Folha de S. Paulo
Após Charlie Kirk, grupo político repete
métodos que antes atribuía à esquerda
Na próxima semana, o jogo se inverte de novo
e os progressistas atacam
Nas últimas semanas, estamos assistindo à
mais completa desmoralização da pretensão da direita de ser a última
resistência na defesa das liberdades de fala, opinião e pensamento. Pretensão
que, aliás, explica parte do seu sucesso eleitoral diante de uma esquerda
progressista que se especializou em cancelamentos de ideias e pessoas e em toda
a sorte de punições ao que considera ofensivo ou moralmente errado.
Desde o começo da grande virada eleitoral à direita radical, em 2016, a esquerda progressista se especializou em reivindicar censura e exclusão, enquanto a extrema direita se apresentava como defensora intransigente de certas liberdades: de expressão, opinião, imprensa e, claro, de possuir armas.
Nas últimas semanas, o rodízio da tolerância
trocou a placa. Nos Estados Unidos, depois do assassinato de Charlie
Kirk, a direita organizou patrulhas de redes sociais, cobrou demissões,
pressionou organizações e, pior, acionou o poder público para transformar
opinião detestável em motivo de sanção estatal. A lista de cancelamentos,
assédios e punições de quem celebrou ou ironizou a morte de Kirk nos Estados Unidos
é enorme e continua crescendo.
Integrantes do governo anunciaram medidas
contra quem celebrasse a morte do ativista, com a Casa Branca agora falando em
"consequence culture" —"consequência", no caso, é sinônimo
de punição. Vieram suspensões na mídia, demissões em empresas, punições em
universidades e a ameaça mais grave: revogar vistos e restringir estrangeiros
com base em postagens. Isso é o velho cancelamento social, mas com endosso
estatal. De fato, quando o governo promete vigiar redes e "olhar nomes"
para efeitos de visto, sai do terreno da crítica e do debate e entra no dos
direitos.
O caso Kimmel ilustra o clima: a ABC tirou o
apresentador do ar após comentários sobre o assassinato. Em paralelo, autoridades
falam grosso contra o que chamam de "elogios ao crime", e parte do
campo conservador aplaude. A lição é direta: quando o alvo é o outro, vale o
expediente que ontem se chamava censura.
A direita trumpista brasileira tampouco se
fez de rogada. O jovem deputado Nikolas
Ferreira, que até ontem se apresentava como porta-voz de quem se revolta
contra a censura da esquerda, anunciou um movimento para pressionar empresas a
demitir funcionários que "celebram, apoiam ou encorajam a morte de
adversários políticos".
E o prefeito de Cuiabá anunciou que vai
exonerar quem comemorar a morte de Kirk, porque isso "não coaduna com os
nossos valores". O jornalista Eduardo
Bueno, apanhado em flagrante delito de regozijo com a morte do inimigo
político, está experimentando "as consequências" das suas
declarações.
"Mas celebrar assassinato não é
liberdade de expressão", dizem. É repulsivo, sim. Mas demitir, proibir,
vetar e perseguir alguém por uma ideia deplorável não é justamente o que a
direita jurava que só os identitários de esquerda faziam? Não é mais um abuso
contra o qual justamente se insurgia?
O gesto, além disso, é contraditório. De um
lado, louva-se Kirk justamente porque defendeu até o fim que toda ideia, mesmo
a mais detestável, mesmo a que você não respeita, deve circular e ser
enfrentada em público. Notem que ele mesmo, um radical trumpista, defendia
ideias que os progressistas consideram odiosas.
Sendo assim, por que apenas a ideia abjeta de
que, por ter ideias detestáveis, Kirk merecia ser assassinado não pode ser
exposta e enfrentada? Por que só ela deve ser tratada como crime e quem a
defende tem de arcar com as punições a que faz jus um criminoso?
Assim, a direita radical recorre à velha
"tolerância seletiva" que os progressistas adoram: concede-se o direito
de escolher que opiniões desagradáveis se devem tolerar e quais posições não
devem ser ditas impunemente. A extrema direita, que reivindica para si o
heroísmo de defensora da liberdade de expressão, agora replica as práticas
canônicas do ativismo identitário de esquerda: listas de proscrição, caça a
empregos, disciplinamento de falas.
A troca de lugares é eloquente: quem jurava
defender a liberdade de expressão agora cancela com fúria; quem antes se
notabilizou por patrulhar a fala imprópria passou a brandir, ao menos por ora,
a bandeira liberal da livre palavra.
Na próxima semana, quiçá, o jogo se inverte
de novo e a direita vai para a defesa enquanto os progressistas atacam.
Organizando direitinho, todo mundo cancela e todo mundo defende a liberdade de
expressão.
É só não errar no rodízio do autoritarismo
que as coisas fluem mais ou menos, como se sabe.
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