nicarágua no bloco, que se vale de antiamericanismo datado

Sob os dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Brasil jamais ponderou se seu engajamento no Brics convinha aos interesses nacionais. O bloco de economias emergentes, com viés antiamericano datado, encaixou-se em sua ambição de conduzir uma diplomacia "ativa e altiva", com olhos postos no chamado Sul Global.

O grupo, formado em 2006 por Brasil, Rússia, Índia e China, recebeu a África do Sul em 2011.

Neste terceiro mandato, o governo brasileiro não teve forças para impedir a expansão dos Brics ditada por China e Rússia, que trouxeram Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Egito para o bloco em janeiro deste ano.

Não bastasse, vê-se agora diante do constrangimento de aceitar a possível inclusão da Venezuela e da Nicarágua no órgão.

Como reportou a Folha, Pequim e Moscou preparam a integração de ambas as ditaduras latino-americanas como parceiras em outubro, na reunião de cúpula da entidade em Kazan (Rússia).

Embora Venezuela e Nicarágua não estejam na lista de adesão plena, a medida será suficiente para criar embaraços ao governo Lula. Há algo de proposital nesse avanço, que leva em conta a voz diminuta do Brasil no bloco.

Não passa incólume às diplomacias de Xi Jinping e de Vladimir Putin a crise na relação do Brasil com a ditadura de Daniel Ortega. Tampouco é ignorada a decisão de Lula, reforçada na sexta (30), de reconhecer a vitória eleitoral de Nicolás Maduro somente se comprovada pelas atas do pleito.

É bem possível que o Itamaraty consiga convencer a Índia a somar-se ao veto brasileiro a essa iniciativa. A própria China pode recuar diante dos sinais emitidos por Lula de adesão do Brasil à Nova Rota da Seda —outra decisão controversa, sob o ponto de vista do interesse nacional.

O Itamaraty considera barganhar a inclusão de países sem viés antiamericano, como alguns do Sudeste Asiático, pela exclusão de Venezuela e Nicarágua. Ilude-se também com a adesão da Colômbia, que nunca pleiteou acesso, como prêmio de consolação.

Não deixa de causar mal-estar a Lula sua tardia constatação da essência ditatorial dos regimes de Maduro e Ortega, louvados por seu partido. Embora bem-vindo, esse giro não seria possível sem a pressão de forças democráticas consolidadas no país.

Mas ainda falta ao petista reconhecer que o Brics não passa de uma concertação regida conforme os estratagemas da China e, a rigor, de um infeliz acrônimo no qual o Brasil se meteu por pura conveniência ideológica e boa dose de ingenuidade geopolítica.

Constituição chamuscada

O Estado de S. Paulo

Não cabe ao ministro Dino dizer como nem quando o governo federal deve agir para debelar o fogo na Amazônia e no Pantanal, muito menos de onde deve vir o dinheiro para isso

O Supremo Tribunal Federal (STF) adquiriu um protagonismo inaudito na vida nacional nos últimos anos – especificamente nesse período que cobre o trevoso mandato de Jair Bolsonaro e a conturbada transição para o governo de Lula da Silva – como um dos mais rígidos anteparos às ameaças ao Estado Democrático de Direito no País. Não foram triviais os desafios do STF em meio ao maior teste de estresse da democracia brasileira desde a promulgação da Constituição de 1988.

Paradoxalmente, porém, esse mesmo STF se mostra cada vez mais à vontade para exorbitar os limites que lhe foram determinados pelos constituintes originários, o que configura uma clara afronta ao próprio Estado Democrático de Direito pelo qual a Corte diz zelar. Sempre movidos por boas intenções, aquelas das quais o inferno está cheio, alguns ministros da Corte têm extrapolado seus papéis institucionais para se imiscuírem em questões que nem remotamente lhes dizem respeito.

Até o calouro ministro Flávio Dino entendeu rapidamente como a banda passou a tocar naquele canto da Praça dos Três Poderes. No dia 27 passado, Dino ordenou que, em 15 dias, o governo federal mobilizasse as Forças Armadas e agentes da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Força Nacional e dos órgãos de fiscalização ambiental para acabar com o fogo na Amazônia e no Pantanal, inclusive agindo “de forma repressiva e preventiva” em ambos os biomas.

