O Estado de S. Paulo
Neste governo Trump está de volta o mau presságio, ou a realidade já em curso, da autocratização política e do acirramento das tensões sociais
Comecemos com uma curiosidade de duas ou três décadas atrás. Um respeitado historiador das coisas do comunismo, perguntado sobre a queda do Muro de Berlim, a implosão do edifício soviético e os naturais efeitos sobre sua disciplina, reconheceu sentir-se bastante deslocado no novo contexto. É que, sem poder negar o longo período de estudos e os muitos livros lidos e escritos, percebia ter passado subitamente da condição de historiador do presente para a de arqueólogo. Daí por diante, seus temas de eleição soariam esotéricos. O que teriam a dizer aos contemporâneos as escolhas dos antigos partidos comunistas – seja no poder, seja na oposição –, seus momentos de ascensão e declínio, suas incessantes idas e vindas diante da “questão democrática”?
Tudo isso, em tese, poderia inserir-se entre
as discussões fora de moda, atropeladas pelas novas agendas, como a
globalização, a unificação dos espaços econômicos, a emergência de uma
sociedade civil mundial permeada por valores liberais. Era então difícil ou
impossível prever que pouco mais adiante, numa estranha dobra do tempo, o
quadro viraria de ponta-cabeça. Uma crise generalizada de legitimidade nas
“democracias burguesas”, a começar pela mais vistosa delas – a norte-americana
–, iria repor, evidentemente sob roupagem nova, dramas e dilemas com a
aparência de já vividos e, ao menos em parte, solucionados.
Um rápido exame das discussões neste segundo
governo Trump mostra que está de volta o mau presságio, ou a realidade já em
curso, da autocratização política e do acirramento das tensões sociais. A nação
divide-se em metades inconciliáveis, o decantado mecanismo de freios e
contrapesos parece derreter, o Executivo concentra poderes e cerceia liberdades
tidas como inexpugnáveis. “Fascismo!” – diagnosticam alguns, ressuscitando a
palavra terrível dos anos 1930. E não faltaria sequer o traço de mobilização
autoritária de massas, típico daquela tirania, só que nas novas condições de
uma sociedade simultaneamente atomizada e reunida pelas redes sociais.
O desconsolado historiador a que antes nos
referimos talvez reencontrasse aqui espaço para intervenções com uso prático.
Lembraria que a presente onda autocrática, capitaneada por uma direita de novo
tipo, golpeia por igual tanto progressistas quanto liberais-democratas e até
conservadores, incomodados, estes últimos, com o lado “revolucionário” e
puramente destrutivo do programa do populismo radical à moda Trump e
congêneres. Não aceitaria a repetição preguiçosa do rótulo “fascista”, mas
perceberia o sinal de traços semelhantes nas duas épocas, a nossa e a
transcorrida há cem anos.
Em ambas, por exemplo, a dissolução de
classes em massas de indivíduos propensos a seguirem cegamente o chefe
autoritário, porto supostamente seguro numa era de sujeitos solitários e
intensas mudanças. O diagnóstico, feito a seu tempo, entre outros, por Hannah
Arendt, tem a virtude adicional de apontar que tais processos não são atributo
exclusivo da direita radicalizada. Se fossem, aliás, não teríamos a ditadura
stalinista e as estruturas totais de partidoEstado que os desavisados
entenderam, e alguns ainda entendem, como formas superiores de ordem política.
Os velhos comunistas – diria também o
historiador-arqueólogo repentinamente loquaz e certo de ter redescoberto um
“lugar de fala” – construíram realidades potentes e eficazes, como as chamadas
frentes populares. Não por acaso, o termo também saiu dos dicionários e
adquiriu vida nova, como na França e em outras partes. A exemplo da encarnação
anterior, oscila por vezes incoerentemente entre uma versão democrática e outra
esquerdista. A primeira é intrinsecamente plural, abraçando a ideia de
hegemonia como encontro e confronto entre forças diferentes e abertas umas às
outras. A segunda, encerrada num círculo constituído de forças basicamente
iguais, tem vocação hegemonista, operando “para fora” com uma tática desleal de
cooptação e decapitação.
Que não se trata só de fórmulas caducas, que
conviria aposentar de vez, está demonstrado pelo fato de que as duas versões
continuam a sustentar modalidades bem diferentes de esquerda, uma democrática,
outra autoritária. Como numa encruzilhada, um dos caminhos sugere a
incorporação plena das regras do jogo e das obrigações de quem percebe um
terreno comum aos democratas de todas as orientações. Fora deste terreno, o
mais provável é a destruição recíproca das forças em luta, para retomar o
espírito de uma frase marxiana bem conhecida.
O outro caminho, radical na aparência, tem
aspectos paradoxais. Na sua impaciência revolucionária, comete o erro fatal de
dividir a sociedade em blocos antagônicos – “classe contra classe”, para lançar
mão de outra expressão também de larga divulgação. Esquerda e direita duelariam
à maneira do bem contra o mal, o que, entre outros resultados, não só paralisa
a mudança social, como também replica e reforça a estratégia de polarização
patológica, incessantemente produzida pelo nacionalismo populista que agora
parece vir de todos os lados.

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