quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A dor e a verdade de um julgamento. Por Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

Para quem está convencido da gravidade do crime, a transigência com as normas processuais nem sequer é vista como transigência

O julgamento de Jair Bolsonaro foi festejado por muitos como um momento histórico. Celebrou-se o resultado: pessoas que atentaram contra a democracia estão agora condenadas criminalmente. Os crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito não ficarão impunes.

O mesmo julgamento frustrou outros tantos. Não pelo resultado em si, disseram, mas pelo modo como foi feito. Veem uma contradição insolúvel no caso: a democracia foi defendida com meios antidemocráticos – restrições ao direito de defesa, apagamento do princípio do juiz natural e da garantia do duplo grau de jurisdição, concentração no juiz relator das funções de investigar e julgar, e do papel de vítima, uso da prisão preventiva para obter uma delação. Para essas pessoas, a contradição impede a celebração de qualquer resultado. E o imperativo cívico mais urgente é não ser conivente com os meio santir republicanos da mais alta Corte do País.

Cada processo é um caso. Generalizações são arriscadas. De toda forma, cabe dizer: a diferença de percepções sobre o julgamento de Jair Bolsonaro – de um lado, a celebração do resultado; de outro, a rejeição dos meios adotados – é fenômeno habitual no sistema de Justiça criminal. Sob esse aspecto, o caso julgado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) não tem nenhum ineditismo, não apresenta nenhuma especial perseguição. Trata-se do dia a dia da Justiça penal. A gravidade do crime é justificativa recorrente para transigir com as regras e princípios processuais.

A rigor, para quem está convencido da gravidade do crime – e da necessidade absoluta de sua punição –, a transigência com as normas processuais nem sequer é vista como transigência. É apenas equilíbrio. É apenas não pactuar com a impunidade presente na trajetória nacional. É apenas cuidar para que a vítima do crime, a sociedade, não fique desprotegida. Há décadas, esse raciocínio é aplicado à corrupção e ao tráfico de drogas. Mais recentemente, passou a ser usado também nos crimes sexuais e ambientais. E agora nos novos tipos penais de defesa das instituições democráticas.

A angústia que parte da população sentiu com a baixa qualidade processual do julgamento do anterior presidente da República é o sentimento diário da advocacia criminal. Aqui, não faço equivalência de casos criminais. Cada um tem suas peculiaridades, com diferentes elementos probatórios e diversos níveis de adesão às normas processuais. Não é tudo a mesma coisa. Chamo a atenção para a equivalência de sentimentos – para a semelhança na percepção individual de injustiça em razão de irregularidades procedimentais.

Eis uma enorme oportunidade de aprendizado, de exercício de empatia. A primeira frase do parágrafo anterior serve tanto ao caso de Jair Bolsonaro quanto ao de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda que as situações processuais possam ser muito diferentes – ambos os grupos políticos concordam que o caso de Lula é inteiramente diverso do caso de Bolsonaro –, seus apoiadores sentiram a mesma dor. Entenderam na própria pele por que, num regime democrático, a decisão deve se legitimar pelo procedimento. A imparcialidade do juiz e a competência jurisdicional são questões prévias ao mérito. E que o direito ao contraditório na produção probatória – o direito de influenciar a percepção do julgador na análise das provas – é indispensável ao processo penal democrático. Ninguém é processado ou condenado por um ato isolado, desconectado de suas circunstâncias, mas por um ato contextualizado. O direito de defesa é precisamente o direito de contribuir com esse contexto, de qualificar a compreensão do significado de cada conduta julgada.

Onde está a possibilidade de aprendizado?

É direito de cada um lutar pelos direitos de seus políticos, mas antes – e sempre – lutemos pelos direitos dos que não têm voz e são massacrados diariamente pelo sistema de Justiça criminal. Lutemos pelos direitos dos que chegam ao processo criminal já condenados, seja pela palavra exclusiva do policial, pelo reconhecimento ilegal feito numa delegacia, pelo bairro onde moram, pelas roupas que usam. Lutemos pelos direitos dos que são privados, desde a abordagem policial, da presunção de inocência. Que a dor sentida por um julgamento que nos parece contrário aos princípios constitucionais seja socialmente transformadora, a conduzir a uma maior sensibilidade com as injustiças diariamente perpetradas pela Justiça, a ter um olhar mais amplo, e não ao obnubilamento, achando que o líder do nosso grupo político é – ou foi – o grande perseguido neste País.

PS: Aos que se sentiram de alma lavada com o voto do ministro Luiz Fux, recordo a observação certeira de Maíra Fernandes e João Vicente Tinoco, em artigo no Correio Braziliense. Apesar dos pontos divergentes, no momento em que Luiz Fux condenou Mauro Cid e Walter Braga Netto por crime contra o regime democrático, formou-se na Primeira Turma uma radical unanimidade: “Houve uma tentativa de golpe no Brasil”. Batalhar pelas garantias processuais não significa fechar os olhos à realidade.

 

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