Consta que a decisão teria estarrecido o Palácio do Planalto. É provável. Afinal, até outro dia Flávio Dino era um dos mais loquazes membros do primeiro escalão do governo Lula. Contudo, a ordem de Dino é, sim, de estarrecer, mas por outra razão: não compete a um magistrado dizer como nem quando os Poderes Executivo ou Legislativo devem formular e implementar políticas públicas. Aos ministros do STF cabe apenas afirmar se a Constituição está sendo cumprida ou não nos casos que lhes chegam para apreciação. Mas essa anômala competência universal do STF, que se espraiou por instâncias inferiores do Poder Judiciário, virou moda no País.

Não há dúvida de que a propagação do fogo na Amazônia e no Pantanal impõe ações imediatas do governo federal, em conjunto com os entes subnacionais. É dever do presidente Lula da Silva mobilizar seu Ministério para equipar as forças federais de segurança e os órgãos de defesa ambiental, em especial o Ibama, tanto para resolver o problema instalado como para evitar que queimadas ocorram na dimensão em que têm ocorrido. Mais do que o custo reputacional para o Brasil, há vidas em perigo nessas regiões e além, pois, como se sabe, a devastação daqueles biomas produz efeitos nocivos sobre áreas muitíssimo distantes de seus limites territoriais.

Mas não será ao arrepio da Constituição, por mais crítica que seja a situação ou mais bem-intencionado que esteja Dino, que o problema será resolvido. À guisa de dar uma justificativa pomposa para a usurpação de competências pelo STF, Dino afirmou que “estamos diante do que a dogmática vem denominando de ‘processo estrutural’, cuja solução demanda diálogo constante e interinstitucional”. Por “diálogo” leia-se a convocação de mais uma audiência de conciliação mediada pela Corte Constitucional, marcada para o próximo dia 10 – um disparate por si só. Deveria ser ocioso lembrar que à mais alta instância do Poder Judiciário não cabe conciliar coisa alguma. Conciliações são próprias da política, vale dizer, estão a cargo do governo e do Congresso.

Talvez ainda numa espécie de umbral desde sua saída do governo, Dino ainda teve a ousadia de determinar que os ministros da Defesa, da Justiça e do Meio Ambiente instruam a “abertura de créditos extraordinários para fazer face ao custeio das ações emergenciais” que ele mesmo determinara que o governo federal adotasse. Ou seja, não satisfeito em dizer o que o governo eleito tem de fazer para conter os incêndios, Dino ainda achou que era o caso de orientar de onde hão de vir os recursos financeiros para bancar tais ações.

Cedo ou tarde, o fogo será debelado. Mas, seguindo nessa toada, é o STF quem manterá a Constituição um tanto chamuscada.

A varinha mágica de Lula

O Estado de S. Paulo

Ao anunciar que vai incluir o botijão de gás na cesta básica de alimentos, Lula da Silva coroa um pacote mal-ajambrado, com propósitos eleitoreiros e sem sustentação fiscal

O presidente Lula da Silva anunciou numa entrevista a uma rádio paraibana que já tomou a decisão de incluir o botijão de gás na cesta básica até 2026, ano de eleição presidencial. Ou seja, quer colocar o GLP numa lista formada exclusivamente por alimentos essenciais. Para ele, trata-se de uma medida para coroar as mudanças no Auxílio Gás, que será ampliado para virar o programa “Gás Para Todos” e quadruplicar os beneficiários até 2026, obviamente driblando o Orçamento.

Não ficou claro como Lula conseguirá realizar a tal promessa, mas isso não costuma ser um problema para um presidente que confunde sua caneta com uma varinha de condão, capaz de resolver qualquer impasse com uma simples assinatura voluntarista. Foi assim que, sem sequer consultar o setor de petróleo, Lula baixou um decreto há poucos dias dando poderes à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para determinar a redução da proporção de reinjeção e queima de gás nos poços produtores de petróleo, na presunção de que a medida barateará o gás.

“O gás é barato, a Petrobras não tem o direito de queimar gás”, afirmou Lula, na mesma entrevista em que falou do botijão. Desde que tomou posse, o presidente vive a dizer que considera um desperdício a queima e a reinjeção de gás, indiferente aos argumentos de que não há infraestrutura de transporte suficiente para a oferta de todo esse gás para o consumo e que a reinjeção é uma técnica mundialmente utilizada para aumentar o aproveitamento da produção de petróleo.

