O Estado de S. Paulo
As redes, frequentadas por milhões, fazem com que as vozes fiquem presas em si mesmas, reverberando em nichos igualizados que travam debate e ‘lacram’ a torto e a direito
Fala-se muito, discute-se pouco. Há lacração
demais, ponderação de menos. A polarização é permanente. Atolamos numa situação
na qual o livre falar de muitos não gera debates efetivos sobre as questões
centrais da época. A demarcação de espaços e a defesa de interesses restritos
são mais fortes do que qualquer esforço para que se componham perspectivas
coletivas. A política simbólica prevalece: o que importa são as bandeiras, as
novas linguagens, o ruído adjetivado.
É como se a sociedade civil – em que os grupos lutam para “dirigir” intelectual e moralmente a sociedade – não existisse, ou não tivesse como cumprir suas funções e ser o “conteúdo ético do Estado” (Gramsci). O resultado é que a vida social flutua sobre o nada, submetida ao movimento dos “fatos”, dos interesses, das postulações identitárias, das cobranças e das reclamações. Não se trata de manobras da extrema direita, mas de uma predisposição geral, que afeta de igual modo as posições libertárias e progressistas.
A presença de uma imprensa livre é vital e
nos favorece. As análises e os artigos de opinião dos grandes órgãos de
comunicação, porém, não se desdobram nem sobrevivem ao tempo. As mídias
digitais abrem bons canais de discussão, como faz, por exemplo, o Canal Meio.
Mas elas são reduzidas e têm fôlego curto.
As redes, frequentadas por milhões, fazem com
que as vozes fiquem presas em si mesmas, reverberando em nichos igualizados que
travam o debate e “lacram” a torto e a direito. A profusão de falas, em vez de
clarear, dispersa e embota, levando a um estado de saturação.
As redes formam bolhas autorreferidas e
espalham fumaça. Mas nem tudo pode ser explicado a partir delas. As redes têm
sua serventia: nos ajudam a conhecer coisas e pessoas, a obter informações, a
descobrir espaços de interação. Somos nós que nos perdemos nelas e não as
aproveitamos.
A desinformação abundante nos manipula,
distrai e, de algum modo, nos imbeciliza. Nossa fragilidade, no entanto, não
deriva dela. Por que não reagimos, explorando a sensatez e as informações
confiáveis, separando o que presta do que não presta? Por que compartilhamos as
boçalidades que circulam? Se os cidadãos estão despreparados para pensar o
mundo complexo em que vivemos, se não conseguem adquirir sensibilidade crítica
para agir com autonomia, tornam-se cativos de seus nichos em rede.
É uma situação que passa pelo sistema
educacional, pela falta de formação política, pela ignorância basal, pelo
desejo de aparecer. Quem conhece seus direitos, quem sabe de suas obrigações
cívicas, quem entende o mundo e a época, quem compreende as artimanhas do
poder? Tudo é jogado em estado bruto no terreno da disputa política, sem
mediação ou ponderação. A rede pesca muitas almas ingênuas, mas não só.
Escreveu o professor Pablo Ortellado: “A
hiperbolização do discurso político tem levado a um ambiente de i nt o -
lerância”, em que a falta de proporção desvaloriza a possibilidade de que se
estabeleçam diálogos construtivos. Para ele, o debate público ficou moralizado,
sem lugar para posturas moderadas e reflexivas.
Por isso tudo, não faz sentido o presidente
Lula pedir que o Legislativo ou a Suprema Corte regulem as redes, “porque é
preciso moralizar”. Para ele, “mentir sobre o governo” é uma questão moral. Não
é bem assim, há política no meio. Interferir na opinião dos usuários das redes
caminha junto com a censura.
O espírito público está rebaixado entre nós.
O próprio sentido moral das coisas esfarelou, e os farelos chegaram às massas.
As diferentes esferas de normas e valores foram capturadas pela “politização”,
que cria uma ideia tribal de política assentada sobre relações amigoinimigo.
Instala-se assim uma “guerra”.
Por fim, a miséria do debate público
associa-se à falta de organizações que ofereçam parâmetros de sentido para os
cidadãos. Onde estão os partidos? Por que as batalhas identitárias consomem
tanta energia, a ponto de dificultar a formação de consensos e distribuir vetos
à direita e à esquerda?
Dias atrás, a psicanalista Maria Rita Kehl
foi difamada por ter visto nos movimentos identitários uma deletéria “pulsão
narcísica”, que os leva a rejeitar tudo aquilo que é dito e elaborado fora
deles. Ela, conhecida intelectual democrática, foi atacada por ter um “passado
genético” condenatório. E isso em nome de um pretenso “lugar de fala”!
A pretensão não disfarça a inflexão
autoritária. Distorce, cancela e vende gato por lebre, o progressismo
identitário autoproclamado traduzindo-se de maneira reacionária.
Tudo mudaria se debatêssemos mais.
Democraticamente, com reflexão e serenidade. Poderíamos varrer o lixo
acumulado, forjar novas lideranças, corrigir o que há de excessos e carências.
Com o tempo, teríamos um eixo para desenhar o País que queremos.
O problema são os requisitos. Precisaríamos
compreender melhor o que é liberdade de expressão, pressionar os intelectuais
para que saiam de seus casulos e ver os democratas (de centro, liberais, de
esquerda) agirem na sociedade civil. Não é fácil, mas é o caminho.
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