Folha de S. Paulo
Esperar que regime corrija grandes problemas
do país é exigir demais de um instrumento
O que quer dizer democracia? A resposta vai
variar conforme o gosto do freguês, e o livro "A
Palavra e o Poder" (Civilização Brasileira) traz um rico painel desse
debate no contexto brasileiro ao longo dos 40 anos
da Nova República.
Ao pé da letra grega, democracia é o poder do
povo. É mais simples entendê-la no experimento ateniense da Antiguidade, pelo
qual os cidadãos se juntavam na praça para deliberar, ao peso de um voto por
cabeça, sobre temas da coletividade.
No seu mínimo denominador comum, a democracia
é meio de satisfazer o apetite humano pelo poder sem recurso à violência. Nesse
sistema, ninguém precisa decapitar o rei ou derrotar a milícia inimiga para
tornar-se governante. Basta vencer as eleições. Simples de formular, difícil de
implementar.
Há um componente da realidade que complica essa equação. As pessoas podem ser consideradas iguais diante da lei, mas elas não se sentem nem se comportam como se fossem iguais. Uma teia de relações de parentesco, de hierarquia e de posicionamento econômico desafia o ideal normativo.
Não foi à toa que as reformas de Clístenes,
que precederam e viabilizaram as décadas de ouro da democracia de Atenas,
atacaram a raiz sociológica do dilema político. A dominância do clã, das
afinidades familiares, foi substituída pela do território. Tribalismo convive
mal com democracia.
A República romana, que não foi uma
democracia, ilumina outro aspecto do problema. O modelo não tenta corrigir
desigualdades de origem. Ele as pressupõe, traduz e formaliza. SPQR, a sigla
que ainda se vê gravada nas tampas de galeria da capital italiana, denota a
associação entre oligarcas (os senadores) e comuns (a plebe) num sistema tenso
de comandos e vetos. As democracias modernas também desenvolveram os seus
mecanismos para conformar e equilibrar o embate entre as forças tradicionais e
as plebiscitárias.
E como lidar com o perigo dos trapaceiros? Um
sistema baseado em regras universais de entrada e saída do governo precisa se
precaver contra quem não quer brincar assim. Em Atenas o risco da tirania era
combatido com o ostracismo, que implicava o banimento da comunidade política de
indivíduos suspeitos de tramarem a subversão da ordem. Alguém pensou em
julgamentos em marcha no Supremo
Tribunal Federal brasileiro?
Em Roma, a instituição restauradora se
chamava ditadura. Por período definido, permitia-se que poderes absolutos
fossem conferidos a um líder incumbido de debelar as ameaças ao regime e
devolvê-lo ao curso normal. Dentro do propósito benéfico do instituto clássico,
dá para discutir o inchaço circunstancial, frise-se o circunstancial, de
prerrogativas de juízes brasileiros diante de assédios à democracia.
Formalmente, o espírito da ditadura romana permanece em mecanismos
constitucionais como os estados de sítio e de defesa das democracias
contemporâneas.
Avaliada sob essa ótica minimalista, o ciclo
da democracia brasileira que se iniciou em 1985 tem sido um grande sucesso.
Dezenas de milhares de eleições foram realizadas no período nos níveis
municipal, estadual e federal, e seus resultados, religiosamente obedecidos. Os
eleitos para cargos executivos não receberam cheque em branco para fazer o que
bem entendessem. Quem abusou, segundo o julgamento de magistrados ou corpos
legislativos, foi legalmente deposto.
Quem urdiu a ruptura autoritária foi
bloqueado em plena tentativa de virar a mesa e depois punido pelo sistema
judicial.
É claro que se frustraram expectativas
grandiosas sobre o que a democracia brasileira deveria propiciar em termos
substantivos —um país mais próspero, mais justo e solidário. Mas talvez seja
exigir demais desse belíssimo instrumento que a humanidade desenvolveu, mas que
não passa disso, um instrumento. Os resultados dependem de quem o manuseia, e o
diabo é que na democracia não temos ninguém em quem pôr a culpa pelas nossas
mazelas senão em nós mesmos.

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