domingo, 26 de outubro de 2025

Democracia no Brasil é um grande sucesso, por Vinicius Mota

Folha de S. Paulo

Esperar que regime corrija grandes problemas do país é exigir demais de um instrumento

O que quer dizer democracia? A resposta vai variar conforme o gosto do freguês, e o livro "A Palavra e o Poder" (Civilização Brasileira) traz um rico painel desse debate no contexto brasileiro ao longo dos 40 anos da Nova República.

Ao pé da letra grega, democracia é o poder do povo. É mais simples entendê-la no experimento ateniense da Antiguidade, pelo qual os cidadãos se juntavam na praça para deliberar, ao peso de um voto por cabeça, sobre temas da coletividade.

No seu mínimo denominador comum, a democracia é meio de satisfazer o apetite humano pelo poder sem recurso à violência. Nesse sistema, ninguém precisa decapitar o rei ou derrotar a milícia inimiga para tornar-se governante. Basta vencer as eleições. Simples de formular, difícil de implementar.

Há um componente da realidade que complica essa equação. As pessoas podem ser consideradas iguais diante da lei, mas elas não se sentem nem se comportam como se fossem iguais. Uma teia de relações de parentesco, de hierarquia e de posicionamento econômico desafia o ideal normativo.

Não foi à toa que as reformas de Clístenes, que precederam e viabilizaram as décadas de ouro da democracia de Atenas, atacaram a raiz sociológica do dilema político. A dominância do clã, das afinidades familiares, foi substituída pela do território. Tribalismo convive mal com democracia.

A República romana, que não foi uma democracia, ilumina outro aspecto do problema. O modelo não tenta corrigir desigualdades de origem. Ele as pressupõe, traduz e formaliza. SPQR, a sigla que ainda se vê gravada nas tampas de galeria da capital italiana, denota a associação entre oligarcas (os senadores) e comuns (a plebe) num sistema tenso de comandos e vetos. As democracias modernas também desenvolveram os seus mecanismos para conformar e equilibrar o embate entre as forças tradicionais e as plebiscitárias.

E como lidar com o perigo dos trapaceiros? Um sistema baseado em regras universais de entrada e saída do governo precisa se precaver contra quem não quer brincar assim. Em Atenas o risco da tirania era combatido com o ostracismo, que implicava o banimento da comunidade política de indivíduos suspeitos de tramarem a subversão da ordem. Alguém pensou em julgamentos em marcha no Supremo Tribunal Federal brasileiro?

Em Roma, a instituição restauradora se chamava ditadura. Por período definido, permitia-se que poderes absolutos fossem conferidos a um líder incumbido de debelar as ameaças ao regime e devolvê-lo ao curso normal. Dentro do propósito benéfico do instituto clássico, dá para discutir o inchaço circunstancial, frise-se o circunstancial, de prerrogativas de juízes brasileiros diante de assédios à democracia. Formalmente, o espírito da ditadura romana permanece em mecanismos constitucionais como os estados de sítio e de defesa das democracias contemporâneas.

Avaliada sob essa ótica minimalista, o ciclo da democracia brasileira que se iniciou em 1985 tem sido um grande sucesso. Dezenas de milhares de eleições foram realizadas no período nos níveis municipal, estadual e federal, e seus resultados, religiosamente obedecidos. Os eleitos para cargos executivos não receberam cheque em branco para fazer o que bem entendessem. Quem abusou, segundo o julgamento de magistrados ou corpos legislativos, foi legalmente deposto.

Quem urdiu a ruptura autoritária foi bloqueado em plena tentativa de virar a mesa e depois punido pelo sistema judicial.

É claro que se frustraram expectativas grandiosas sobre o que a democracia brasileira deveria propiciar em termos substantivos —um país mais próspero, mais justo e solidário. Mas talvez seja exigir demais desse belíssimo instrumento que a humanidade desenvolveu, mas que não passa disso, um instrumento. Os resultados dependem de quem o manuseia, e o diabo é que na democracia não temos ninguém em quem pôr a culpa pelas nossas mazelas senão em nós mesmos.

 

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