A senha, na sequência da tomada de assalto da Mesa da Câmara dos Deputados por
parlamentares celerados, era o encontro da PEC da Bandidagem com o PL da
Anistia, reunindo, nas graças da impunidade, criminosos comuns e criminosos
políticos, passados, presentes e presuntivos, os parlamentares de hoje e de
amanhã, e os golpistas fardados e os golpistas paisanos que atentam contra a
ordem democrática desde a proclamação da República.
A população entendeu que se davam as mãos as iniciativas da direita nativa com
as ações agressivas e reiteradas dos EUA contra nossa economia e nossa
soberania, e as unificou como uma única ameaça. Contra elas se levantou,
tecendo como uma só luta o combate à impunidade e o fim da conciliação política
mediante a defesa da democracia e da soberania nacional. Foi o enlace que
mobilizou a consciência política e levou o povo a ocupar as ruas, afirmando sua
vontade.
Que seu grito não fique parado no ar.
O saldo histórico mais relevante deste 21 de setembro terá sido, para além do
veto à impunidade parlamentar (já consagrado no Senado) e à anistia aos
golpistas (ainda tramitando na Câmara dos Deputados), haver o povo se assumido
como o fiador da democracia. Esta é a bandeira que as forças de esquerda e
progressistas, de um modo geral, deverão sustentar.
As manifestações do domingo têm, do ponto de vista político, um significado
exemplar que as aproxima das memoráveis mobilizações que, fechando a campanha das
Diretas Já, desaguaram em abril de 1984 nos comícios do Rio de Janeiro e de São
Paulo. Os idos de abril anunciavam o fim da ditadura, que, velha e exaurida,
sairia de cena no ano seguinte. O melhor retrato desse fim sem honra nos foi
ensejado pelo último ditador, o general João Baptista Figueiredo, ao abandonar
o Palácio do Planalto pelas portas dos fundos, no dia 15 de março de 1985.
A festa de 21 de setembro deste ano deve encerrar o ciclo das dúvidas táticas
da esquerda no enfrentamento dos desafios e anunciar uma nova fase da ação
política.
Desta feita, as mobilizações, convocadas por intelectuais e artistas
identificados com sua gente, sem a presença ostensiva das organizações
partidárias e sindicais (mas com a necessária participação delas), sem apoio da
grande imprensa, sem transporte facilitado, percorreram todas as capitais e
muitas cidades do interior do país, reunindo multidões em número ainda não
contabilizado.
No Rio e em São Paulo, estados e capitais governados pela direita, os
militantes da democracia foram calculados em algo superior a 90 mil. E a
Avenida Paulista, como respondendo ao desafio posto pelo fascismo, se esmerou
ao estender a imensa bandeira do país, fixando a imagem icônica da opção
nacional, contrastando com a vassalagem oferecida pela direita ao carregar como
sua a bandeira do imperialismo, quando os EUA mais atacavam nossa economia,
nossa dignidade, nossa independência, nossa soberania.
Assim, a direita e a esquerda, no Brasil, passaram a ter seus símbolos, e o
nosso é aquela imagem da Avenida Paulista no dia 21, fundindo ideia, sentimento
e ação.
O que virá, a seguir, serão suas consequências, ainda mais significativas na
medida em que as ruas não forem novamente abandonadas, e as lideranças
políticas de nosso campo tiverem, enfim, compreendido que a única luta que se
perde é aquela que se abandona, ou não se trava. E que o povo não se omite,
quando corretamente sensibilizado.
Essa história em processo, e este renascido projeto de um país que luta por
preservar sua independência e sua soberania — independência e soberania que
precisam ser defendidas com ações afirmativas todo dia (diz a história dos
povos) — constituiu a coluna dorsal do discurso do presidente Lula, ao abrir a
80ª Assembleia Geral da ONU, no último dia 23.
O presidente pôs de pé o país, com firmeza e sem recorrer a bravatas; respondeu
a todas as agressões e ameaças com dignidade e coragem e, ao fim e ao cabo,
traçou as linhas mestras de uma política externa que já foi identificada como
“ativa e altiva”.
É documento para ser distribuído, ouvido e lido em todo o país, nas escolas e
na caserna, massificado, discutido e, afinal, adotado como seu pela Nação, que,
consciente de seu significado, saberá cobrar a fidelidade do Estado, do atual
governante e de seus sucessores.
Nada de novo no front
As comemorações são justas, ademais de necessárias, mas todo cuidado é pouco
para não confundirmos ponto de partida com ponto de chegada. É recomendável
considerar, sempre, o poder do grande capital e da gendarmeria do imperialismo,
tanto mais agressivo quanto mais se revela sua crise.
Há que ter presente as resistências de uma economia dependente da exportação
de commodities, matérias-primas e minério in natura, como é a nossa,
incrustada na periferia do capitalismo.
E é preciso considerar as limitações objetivas do governo de centro-esquerda,
minoritário em Congresso controlado pela extrema-direita, e à mercê de uma
classe dominante cuja visão de mundo é condicionada por um enraizado sentimento
de inferioridade em face do mundo dito desenvolvido (este que está destruindo o
planeta), seus valores e seus interesses, os quais, sem qualquer crítica, ela
procura reproduzir como se fossem seus.
