O Globo
Caso encontro se confirme, Itamaraty,
Planalto e equipe econômica precisam prepará-la com profissionalismo e
pragmatismo
Na era do imediatismo, até a Assembleia Geral da ONU vira reality show. O contraponto absoluto entre os discursos de Lula e Donald Trump na abertura do encontro, ontem, foi rapidamente deixado de lado e substituído pelo frisson com a declaração final do presidente dos Estados Unidos de que havia se encontrado com o brasileiro por alguns segundos e forte “química” havia acontecido entre eles.
O grau de paixão que um simples "P.S. a
um longo e autocentrado discurso provocou mostra como a política vem sendo lida
cada dia mais segundo os códigos apressados e rasos das redes sociais. Lula
teria “dado uma volta” em Trump, o republicano teria “abandonado” seu aliado
Jair Bolsonaro. Segundo o manual do escoteiro mirim da extrema direita de
Eduardo Bolsonaro, tudo não passa de uma estratégia mirabolante de Trump para
subjugar Lula e fazê-lo ceder a seus desígnios. Quanta bobagem, de todo lado.
A possibilidade de uma conversa, ainda que
por telefone ou on-line, entre Estados Unidos e Brasil depois de meses de
acirramento nas relações comerciais e diplomáticas entre os dois países é uma
notícia relevante, cuja concretização é fundamental para nosso país e, por
isso, requer absoluto pragmatismo e meticulosa preparação prévia, não memes,
achismos, torcidas ou narrativas que tentem vender a história como episódio de
sitcom.
Lula fez um discurso muito bem estruturado e
extremamente corajoso na abertura da Assembleia Geral da ONU. Foi para o evento
munido de uma estratégia clara: falar tanto para o público externo, enfatizando
a importância do multilateralismo e das alianças globais, quanto para o
doméstico, ao bater na tecla da soberania nacional e da independência do Poder
Judiciário.
Foi sofisticada, do ponto de vista da
carpintaria do texto, a decisão de nunca mencionar Trump nem os Estados Unidos
de forma textual, embora tenha ficado óbvio desde o início a quem o discurso,
conciso na mesma medida que duro, se destinava. Tirando o pedágio que o petista
insiste em pagar a Cuba e Venezuela, fazendo contorcionismo na própria lógica
intrínseca de condenar autocratas e ameaças à democracia, o resto foi
impecável.
A fala de Trump foi prolixa, resvalando em
vários momentos para ironia descabida, deselegância em relação à própria ONU e
aos demais países e distorção de dados e fatos em vários aspectos. Mas, para
nós, brasileiros, tudo foi eclipsado pela parte final. O lide estava no pé,
como dizemos no jargão jornalístico.
Agora, com a futura reunião aparentemente
confirmada, o governo brasileiro precisa fazer com que a suposta “química” que
surgiu em poucos segundos de encontro reverta em ganhos nos fronts comercial e
político. Tudo leva a crer que a tardia aquiescência de Washington em retomar
as pontes com Brasília se deve à óbvia constatação de que o tarifaço imposto a
produtos brasileiros é deletério para a economia americana.
Da mesma maneira, a completa ausência de
menção a Jair Bolsonaro na longa fala de Trump na ONU põe em perspectiva sua
real preocupação com o julgamento do ex-presidente brasileiro. E o filho
desertor, cuja situação mais se deteriora quanto mais conspira contra o Brasil,
sabe bem disso.
Diante dessas premissas, Itamaraty, Planalto
e equipe econômica precisam preparar uma pauta enxuta e objetiva de temas a
tratar na reunião, voltados a revogar tarifas e sanções impostas de forma
injusta e sem justificativa técnica.
Não se deve perder tempo com bravatas
nacionalistas nem em tentar dissuadir Trump da ideia de que existe conspiração
contra Bolsonaro. Quanto mais o bode do ex-presidente for deixado fora da sala
e adultos experimentados em negociações complexas tomarem a frente do encontro,
mais chances de êxito para o Brasil. Nada a ver com tentar buscar um match a
partir de uma impossível “química” entre dois chefes de Estado tão diferentes.
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