Valor Econômico
Viabilidade financeira de projeto de
gratuidade de transporte público tem grande potencial eleitoral se
nacionalizado em Brasília
“Eu pego meu balaio lá pra Zona Norte, com
mais uma hora estou chegando lá. É o meu único meio de transporte, com sorte eu
consigo até sentar. Ai, seria tão bom, se eu morasse no São Bento, na Savassi,
no Anchieta ou no Sion.”
“No Balanço do Balaio” é um samba cheio de suingue lançado pelo cantor e compositor mineiro Vander Lee, falecido precocemente em 2016. Narrada de modo cômico, a canção retrata as agruras do usuário de ônibus (“balaio”, na gíria belorizontina) no deslocamento entre a região central e a periferia da cidade: a superlotação, a falta de conforto, o trânsito pesado, a qualidade precária dos veículos e o tempo de vida perdido no transporte casa-trabalho-casa diário.
Curiosamente, Vander Lee não tratou do custo
da tarifa. Também, pudera: apesar do serviço ruim, o preço da passagem era
relativamente baixo no fim dos anos 1990, quando a canção foi lançada.
Curiosamente, este escriba se lembra bem quando se mudou para Belo Horizonte,
no fim de 1994, e sacolejava de busão pela cidade pagando R$ 0,35 por viagem.
Se o valor fosse corrigido pelo IPCA, a passagem deveria custar R$ 2,64 hoje -
mas a tarifa padrão em Belo Horizonte está em R$ 5,75, uma das mais caras do
país.
Quando a juventude do Movimento Passe Livre
parou São Paulo reclamando do aumento de 20 centavos, riscando a fagulha de uma
revolta que incendiou o país em junho de 2013, escreveu um capítulo importante
de uma longa história de rebeliões por transporte público de qualidade e
acessível que remonta ao século XIX, como retrata o urbanista Roberto Andrés em
“A Razão dos Centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013”.
Desde aquela época, quando eu ouvia falar de
passe livre ou tarifa zero, confesso que desdenhava da ideia, atribuindo-a a
meras utopias estudantis.
Não que se tratasse de uma demanda sem
legitimidade - pelo contrário, transporte é o segundo item que mais pesa no
bolso do brasileiro com renda de um até cinco salários mínimos, segundo o IBGE.
Além disso, o custo e a precariedade do transporte público nas grandes cidades
empurram a população na direção da clandestinidade e de meios privados de
condução de baixíssima segurança. Nesse fim de semana O Globo reportou que a
rede municipal de saúde do Rio recebe em média 80 feridos por acidentes de moto
a cada dia, gerando, além do sofrimento pessoal, incapacidade para o trabalho e
um gasto de R$ 130 milhões com cirurgias para os cofres públicos.
Minhas reservas contra o sonho da tarifa zero
se deviam ao seu financiamento. Afinal de contas, a maioria dos sistemas de
transporte público mundo afora se baseia numa combinação, em diferentes
proporções, entre a receita com as tarifas pagas pelos usuários e os subsídios
providos pelos governos. Assim, na minha limitada cabeça de economista,
eliminar as catracas dos ônibus significava necessariamente impor um ônus maior
sobre os pagadores de impostos.
A crise do transporte público nas capitais e
regiões metropolitanas, agravada pela pandemia, reflete esse processo. Tomando
Belo Horizonte como exemplo, em junho de 2018 foram registrados quase 32
milhões de viagens no sistema municipal de ônibus urbano, enquanto em junho
último 22 milhões de pessoas se deslocaram pelo mesmo modal. Com 10 milhões de
pessoas a menos pagando tarifa, a Prefeitura de Belo Horizonte teve que
aumentar a alocação de recursos para custear a prestação do serviço pelas
empresas de ônibus. Em 2025, os subsídios do transporte público já consomem
quase R$ 750 milhões do orçamento local, ficando atrás apenas de saúde,
educação, folha de pagamento e previdência de servidores.
Mas essa realidade pode mudar em breve. Está
para ser votado no plenário da Câmara Municipal o PL nº 60/2025, conhecido como
PL do Busão 0800, que muda a sistemática do financiamento do sistema de
transporte em Belo Horizonte. Baseada no sistema vigente há décadas em Paris
(“versement transport”), a grande sacada é aposentar o arcaico mecanismo do
vale-transporte e instituir uma contribuição municipal a ser cobrada das
empresas com dez ou mais empregados.
Na sistemática do projeto, micro e pequenas
empresas com até nove empregados serão isentas da taxa, enquanto as demais
farão uma contribuição de R$ 168 a R$ 185 mensais sobre o número de
funcionários que superar esse limite (quem tiver dez empregados pagará a taxa
sobre apenas um, e assim sucessivamente).
Segundo estimativa de economistas da UFMG, a
substituição do vale-transporte pela contribuição por empregado representará
uma elevação média de 0,91% na folha salarial das empresas abarcadas pelo
tributo (do 0,74% atual para 1,65%). Em compensação, o valor arrecadado
proporcionará a implantação da gratuidade total nos ônibus da capital mineira,
a ser efetivada gradualmente em quatro anos.
O urbanista Roberto Andrés costuma chamar
projetos de tarifa zero de “Bolsa Família sobre rodas”. Ao se mostrar viável
financeiramente, a aprovação do PL do Busão 0800 em Belo Horizonte é projeto de
grande impacto eleitoral à espera de um patrono em Brasília.
Nenhum comentário:
Postar um comentário