A mais recente canetada mágica de Lula criou a primeira saia-justa para Magda Chambriard, sua atual preposta na presidência da Petrobras. Magda informou que não há como viabilizar a mudança pretendida pelo chefe nos poços em produção ou que já têm plataformas encomendadas (14 estão a caminho), situação que ela considerou “lastimável”. Segundo a executiva, a impossibilidade técnica é responsabilidade do “governo passado” – isto é, de Jair Bolsonaro. Magda deve saber perfeitamente que as especificidades técnicas dos equipamentos operacionais da empresa não são definidas por governos, mas, ao apontar o dedo para Bolsonaro, mostra que já pegou o jeitão da coisa.

Além disso, como bem lembrou a economista Elena Landau recentemente em sua coluna no Estadão, o governo trata a Petrobras como monopolista, ignorando multinacionais do petróleo que atuam há anos no País e que confiaram na segurança dos contratos de concessão assinados com a ANP. Ademais, como o decreto presidencial afeta toda a exploração de petróleo, que no Brasil ocorre com o gás natural associado, a emergente indústria nacional privada também é atingida.

A construção de uma rede de gasodutos que permita o escoamento do gás que é encontrado associado ao petróleo produzido no mar, especialmente na região do pré-sal, como pretende Lula da Silva, é um investimento pesado. Somente o gasoduto Rota 3, em planejamento desde 2014 como a terceira linha de dutos para transportar o produto da Bacia de Santos ao continente, é estimado em mais de US$ 2 bilhões e reduzirá a necessidade de reinjeção de gás em apenas 10%.

O governo lulopetista decidiu que a devolução de gás aos poços terá de ser drasticamente reduzida para elevar a oferta de gás no mercado consumidor, mas não disse quem financiará a infraestrutura necessária para isso. Como disse Landau, “tem cheiro do Brasduto no ar”. Também decidiu que vai quadruplicar o gasto com o Auxílio Gás dos atuais R$ 3,4 bilhões para R$ 13,6 bilhões até 2026, sem esclarecer de que forma as receitas e despesas do programa serão contabilizadas no Orçamento.

A criatividade contábil do lulopetismo é proverbial. Não será surpresa se as empresas de petróleo repassarem diretamente à Caixa, e não ao Fundo Social do Pré-Sal, as contribuições que vão bancar o programa. Esses tributos pagos pela produção de petróleo são verbas que deveriam entrar no Orçamento, mas, no caso, podem pegar um atalho, contornando o arcabouço fiscal, para cair direto na conta populista de Lula da Silva.

Futuro roubado

O Estado de S. Paulo

Falta de creches no País nega a milhares de crianças brasileiras um futuro sem pobreza

Como defende James Heckman, Prêmio Nobel de Economia, “investir em educação na primeira infância é uma estratégia de baixo custo para promover o crescimento econômico”. Pois o Brasil segue falhando estrepitosamente nessa área e perpetuando a pobreza intergeracional. O levantamento Retrato da Educação Infantil no Brasil, divulgado pelo Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação (Gaepe), que articula diálogo entre as esferas pública e civil, traz dados assustadores sobre o descaso com a primeira infância no País, o período de 0 a 6 anos.

De acordo com a publicação, 632.763 crianças entre 0 e 3 anos encontram-se em fila de espera por uma vaga em creche. A fila é maior no Estado de São Paulo, onde quase 89 mil crianças aguardam vaga, mas o problema é nacional. Já em relação à pré-escola (4 a 5 anos), 78.237 crianças estão fora delas, 50% por falta de vagas. O Maranhão lidera nesse quesito (8.717 crianças fora da pré-escola), enquanto apenas o Distrito Federal não tem registro de fila.

O acesso a creches e escolas, como bem lembra o levantamento, é um direito constitucional. Quase metade dos municípios brasileiros (44%), porém, tem fila de espera por vaga em creches e na ampla maioria dos casos (88%) isso se deve à falta de vagas.

No Brasil, a educação básica é atribuição dos municípios. Apesar disso, em plena campanha eleitoral para definição de novos prefeitos, muitos candidatos perdem tempo significativo tratando de temas que não competem aos municípios, como a tirania chavista da Venezuela, o que demonstra que a prioridade talvez não seja a de melhorar a vida dos munícipes.

