O Estado de S. Paulo
Num quadro de polarização política, a disputa
eleitoral do próximo ano poderá ser mais dura e mais custosa, do que talvez se
calcule neste momento
O mundo terá de recuar milênios, voltando
talvez à fase inicial do comércio entre gregos e fenícios, para ficar ao gosto
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Guiado em assuntos internacionais por
ideias singularíssimas, ele consegue misturar no mesmo discurso a defesa do
multilateralismo e a pregação do comércio com moedas emitidas pelos parceiros –
ou até sem moedas, como se fazia na aurora da civilização mediterrânea. Essa
arenga foi retomada em Jacarta, em cerimônia com o presidente indonésio Prabowo
Subianto, na reunião de líderes da Associação de Nações do Sudeste Asiático
(Asean).
Com o fortalecimento da União Europeia e com a crescente importância comercial da China, talvez o sistema de pagamentos evolua para novas formas de operação e para a consolidação de novas moedas de uso global. Mas essas transformações, normalmente complexas, podem ser lentas, envolvem a combinação de interesses variados e muito dificilmente – talvez nunca – se resolverão no interior de grupos como o Brics.
Diverso e formado por países com interesses
nem sempre convergentes, o Brics, inicialmente Bric, nasceu como sigla
inventada em 2001 pelo economista britânico Jim O’Neill, do Goldman Sachs, para
indicar quatro países com grande potencial de crescimento – Brasil, Rússia,
Índia e China. O ministro brasileiro Guido Mantega decidiu levar a sério a
ideia de um grupo. Os governos dos três outros países simplesmente aceitaram a
iniciativa e também concordaram, mais tarde, com a admissão de um quinto
participante, a África do Sul. Do nome inglês South Africa veio a letra “s” no
final da sigla.
O grupo cresceu, com a adesão de vários
países convidados, incluídas nações árabes produtoras de petróleo, e seu
associado mais influente é obviamente a China, embora o mais barulhento seja o
Brasil. O conjunto pouco tem feito para tornar a ordem global mais cooperativa
e mais equitativa. Tem servido principalmente como palanque antiamericano e
como afirmação de um poder paralelo ao do capitalismo tradicional, aquele
representado principalmente por Estados Unidos, Europa Ocidental e, de modo
mais discreto, pelo Japão. O velho capitalismo continua poderoso, seus padrões
comerciais se mantêm predominantes e acumular dólares é ainda um objetivo
normal na maior parte do mundo avançado, emergente e em desenvolvimento.
Qualquer viajante pode, é claro, desembarcar
na Europa com reais, pesos argentinos ou rúpias indonésias, mas só poderá
circular, consumir ou investir depois de converter seu dinheiro na moeda local,
aceitando uma taxa de câmbio talvez pouco atraente. A mesma limitação ocorrerá
se for utilizado um cartão de crédito. Essa restrição dificilmente será
eliminada por meio de protestos contra os padrões monetários dominantes.
Além do mais, nem no Brasil a oposição do
presidente Lula ao predomínio da moeda americana tem produzido efeitos. Com
resultados positivos no intercâmbio internacional, o País detinha no início de
outubro reservas avaliadas em US$ 357 bilhões. No mês anterior, correspondiam a
US$ 350,8 bilhões. Neste século, o País tem mantido um razoável padrão de
segurança cambial, com benefícios dificilmente avaliáveis por quem nunca viveu
tempos de crise nas contas externas. Crises desse tipo ainda têm ocorrido, de
forma recorrente, na economia argentina, embora o país seja importante
exportador de matérias-primas e ocupe uma posição destacada no mercado
internacional da carne.
O presidente Lula enfrentou a fase final de
uma crise desse tipo em seu primeiro mandato. Conseguiu superála sem
dificuldades muito grandes porque havia herdado uma situação fiscal e monetária
razoável, muito diferente das condições vividas no Brasil nos anos 1980 e em
parte da década seguinte.
Na primeira metade do atual mandato, foi
mantido um quadro fiscal favorável, graças à gestão prudente das finanças
públicas. As contas do poder federal pioraram recentemente, mas o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, tem procurado evitar uma evolução desastrosa nos
próximos anos. O interesse do presidente Lula nas eleições programadas para
2026 tem complicado a ação preventiva do ministro.
A tentação da gastança e das bondades fiscais
tende a crescer quando se aproximam eleições. Como o presidente Lula anunciou a
intenção de concorrer mais uma vez no próximo ano, parece razoável – sem
antecipar um julgamento – dar atenção especial, a partir de agora, ao
tratamento das contas públicas. A prudência do ministro Haddad pode ser
insuficiente para os cuidados fiscais, se a competição eleitoral afetar a
condução do governo e prejudicar a gestão financeira. Vale a pena, também, dar
atenção às possíveis tentativas partidárias de influenciar as ações do poder
federal.
Num quadro de polarização política, a disputa
eleitoral do próximo ano poderá ser mais dura e mais custosa, do que talvez se
calcule neste momento. Quem já está no poder, no entanto, parte normalmente de
uma situação vantajosa. Isso pode tornar menos necessária uma gastança
especial.

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