quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Quem cancela agora é a direita. Por Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Após Charlie Kirk, grupo político repete métodos que antes atribuía à esquerda

Na próxima semana, o jogo se inverte de novo e os progressistas atacam

Nas últimas semanas, estamos assistindo à mais completa desmoralização da pretensão da direita de ser a última resistência na defesa das liberdades de fala, opinião e pensamento. Pretensão que, aliás, explica parte do seu sucesso eleitoral diante de uma esquerda progressista que se especializou em cancelamentos de ideias e pessoas e em toda a sorte de punições ao que considera ofensivo ou moralmente errado.

Desde o começo da grande virada eleitoral à direita radical, em 2016, a esquerda progressista se especializou em reivindicar censura e exclusão, enquanto a extrema direita se apresentava como defensora intransigente de certas liberdades: de expressão, opinião, imprensa e, claro, de possuir armas.

Nas últimas semanas, o rodízio da tolerância trocou a placa. Nos Estados Unidos, depois do assassinato de Charlie Kirk, a direita organizou patrulhas de redes sociais, cobrou demissões, pressionou organizações e, pior, acionou o poder público para transformar opinião detestável em motivo de sanção estatal. A lista de cancelamentos, assédios e punições de quem celebrou ou ironizou a morte de Kirk nos Estados Unidos é enorme e continua crescendo.

Integrantes do governo anunciaram medidas contra quem celebrasse a morte do ativista, com a Casa Branca agora falando em "consequence culture" —"consequência", no caso, é sinônimo de punição. Vieram suspensões na mídia, demissões em empresas, punições em universidades e a ameaça mais grave: revogar vistos e restringir estrangeiros com base em postagens. Isso é o velho cancelamento social, mas com endosso estatal. De fato, quando o governo promete vigiar redes e "olhar nomes" para efeitos de visto, sai do terreno da crítica e do debate e entra no dos direitos.

O caso Kimmel ilustra o clima: a ABC tirou o apresentador do ar após comentários sobre o assassinato. Em paralelo, autoridades falam grosso contra o que chamam de "elogios ao crime", e parte do campo conservador aplaude. A lição é direta: quando o alvo é o outro, vale o expediente que ontem se chamava censura.

A direita trumpista brasileira tampouco se fez de rogada. O jovem deputado Nikolas Ferreira, que até ontem se apresentava como porta-voz de quem se revolta contra a censura da esquerda, anunciou um movimento para pressionar empresas a demitir funcionários que "celebram, apoiam ou encorajam a morte de adversários políticos".

E o prefeito de Cuiabá anunciou que vai exonerar quem comemorar a morte de Kirk, porque isso "não coaduna com os nossos valores". O jornalista Eduardo Bueno, apanhado em flagrante delito de regozijo com a morte do inimigo político, está experimentando "as consequências" das suas declarações.

"Mas celebrar assassinato não é liberdade de expressão", dizem. É repulsivo, sim. Mas demitir, proibir, vetar e perseguir alguém por uma ideia deplorável não é justamente o que a direita jurava que só os identitários de esquerda faziam? Não é mais um abuso contra o qual justamente se insurgia?

O gesto, além disso, é contraditório. De um lado, louva-se Kirk justamente porque defendeu até o fim que toda ideia, mesmo a mais detestável, mesmo a que você não respeita, deve circular e ser enfrentada em público. Notem que ele mesmo, um radical trumpista, defendia ideias que os progressistas consideram odiosas.

Sendo assim, por que apenas a ideia abjeta de que, por ter ideias detestáveis, Kirk merecia ser assassinado não pode ser exposta e enfrentada? Por que só ela deve ser tratada como crime e quem a defende tem de arcar com as punições a que faz jus um criminoso?

Assim, a direita radical recorre à velha "tolerância seletiva" que os progressistas adoram: concede-se o direito de escolher que opiniões desagradáveis se devem tolerar e quais posições não devem ser ditas impunemente. A extrema direita, que reivindica para si o heroísmo de defensora da liberdade de expressão, agora replica as práticas canônicas do ativismo identitário de esquerda: listas de proscrição, caça a empregos, disciplinamento de falas.

A troca de lugares é eloquente: quem jurava defender a liberdade de expressão agora cancela com fúria; quem antes se notabilizou por patrulhar a fala imprópria passou a brandir, ao menos por ora, a bandeira liberal da livre palavra.

Na próxima semana, quiçá, o jogo se inverte de novo e a direita vai para a defesa enquanto os progressistas atacam. Organizando direitinho, todo mundo cancela e todo mundo defende a liberdade de expressão.

É só não errar no rodízio do autoritarismo que as coisas fluem mais ou menos, como se sabe.

 

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