sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A geopolítica do quintalismo e nós. Por José de Souza Martins

Valor Econômico

Alguém nos EUA fez referência, que repercutiu na mídia, de que a América Latina é o quintal dos americanos. Continua sendo

A cada dia e cada vez mais, e com crescente dificuldade, percebemos que a realidade social e política muda e se transfigura. Tão depressa que até mesmo nossa alfabetização foi relativizada, o vocabulário inundado por uma enxurrada de palavras diferentes, muitas que dizem algo que já supúnhamos dizer com as velhas e costumeiras palavras ensinadas por nossos avós e pais.

Um sentimento desconfortável de ignorância se apossa dos que, como eu, foram educados na certeza de que o saber é progressivo e acumulativo. O de fato aprendido, supostamente aprendido está. Mesmo o nosso mundo cotidiano, tradicionalmente tão repetitivo, já não se repete. O mundo de cada manhã é uma surpresa. Além do mais, o nosso pequeno mundo de seres do dia a dia é regulado por um grande mundo que não conhecíamos.

Na manhã de sábado, dia 6, li na primeira página do “New York Times” que o ainda presidente dos EUA decidira mudar o nome do seu Departamento de Defesa para Departamento de Guerra. Nestes dias, tomou decisões quanto ao deslocamento de navios de guerra americanos para o Caribe. Um ataque americano seria retaliação a um possível ataque da Venezuela. Justificou-se com suspeitas sobre a Venezuela. O velho truque de provocar a guerra para ter o pretexto de fazê-la.

Trump anunciou também seu desapontamento com o Brasil na questão do tarifaço. Ou seja, não é a Venezuela que está na mira dos canhões do agora Departamento de Guerra. Ou não é apenas. Trump quer arrastar a América do Sul a um novo cenário de conflitividade. Ele muda a geografia do mundo com o que se pode chamar de sua geopolítica do quintalismo.

Essa é a palavra nova. Alguém nos EUA fez referência, há algum tempo, que repercutiu na mídia, de que a América Latina é o quintal dos americanos. Continua sendo.

Justificam no Brasil de hoje o que é próprio do fascismo e do nazismo, nem mesmo faltando a suástica em bandeiras e em trajes em várias manifestações públicas. Todos, no fundo, a achar que quem é fascista e direitista é, ao mesmo tempo, patriota.

Escandalosa e acintosa, a imensíssima bandeira americana no desfile bolsonarista do dia 7 de setembro na avenida Paulista para não comemorar o dia da pátria. No caminhão-palanque os astros das pretensões antipatrióticas e antidemocráticas: o pastor Malafaia, o governador Tarcísio de Freitas, o gerente do PL e os acólitos da trama e do disfarce.

No mesmo momento em que o golpe de Estado está em julgamento e as primeiras sentenças para a cúpula da trama são anunciadas, a exibição descarada de que o golpe continua na manifestação quinta-coluna da simbólica avenida. É a continuidade do golpe de 1964.

Os cidadãos democráticos do país cometeram grave erro ao julgarem que o fim da ditadura militar de fato acabava com ela. Faltou-nos aqui uma providência como a que a Universidade da Califórnia em Berkeley fez nos estados no imediato pós-guerra: a referencial pesquisa sociológica sobre o Fator F (Fascismo), de uma equipe de cientistas liderados por Theodor W. Adorno, sobre personalidade autoritária nos EUA. Um estudo sobre a disponibilidade dos americanos para a aceitação do discurso antidemocrático e fascista.

De fato, nos anos 1950 a América manifestou traços de personalidade como o racismo, a intolerância ideológica, a variedade de preconceitos antissociais. Só aos poucos os movimentos sociais provocaram alguma superação da anomalia e do perigo.

Aqui, não fizemos nada disso. Ingenuamente, julgamos que o fim formal da ditadura militar era suficiente para estabelecer a democracia. Os democratas não foram capazes de perceber que a ditadura não fora derrotada. Fora apenas disfarçada.

Não era o PSDB o inimigo do PT, nem era FHC o adversário de Lula. O inimigo da democracia era o obscuro e tosco Bolsonaro e sua enorme competência para agregar e tanger a imensa massa que lhe deu o poder de desgovernar para desconstruir a democracia e, embora já preso, para se comportar como se ainda estivesse no poder. Ele e os seus. A imensa tropa da geopolítica do quintalismo.

O surto fascista deste momento nem é surto. É desdobramento rítmico e cíclico de nossa ansiedade permanente pelo retorno ao mandonismo que tem seu centro na reciprocidade binária da casa-grande e da senzala. As elites, com óbvias e notáveis exceções, vivem a nostalgia dessa relação de servidão.

Como se nota no comportamento dos Bolsonaros e dos bolsonaristas no servilismo antibrasileiro e traidor aos EUA, a Trump e sua corte antidemocrática, indicam a nossa cumplicidade com a geopolítica do quintalismo de Trump. Nos servos ideológicos brasileiros, parasitas do próprio governo americano somos nós que queremos a dominação imperialista, e não eles.

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