Na apresentação do levantamento, o Ministério da Educação (MEC) reconheceu que, embora a educação básica seja de competência prioritária dos municípios, “os desafios precisam ser enfrentados de forma colaborativa, com a atuação conjunta de União, Estados e municípios”.

Ocorre que a solução do governo federal para a falta de vagas é o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que despejou vultosos recursos públicos em projetos, sobretudo de infraestrutura, sem que até agora se conheçam resultados satisfatórios.

Investir na primeira infância, além de fundamental para o desenvolvimento de habilidades cognitivas no período da vida em que a maioria das conexões neurais se forma, é mais barato que destinar recursos à formação tardia de jovens ou pagar pensão àqueles que, por falta de acesso à educação, não conseguiram se inserir no mercado de trabalho.

Justamente por serem determinantes para que nossas crianças possam se tornar adultos com um futuro, os investimentos na educação infantil devem ser extremamente bem desenhados, o que não é exatamente o histórico do PAC.

Já em relação aos prefeitos, a julgar pela atual campanha eleitoral, a preocupação com temas que realmente competem aos municípios parece secundária. Não à toa, gestão após gestão, a falta de vagas segue imperando, acarretando em uma série de problemas na formação e na produtividade dos brasileiros.

Mobilidade urbana e qualidade de vida

Correio Braziliense

A mobilidade urbana é parte fundamental da elaboração de planos governamentais e deve ser encarada em todos os níveis de administração

A mobilidade urbana ocupa, cada vez mais, lugar significativo no cotidiano das pessoas, sendo um aspecto determinante para a qualidade de vida. Nesse cenário, ela se impõe como um desafio no mundo e no Brasil, que vem experimentando uma rápida expansão dos municípios. Definida como as condições que viabilizam a circulação dos cidadãos, das mercadorias e das cargas nas cidades, é um indicador de bem-estar social e também de desenvolvimento econômico.

Diante disso, a mobilidade urbana é parte fundamental da elaboração de planos governamentais e deve ser encarada em todos os níveis de administração. A garantia da infraestrutura necessária para o deslocamento e a criação de normas de conduta são ações que devem ser pensadas de forma abrangente e conjunta pelos atores do processo.

A dinamização dos espaços compartilhados e o acesso aos serviços dependem da mobilidade urbana. A impossibilidade desse alcance por parte de qualquer parcela das populações - independentemente de sua abrangência em relação ao todo - é uma desigualdade a ser combatida.

O mau planejamento causa diversos empecilhos para o dia a dia, como a lentidão no trânsito, os congestionamentos e os atrasos em compromissos. Uma circulação confusa e difícil ainda pesa no agravamento dos níveis de estresse dos moradores, além de elevar as poluições sonora e atmosférica.

No país, a questão da mobilidade urbana se apresenta desde o começo do incremento do fluxo migratório em direção às cidades, a partir da segunda metade do século XX. Com o passar dos anos, soluções foram aplicadas para dar conta da demanda. Porém, novas situações da atualidade exigem atenção, como a ampliação do número de veículos particulares nas vias. Ao mesmo tempo, as dificuldades que os grandes municípios brasileiros têm para investir em alternativas coletivas precisam ser encaradas.

Sistemas de transporte público com cobertura extensa e eficiente são o único caminho possível para resolver os problemas da mobilidade urbana no Brasil na atualidade. Estudos e debates são realizados, mas as propostas viáveis precisam sair dos fóruns e ir para a prática. O gargalo diário interfere negativamente, de diversas formas, nas tarefas das pessoas.

É essencial, também, que os agentes pensem uma mobilidade urbana sustentável, totalmente aliada à preservação do meio ambiente. A acessibilidade dos lugares, respeitando necessidades específicas, deve ser contemplada.

A diversificação dos modais oferecidos (metrôs, ônibus, bicicletas, carros e outros) e a integração entre eles são um passo essencial. Em algumas conjunturas, a flexibilização dos horários das atividades e serviços urbanos pode contribuir. A adoção de melhorias nas vias, conferindo maior fluidez, é outro ponto.

Assegurar a mobilidade urbana e tornar as metrópoles mais acessíveis àqueles que a habitam, proporcionando uma melhor qualidade de vida à população, é uma rota que o país ainda está percorrendo. Mas é indispensável acelerar o processo para que as medidas superem os obstáculos o mais rápido possível.

 


 

 

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