sábado, 13 de setembro de 2025

Como se fosse uma pesada porta. Por Eduardo Affonso

O Globo

Leitura escapista ou que pague o pedágio da culpa burguesa, aparentemente, é disso que o povo gosta

O GLOBO dedicou, no Segundo Caderno de 5 de setembro, duas páginas ao lançamento do novo livro de Dan Brown — um catatau que o próprio autor considera sua obra mais intrincada, ambiciosa e divertida. A resenha acrescentava que “O segredo final” é arrebatador, com uma trama instigante (adjetivo, quando se trata do autor de “O Código Da Vinci”, não pode faltar).

Dias antes, a Folha de S.Paulo havia publicado matéria com a professora e tradutora Aurora Bernardini. O título: “Itamar, Ernaux e Ferrante são interessantes, mas não literatura”. Dan Brown poderia entrar nessa lista: autor que pretende apenas entreter não difere muito daquele que escreve para bater na porta da consciência do leitor e cobrar a quitação de uma parcela atrasada da dívida histórica.

A professora causou polêmica por dizer o óbvio: uma boa história se tornou mais relevante que uma história bem contada. E literatura sempre foi a arte de escrever bem, não de escrever coisas boas, justas ou edificantes.

Rubem Braga, segundo Manuel Bandeira, era sempre bom — mas, quando não tinha assunto, era ótimo. Com o empoderamento ideológico da literatura, embicamos na direção contrária: se o assunto for moralmente superior (segundo os valores da elite intelectual do momento), dispensam-se a fluência, a elegância, a inteligência, o engenho da escrita. Foi-se o tempo em que o prazer do texto potencializava a dor, e, com isso, doía mais acompanhar o destino de Baleia, Riobaldo ou Negrinha (Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Monteiro Lobato miravam a sensibilidade, não a culpa — esta até podia vir na garupa, não comandava a rédea).

Bernardini foi chamada de elitista e arrogante por lembrar a lição de Drummond: O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. (...) Penetra surdamente no reino das palavras./Lá estão os poemas que esperam ser escritos. E também os romances.

Itamar Vieira Junior e Dan Brown são fenômenos editoriais; e muito competentes no que se propõem a fazer. Brown é refém dos adjetivos (suas portas são sempre “portas pesadas” ou “pesadas portas”; apenas no trecho publicado no GLOBO, Praga é “mágica” três vezes e “mística” duas). Itamar não resiste a uma comparação: em “Torto arado” são quase duas centenas: “abatida como uma caça”, “a gritar como um animal de caça”, “rude como uma onça”, “pesou como uma rocha”, “ralo como xixi de anjo”, “transparente como sangue desbotado”, “forte como um trovão”, “conhecia como a palma de minha mão” ... E o texto cansa — cada página rangendo como uma pesada porta.

Leitura escapista ou que pague o pedágio da culpa burguesa, aparentemente, é disso que o povo gosta, é isso que o povo quer, não o biscoito fino do autor que faça da literatura um esticador dos horizontes do idioma.

Harold Bloom escreveu que “ler a serviço de qualquer ideologia é não ler de modo algum”. Estamos, com as melhores das intenções, abrindo mão de ler e de escrever literariamente. E boas intenções — na vida ou na arte — só servem para manter a taxa de ocupação do inferno.

(No novo livro de Brown, o ar é gelado e revigorante, os passos compridos deixam um rastro solitário na fina camada de neve — adjetivos seguem firmes e fortes. Aguardemos “Coração sem medo”, o terceiro da trilogia de Itamar, para saber se as comparações continuam “entranhadas como um espinho”, “nos despetalando como flores”, “como um rio em fúria”, “como um cavalo bravio”, “como se estivesse sempre pregando para uma multidão”.)


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