Folha de S. Paulo
Condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro representa passo importante na interrupção do legado de impunidade no país
A impunidade tem sido a regra para os que
conspiram contra a ordem constitucional no
Brasil. Ao longo da República, mais de uma dezena de golpes, insurgências e
intentonas ficaram impunes. Mesmo os autores de crimes contra a humanidade
foram, ao final, anistiados.
A condenação de Jair Bolsonaro representa, assim, passo importante na interrupção desse legado de impunidade, que tem servido como incentivo para sucessivas rupturas das regras básicas do jogo democrático. Se o parlamento não forçar uma anistia, o custo para um novo golpe terá ficado mais alto no Brasil.
A decisão do STF assume,
ainda, importância que transcende as fronteiras da política nacional. A
responsabilização do ex-presidente e de militares de alta patente, que lhe
assistiram na empreitada, representa um alento para outros regimes democráticos
que se encontram sob severo ataque por parte de líderes populistas e movimentos
autoritários.
O tema da defesa institucional da democracia
não é novo. Sob impacto da experiência totalitária, a Alemanha do pós-guerra
erigiu um modelo constitucional de "democracia defensiva", composto
de diversas ferramentas, como cláusulas pétreas, proibição de partidos
políticos antidemocráticos ou restrição aos discursos de ódio. A
"democracia defensiva" também prevê o emprego do direito penal para
proteção contra "inimigos" da Constituição.
A Constituição de
1988, reativa à nossa acidentada trajetória política, também adotou um modelo
de "democracia defensiva", com mecanismos que se demonstraram
indispensáveis para sobrevivermos a esse ciclo populista. Importa destacar, no
entanto, que se o Brasil resistiu às investidas autoritárias, muito se deve
àqueles que habitam as instituições, assim como setores da sociedade e da
imprensa, que não subestimaram a gravidade das ameaças e adotaram uma postura
defensiva, mobilizando inclusive o direito penal e eleitoral para proteger as
eleições e para punir os que ameaçaram as regras do jogo.
O direito penal cumpre papel essencial no
enfrentamento de casos com violência ou grave ameaça, mas não deve ser visto
como panaceia, devendo haver estratégias educacionais e políticas "capazes
de isolar os partidos de extrema direita sem ignorar as suas pautas, o que não
significa reproduzir os seus discursos ou abordar os problemas da mesma
maneira" (Cas Mudde, A Extrema Direita Hoje, 2022).
Nesse sentido, embora a condenação de
Bolsonaro e de seus apoiadores mais radicais tenha sido passo importante para
excluir do jogo político atores desleais à Constituição, a sobrevivência da
democracia depende de mais do que isso.
O desafio colocado à frente dos atores leais
ao jogo democrático, neste momento, é reconstruir um consenso em torno de
regras de convivência política básicas; de respeito entre os poderes; de
competição política baseada no respeito à legalidade; da solução pacífica dos
conflitos; assim como a necessidade de formar governos capazes de responder aos
interesses e necessidades de toda a sociedade.
Sem que os governos sejam capazes de
contribuir para o desenvolvimento econômico e social, promover a segurança dos
cidadãos, empregar eficientemente o orçamento público e implementar políticas
públicas de qualidade, que contribuam para o bem-estar da população, reforçando
a confiança nas instituições, a democracia continuará vulnerável aos ataques de
parasitas, que dela se nutrem para destruí-la.
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