O Estado de S. Paulo
A democracia não elimina crises ou conflitos;
garante é que sejam resolvidos sem violência
Pacificação do quê? Pacto entre quem? Redução de penas em troca do quê? Anistia que beneficia apenas uma das partes faz sentido? O esquecimento de malfeitos só se justifica quando há ganhos mútuos e equilíbrio entre os lados em conflito.
Há exemplos virtuosos de pactos que envolveram anistia para assegurar a estabilidade em momentos de transição democrática: as negociações entre De Klerk e Mandela pelo fim do apartheid na África do Sul; o Pacto de Punto Fijo na Venezuela, entre AD, Copei e URD; ou a anistia de 1979 no Brasil. Em todos esses casos, havia riscos, ganhos e concessões recíprocas.
A ideia de que anistiar ou reduzir penas dos
condenados pela trama golpista e pelos atos do 8 de Janeiro contribuiria para
“pacificar o País” repousa sobre um equívoco: supor que a democracia é um
sistema sem crises ou conflitos. Essa visão confunde ordem com apaziguamento,
como se o perdão dos culpados fosse condição para a estabilidade.
Na realidade, como argumenta Adam Przeworski
em Democracy and Market, a democracia é, acima de tudo, um procedimento para
administrar conflitos. É um sistema em que partidos perdem eleições, governos
terminam, crises irrompem – e, ainda assim, as disputas são resolvidas sem
violência. O voto, e não a força, é o mecanismo legítimo de resolução das
diferenças.
Nesse sentido, a pacificação não é uma
concessão excepcional obtida por perdão político: é um elemento constitutivo da
própria democracia.
Além de procedimental, a democracia também é
substantiva. Como lembra Peter Smith em Democracy in Latin America, ela não
apenas organiza eleições, mas protege direitos. A anistia para quem tentou
derrubar o regime constitucional não fortalece a democracia – ao contrário,
mina a proteção de direitos e enfraquece a confiança de que todos responderão
por seus atos diante da lei.
Ao rebaixar crimes contra a ordem democrática
a meros “desvios perdoáveis” sob o argumento falacioso da pacificação, a
anistia reduz o custo de futuras aventuras autoritárias. Pior: sinaliza que a
democracia é negociável, quando, na verdade, deve ser o único jogo possível.
Pacificação não nasce da impunidade, mas da
confiança de que conflitos – que sempre existirão – serão resolvidos dentro das
regras do jogo democrático. É assim que a democracia se consolida: quando até
os derrotados reconhecem que a única saída é tentar de novo, pelas urnas, sob
as mesmas instituições que os derrotaram.
Anistiar ou reduzir penas de quem atentou
contra a democracia não é pacificar. É corroer as bases do regime democrático.
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