O Globo
Transição ecológica, para ser justa e
efetiva, deve começar onde o Estado não chega, ou só chega com repressão e
descaso
As mudanças climáticas são, antes de tudo,
uma crise urbana. Nas cidades se concentram os efeitos mais visíveis e
violentos da emergência climática: enchentes arrastam vidas e histórias, ondas
de calor sufocam bairros sem verde, deslizamentos escancaram o abandono das
favelas, e a precariedade do saneamento se transforma em vetor de doenças.
Se o impacto é urbano, a solução também
precisa ser. O problema é que muitas cidades ainda tratam a pauta ambiental
como distante, técnica, restrita a conferências e relatórios em inglês. Mas ela
está no esgoto a céu aberto, na rua que alaga, na falta de sombra, no
transporte precário, no lixo acumulado onde deveria haver praça, cuidado e
vida.
A crise climática tem CEP. E esse CEP costuma ser de favela.
É preciso abandonar a ideia de que a agenda
verde é separada da urbana e social. A transição ecológica, para ser justa e
efetiva, deve começar onde o Estado não chega — ou só chega com repressão e
descaso. Isso exige mais que plantar árvores: exige plantar poder. Porque a
raiz do problema é política e econômica.
Qualquer plano diretor é um mapa de escolhas
políticas. Quem pode morar onde? O que pode ser construído? Quanto vai para
asfalto e quanto para ciclovia? Quanto para esgoto, drenagem, cultura, moradia,
proteção costeira? Essas decisões não são neutras — e quase nunca feitas por
quem vive onde os impactos são maiores.
Não basta participação simbólica. A favela
precisa participar com qualidade e poder. Poder de influenciar o orçamento, de
decidir os rumos do território, de transformar o espaço em que vive. Porque
participação sem poder é espetáculo. E orçamento sem participação é imposição.
Exemplo disso é a forma como se pensa
“resiliência climática”. A palavra está na moda, mas o conceito continua
elitizado. Fala-se em bairros sustentáveis, mas ignoram-se as favelas verdes
que já existem — territórios que reciclam por sobrevivência, compartilham por
cultura, inventam soluções pela falta de recursos. Essas práticas não são
copiadas nem financiadas. Muitas vezes, são criminalizadas.
O que seria uma cidade resiliente de verdade?
Uma que escuta quem já vive com risco. Que transforma telhados em painéis
solares, becos em jardins de chuva, terrenos baldios em hortas, lajes em
centros culturais. Uma cidade que redefine o zoneamento com base em justiça
climática, não só em especulação. Que distribui verde, água, vento e sombra
como direitos — não privilégios de poucos.
Isso exige outro modelo de gestão: integrado,
transparente, participativo. E repensar onde e como são tomadas as decisões —
sobretudo as orçamentárias. Sem orçamento, qualquer plano é só papel bonito.
Hoje, boa parte das escolhas urbanas é feita sem ouvir quem mais será afetado.
É hora de virar a chave. O debate climático
precisa sair dos gabinetes refrigerados e entrar nas quebradas superaquecidas.
Precisa trocar gráficos frios por mapas de calor humano. Precisa ouvir o
morador da encosta antes do consultor da ONU.
A COP30 precisa dialogar e caminhar com a
favela. Porque o futuro das cidades será climático — e só será justo se for
coletivo.
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