quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Hora de deixar a 'química' de lado. Por Vera Magalhães

O Globo

Caso encontro se confirme, Itamaraty, Planalto e equipe econômica precisam prepará-la com profissionalismo e pragmatismo

Na era do imediatismo, até a Assembleia Geral da ONU vira reality show. O contraponto absoluto entre os discursos de Lula e Donald Trump na abertura do encontro, ontem, foi rapidamente deixado de lado e substituído pelo frisson com a declaração final do presidente dos Estados Unidos de que havia se encontrado com o brasileiro por alguns segundos e forte “química” havia acontecido entre eles.

O grau de paixão que um simples "P.S. a um longo e autocentrado discurso provocou mostra como a política vem sendo lida cada dia mais segundo os códigos apressados e rasos das redes sociais. Lula teria “dado uma volta” em Trump, o republicano teria “abandonado” seu aliado Jair Bolsonaro. Segundo o manual do escoteiro mirim da extrema direita de Eduardo Bolsonaro, tudo não passa de uma estratégia mirabolante de Trump para subjugar Lula e fazê-lo ceder a seus desígnios. Quanta bobagem, de todo lado.

A possibilidade de uma conversa, ainda que por telefone ou on-line, entre Estados Unidos e Brasil depois de meses de acirramento nas relações comerciais e diplomáticas entre os dois países é uma notícia relevante, cuja concretização é fundamental para nosso país e, por isso, requer absoluto pragmatismo e meticulosa preparação prévia, não memes, achismos, torcidas ou narrativas que tentem vender a história como episódio de sitcom.

Lula fez um discurso muito bem estruturado e extremamente corajoso na abertura da Assembleia Geral da ONU. Foi para o evento munido de uma estratégia clara: falar tanto para o público externo, enfatizando a importância do multilateralismo e das alianças globais, quanto para o doméstico, ao bater na tecla da soberania nacional e da independência do Poder Judiciário.

Foi sofisticada, do ponto de vista da carpintaria do texto, a decisão de nunca mencionar Trump nem os Estados Unidos de forma textual, embora tenha ficado óbvio desde o início a quem o discurso, conciso na mesma medida que duro, se destinava. Tirando o pedágio que o petista insiste em pagar a Cuba e Venezuela, fazendo contorcionismo na própria lógica intrínseca de condenar autocratas e ameaças à democracia, o resto foi impecável.

A fala de Trump foi prolixa, resvalando em vários momentos para ironia descabida, deselegância em relação à própria ONU e aos demais países e distorção de dados e fatos em vários aspectos. Mas, para nós, brasileiros, tudo foi eclipsado pela parte final. O lide estava no pé, como dizemos no jargão jornalístico.

Agora, com a futura reunião aparentemente confirmada, o governo brasileiro precisa fazer com que a suposta “química” que surgiu em poucos segundos de encontro reverta em ganhos nos fronts comercial e político. Tudo leva a crer que a tardia aquiescência de Washington em retomar as pontes com Brasília se deve à óbvia constatação de que o tarifaço imposto a produtos brasileiros é deletério para a economia americana.

Da mesma maneira, a completa ausência de menção a Jair Bolsonaro na longa fala de Trump na ONU põe em perspectiva sua real preocupação com o julgamento do ex-presidente brasileiro. E o filho desertor, cuja situação mais se deteriora quanto mais conspira contra o Brasil, sabe bem disso.

Diante dessas premissas, Itamaraty, Planalto e equipe econômica precisam preparar uma pauta enxuta e objetiva de temas a tratar na reunião, voltados a revogar tarifas e sanções impostas de forma injusta e sem justificativa técnica.

Não se deve perder tempo com bravatas nacionalistas nem em tentar dissuadir Trump da ideia de que existe conspiração contra Bolsonaro. Quanto mais o bode do ex-presidente for deixado fora da sala e adultos experimentados em negociações complexas tomarem a frente do encontro, mais chances de êxito para o Brasil. Nada a ver com tentar buscar um match a partir de uma impossível “química” entre dois chefes de Estado tão diferentes.

 

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