Por esta ótica de vira-lata é que o mainstream da imprensa nacional
se vê, nos vê e enxerga o mundo. Por isso pouco viu e ouviu Lula e seu
discurso. A FSP e O Globo do dia 24/09 trouxeram para a
primeira página o improviso de Donald Trump, acusando a descoberta de uma certa
“química” com o nosso presidente (que a confirmaria mais tarde, acrescentando
reciprocidade), captada em 39 segundos de um encontro casual nos corredores da
ONU. O longo discurso de Lula, em contraste, seria matéria para as páginas
internas.
Nesse encontro, que certamente entrará para os anais da política internacional,
de tão relevante que pareceu aos grandes jornais, Trump teria convocado nosso
presidente para um tête-à-tête, e logo vêm, deles, as recomendações para
Lula não postergar o encontro. E chovem conselhos sobre as concessões que
teríamos de fazer ao império.
Concessões que devem ser anunciadas antes das negociações, e assim caberá ao
Brasil entregar a cereja de seu bolo: para o oligopólio da comunicação, o que
haveria por barganhar deve ser ofertado de graça, como quem renuncia aos ases
no jogo de cartas.
Nem um pio sobre nosso direito a reclamar explicações sobre as agressões
sofridas pelo nosso país, repetidas e acentuadas por Trump em seu discurso
autorreferente e racista, proferido na sequência do pronunciamento de Lula.
Nenhum dos jornalões registrou que o magnata, numa afronta ao nosso país, disse
que o Brasil vai mal (sob que aspecto? Os dados sobre queda do desemprego e
aumento da renda, por exemplo, são conhecidos), e que só irá bem se estiver com
os EUA. Justiça seja feita à síntese do Correio Braziliense: “A mensagem
central do discurso de Trump na ONU: ou é do meu jeito, ou nada feito”.
O Estadão de nada gostou e reduz o discurso de Lula a um “show
ideológico”. Para o jornal dos Mesquita, nosso presidente foi “um papagaio a
repetir chavões esquerdistas contra o imperialismo ocidental”. Mais realista do
que o rei, cobra de Lula críticas à Rússia pela invasão da Ucrânia (coisa que o
presidente já fez noutras oportunidades), enquanto Volodymyr Zelensky agradece
publicamente a Lula por haver apelado por um cessar-fogo em seu discurso, e
pelos esforços do Brasil pela paz na região.
A classe dominante diz que o fundamental é negociar “tecnicamente” (como se
esta e qualquer negociação entre Estados pudesse não ser política...),
aproveitando a brecha “inesperadamente” aberta por Trump. O Valor, dos
Marinho, dita a etiqueta: “É mais a hora de demonstrar competência diplomática
que protestos políticos” (25/09).
Governo e setor privado, diz O Globo (25/09/25), estariam trabalhando
um “cardápio de itens”, e já seriam conhecidas propostas de concessões em áreas
estratégicas, como minerais sensíveis (terras-raras e outros), energia, data
centers e inteligência artificial.
Como se vê, se temos todas as razões para comemorar os atos de 21 de setembro e
apostar em seus frutos, a experiência recomenda muita cautela e muita
vigilância na proteção de nossos interesses, que depende de permanente
mobilização política.
***
O mundo desperta I — Para além do aplaudidíssimo discurso de Lula, e
do embaraçoso pronunciamento do líder dos EUA (“memorável e esquisito”, nas
palavras de um colunista do Financial Times; “violento e confuso”, segundo
o Libération), a 80ª UNGA contou com uma gama de declarações impactantes
concernentes ao tema incontornável de nossa época: o genocídio palestino. Se
Lula sentenciou, com acerto, que “o mito da superioridade ética ocidental está
sepultado sob os escombros de Gaza”, os líderes de Irã e Turquia foram
veementes na denúncia dos crimes de Israel, e a primeira-ministra da Eslovênia
afirmou que o criminoso será preso se pisar em seu país. Num belíssimo
pronunciamento, o colombiano Gustavo Petro conclamou o mundo a fornecer aos
palestinos aquilo de que eles mais precisam, hoje, para não serem varridos do
mapa: ajuda militar. Como se houvessem ouvido seu apelo, Itália, Espanha e
Grécia enviaram navios de guerra para escoltar a Flotilha da Liberdade, que
leva solidariedade, alimentos e medicamentos à população violentada de Gaza —
algo que Israel considera inadmissível.
O mundo desperta II — Superando a fase das denúncias —
necessárias, mas claramente insuficientes —, o Brasil age e suspende a remessa
de petróleo para o enclave sionista. Mas mantém, ainda, o fornecimento de aço,
fundamental para a indústria assassina. Os atos precisam seguir acompanhando a
excelência das palavras.
O assassino voa — Com mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal
Internacional, pelos notórios crimes de guerra que tem praticado, Benjamin
Netanyahu discursou hoje (26/09) no púlpito da ONU — o que, em si, é uma
afronta à razão de ser da Organização. Repetindo o gesto que já se dera no ano
passado, dezenas de delegações se retiraram do plenário no momento da infâmia.
Registre-se que a delegação brasileira, coerente com os princípios inscritos na
nossa Constituição (inclusive aqueles que regem as relações internacionais do
país), foi uma das que deram as costas para o genocida.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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