O Globo
Leitura escapista ou que pague o pedágio da culpa burguesa, aparentemente, é disso que o povo gosta
O GLOBO dedicou, no Segundo Caderno de 5 de setembro, duas páginas ao lançamento do novo livro de Dan Brown — um catatau que o próprio autor considera sua obra mais intrincada, ambiciosa e divertida. A resenha acrescentava que “O segredo final” é arrebatador, com uma trama instigante (adjetivo, quando se trata do autor de “O Código Da Vinci”, não pode faltar).
Dias antes, a Folha de S.Paulo havia
publicado matéria com a professora e tradutora Aurora Bernardini. O título:
“Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura”. Dan Brown poderia
entrar nessa lista: autor que pretende apenas entreter não difere muito daquele
que escreve para bater na porta da consciência do leitor e cobrar a quitação de
uma parcela atrasada da dívida histórica.
A professora causou polêmica por dizer o
óbvio: uma boa história se tornou mais relevante que uma história bem contada.
E literatura sempre foi a arte de escrever bem, não de escrever coisas boas,
justas ou edificantes.
Rubem Braga, segundo Manuel Bandeira, era
sempre bom — mas, quando não tinha assunto, era ótimo. Com o empoderamento
ideológico da literatura, embicamos na direção contrária: se o assunto for
moralmente superior (segundo os valores da elite intelectual do momento),
dispensam-se a fluência, a elegância, a inteligência, o engenho da escrita.
Foi-se o tempo em que o prazer do texto potencializava a dor, e, com isso, doía
mais acompanhar o destino de Baleia, Riobaldo ou Negrinha (Graciliano Ramos,
Guimarães Rosa e Monteiro Lobato miravam a sensibilidade, não a culpa — esta
até podia vir na garupa, não comandava a rédea).
Bernardini foi chamada de elitista e
arrogante por lembrar a lição de Drummond: O que pensas e sentes, isso ainda
não é poesia. (...) Penetra surdamente no reino das palavras./Lá estão os
poemas que esperam ser escritos. E também os romances.
Itamar Vieira Junior e Dan Brown são
fenômenos editoriais; e muito competentes no que se propõem a fazer. Brown é
refém dos adjetivos (suas portas são sempre “portas pesadas” ou “pesadas
portas”; apenas no trecho publicado no GLOBO, Praga é “mágica” três vezes e
“mística” duas). Itamar não resiste a uma comparação: em “Torto arado” são
quase duas centenas: “abatida como uma caça”, “a gritar como um animal de
caça”, “rude como uma onça”, “pesou como uma rocha”, “ralo como xixi de anjo”,
“transparente como sangue desbotado”, “forte como um trovão”, “conhecia como a
palma de minha mão” ... E o texto cansa — cada página rangendo como uma pesada
porta.
Leitura escapista ou que pague o pedágio da
culpa burguesa, aparentemente, é disso que o povo gosta, é isso que o povo
quer, não o biscoito fino do autor que faça da literatura um esticador dos
horizontes do idioma.
Harold Bloom escreveu que “ler a serviço de
qualquer ideologia é não ler de modo algum”. Estamos, com as melhores das
intenções, abrindo mão de ler e de escrever literariamente. E boas intenções —
na vida ou na arte — só servem para manter a taxa de ocupação do inferno.
(No novo livro de Brown, o ar é gelado e
revigorante, os passos compridos deixam um rastro solitário na fina camada de
neve — adjetivos seguem firmes e fortes. Aguardemos “Coração sem medo”, o
terceiro da trilogia de Itamar, para saber se as comparações continuam
“entranhadas como um espinho”, “nos despetalando como flores”, “como um rio em fúria”,
“como um cavalo bravio”, “como se estivesse sempre pregando para uma
multidão”.)
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