O Globo
Ministros do STF produziram um manual de como julgar ameaças ao Estado Democrático de Direito
Numa odisseia político-judicial tomada de ineditismos, um ex-presidente, três generais, um almirante, um deputado federal foram condenados por crimes contra a democracia num 11 de setembro agora histórico no Brasil. Como simbolismos importam, registre-se que o clímax da conspiração golpista, o 8 de Janeiro de 2023, ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal estava sob a presidência de Rosa Weber. Foi dela a promessa de responsabilização aos que conceberam, praticaram, insuflaram e financiaram os ataques. Dois anos e oito meses depois, foi o voto de Cármen Lúcia, única mulher entre os 11 ministros da Corte, que formou maioria para condenar Jair Bolsonaro e mais sete réus.
A ministra se lembrou da colega, aposentada
desde setembro de 2023, antes de decidir pela condenação dos oito réus, como já
tinham feito o relator Alexandre
de Moraes, Flávio Dino e,
posteriormente, fez Cristiano
Zanin. Cármen Lúcia citou os historiadores Carlos Fico (“O golpe de 1964”,
“Utopia autoritária brasileira”) e Newton Bignotto (“Golpe de Estado: história
de uma ideia”). De Heloisa Starling (“A máquina do golpe”), incorporou o
entendimento de que golpe não é ato isolado, mas engrenagem construída ao longo
do tempo.
O julgamento do núcleo crucial no STF legou,
além do veredito, duas lições. À luz da proteção ativa do regime, Moraes, Dino,
Cármen e Zanin aumentaram o custo de emparedar a democracia, fato recorrente na
História do Brasil. Produziram um manual de como julgar ameaças ao Estado
Democrático de Direito:
1) Fundaram um marco de proteção à democracia
por interpretarem a lei sob a ótica de estratégias e ações encadeadas. Nas
palavras do professor Ademar Borges (“Democracia militante”), citado duas vezes
por Zanin na leitura do voto, os ministros “não se deixaram enredar por
tentativas de fatiar ou isolar os fatos”;
2) Figuras de comando merecem punição
superior à dos subordinados. Não foi por acaso que Jair Bolsonaro, mesmo com
atenuantes por idade, pegou dez anos mais de prisão (27 anos e três meses) que
os mais penalizados pelo 8 de Janeiro. Dos 686 condenados até então, 54 foram
sentenciados a 17 anos. O custo de interferência, mediação, tutela das Forças
Armadas à política também aumenta com a condenação dos generais Braga Netto
(pena de 26 anos), Augusto
Heleno (21), Paulo Sérgio (19) e do almirante Almir Garnier (24).
Presidido por uma mulher, Maria Elizabeth Rocha, pela primeira vez em 217 anos,
o Superior Tribunal Militar ainda decidirá se os oficiais, incluindo Bolsonaro,
capitão da reserva, perderão as patentes;
3) Consagraram o instituto da delação
premiada, com a validação por unanimidade do acordo firmado pelo
tenente-coronel Mauro Cid,
ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O mecanismo será importante no
enfrentamento a outras organizações criminosas, tipificação ora incorporada a
projetos políticos de permanência ilegítima ou tomada de poder;
4) O julgamento foi mantido e concluído,
mesmo diante de ameaças, retaliações comerciais ao Brasil e sanções a
autoridades pelo governo dos Estados Unidos. Os quatro ministros sinalizaram
aos outros Poderes, aos demais juízes e à sociedade que rendição dentro ou fora
do país não são aceitáveis. Soberania é princípio constitucional;
5) Mostraram que, no Judiciário, não há
perdão para crime contra a democracia. Mauro Cid foi beneficiado pelo acordo de
delação, mas não recebeu clemência. Alexandre de Moraes salientou que ferir
cláusula pétrea tampouco permite indulto pelo Executivo ou anistia pelo
Legislativo. Entendedores entenderão.
O voto divergente de Luiz Fux também foi
pedagógico, ainda que tenha frustrado quem esperava unanimidade e, antes disso,
coerência. Vencido no julgamento, o ministro escriturou um calhamaço sobre como
não julgar tramas golpistas:
1) Não convém condenar a base, no caso, Mauro
Cid, e absolver o topo, em particular, Bolsonaro;
2) Não cabe apreciar atos e indivíduos
isoladamente, desprezando a complexidade e o perigo de acontecimentos
encadeados.
À sessão derradeira compareceram os
ministros Gilmar
Mendes, decano da Corte e integrante da Segunda Turma, e Luís
Roberto Barroso, presidente. Ambos a indicar apoio ao trabalho do
procurador-geral da República, Paulo
Gonet, ao relator e demais integrantes do colegiado. Um recado simbólico e
aritmético: ambos de acordo, se formaria maioria de seis votos, também em
plenário, pela condenação dos conspiradores.
A democracia brasileira segue incompleta, desafiadora,
imperfeita. Mas, desde ontem, mais forte, em honra aos tantos que por ela
lutaram, lutam. E lutarão.
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