quinta-feira, 6 de novembro de 2025

BC não pode atuar a reboque do mercado, por Maria Clara R. M. do Prado

Valor Econômico

Há uma concorrência surda e desleal entre o setor produtivo e o sistema financeiro, principal parceiro do déficit do setor público

A decisão do Comitê de Política Monetária, colegiado do Banco Central, de manter a economia em estado de contração tem suscitado queixas por parte de grandes e pequenos empresários em posição diametralmente oposta à do chamado “mercado financeiro”. São realidades diferentes, enquanto a primeira é obrigada a incorrer em custos maiores quanto mais alta for a taxa de juros, bancos e fundos de investimento são favorecidos pela enxurrada de recursos em seus portfolios, atraída pelo rendimento dos juros elevados.

Há uma concorrência surda e, via de regra, desleal entre o setor produtivo do país e o sistema financeiro, principal parceiro do déficit do setor público. O maior endividamento do governo amplia a necessidade de atrair dinheiro para financiar os gastos públicos. Com isso, a Selic - taxa pela qual transitam os títulos públicos nas operações de compra e venda entre os bancos e o Banco Central na regulação da liquidez do sistema - tornou-se o principal referencial do custo de oportunidade da alocação do dinheiro na economia brasileira.

Meta de inflação de 3% é irreal e não será atingida enquanto perdurar a indexação e a rigidez dos preços administrados

A estreita relação do sistema financeiro com o desajuste fiscal do setor público e sua imbricação com a política monetária via taxa Selic criou uma situação inusitada que ajuda a alimentar a retórica em defesa do juro alto. Uma retórica, aliás, propagada com o pretexto de se atingir uma meta irrealista de 3% de inflação em doze meses - medida pelo IPCA -, dificilmente alcançável enquanto perdurar o efeito da indexação e a rigidez dos preços administrados em uma economia entupida de gargalos.

Tudo acontece sob o beneplácito do BC, seja por conformismo com a realidade, por covardia em enfrentar o poder do chamado mercado ou mesmo por incompetência em se adaptar aos tempos em que as incertezas predominam, comprometendo a ancoragem das expectativas com a inflação de longo prazo, condição fundamental para alcançar a meta da inflação. Esse regime, predominante na política dos BCs a partir dos anos 90, requer da autoridade monetária uma atenção cuidadosa a todas as variáveis que direta ou indiretamente comprometam o comportamento da inflação no médio e longo prazo, para mais ou para menos.

Não basta se fiar nas informações prestadas pelas instituições no boletim Focus. Este contém as previsões do sistema financeiro para o comportamento de umas poucas variáveis, insuficientes para guiar o Banco Central na missão de ancorar as expectativas com vistas a manter a inflação sob controle. O boletim Focus não ancora nada. Deve, sim, ser ancorado nas avaliações dos fundamentos econômicos sinalizadas pelo BC.

A negligência da sobriedade nas relações entre a autoridade monetária e o sistema financeiro pode ser percebida também no debate em torno da taxa de juro real neutra, um indicador imaginário, arbitrado pelo BC, com a intenção de apontar um determinado nível de juro que, confrontado com a estimativa de crescimento do produto potencial, resulte em neutralidade. Ou seja, não contribua para expandir nem arrefecer a economia. Essa taxa neutra, não observável, foi estimada em 5% ao ano pelo BC em dezembro passado.

No mercado, alguns analistas têm palpitado níveis em torno de 5,5% ou 5,8% para a tal taxa real neutra. Há até quem fale em 8% ao ano. Uma taxa real neutra a esse nível garantiria juros nominais na estratosfera! O assunto, no entanto, é demasiadamente sério para ser tratado com displicência, como se fosse arroz de festa. Concebida pelo economista sueco Knut Wicksell, em 1898, a taxa natural de juros colocaria os preços de uma economia em equilíbrio. A ideia foi resgatada pela necessidade de ancorar as expectativas no regime de meta de inflação.

O economista Alan Blinder, antigo vice-presidente do Fed - o banco central dos Estados Unidos - e professor da Universidade de Princeton, aprofundou a noção e deu consistência teórica ao juro neutro no contexto dos parâmetros da atual política monetária. Blinder dá uma verdadeira aula sobre o assunto em um dos ensaios do livro “Bancos Centrais: Teoria e Prática”, publicado pela Editora 34, em 1999.

As questões de caráter, digamos, operativo, são inúmeras. Desembocam no dilema confrontado pelos BCs, conforme enunciado por Jerome Powell, presidente do Fed, em um de seus discursos no encontro anual de Jackson Hole, promovido pelo Fed de Kansas City: “Mover-se muito rápido e reduzir desnecessariamente o crescimento ou mover-se muito lentamente e arriscar um super aquecimento desestabilizador”.

Mas existem aspectos conceituais a considerar. Grosso modo, a expansão do consumo provocada pelo aumento do emprego, maior renda e pelo financiamento a custo baixo tende a gerar inflação quando a oferta está estável ou em queda. Os BCs usam a taxa de juros para reduzir o consumo e a pressão sobre o produto.

Ocorre que o juro alto também pode estimular o consumo. Trata-se do chamado efeito riqueza. Uma taxa de 15% ao ano estimula as aplicações em ativos financeiros, principalmente de renda fixa. A ilusão de enriquecimento pode induzir os investidores a gastar os rendimentos em consumo. Seria o caso do cachorro correndo atrás do próprio rabo: a imposição de juro alto para conter o consumo acaba por estimular o consumo através da rentabilidade das aplicações financeiras. Não se conhecem estudos que meçam efetivamente aquela relação no Brasil.

Não deixa de ser, no entanto, sintomático o dado da B3 divulgado em agosto, indicando que entre o segundo trimestre de 2024 e o segundo trimestre deste ano a quantidade de investidores, por CPF, em aplicações de renda fixa cresceu 20%. Chegou a 100,2 milhões de pessoas. Ou seja, em fins de junho de 2025, quase a metade da população estava aplicada em papéis de renda fixa, cujo rendimento está atrelado à variação da Selic, incluindo ali as contas remuneradas mantidas na rede bancária.

A orquestração que privilegia juros elevados, largamente reverberada na mídia, em redutos da academia e por consultores independentes, estimula uma correlação com aquele antigo slogan da propaganda do biscoito: juro alto atrai mais porque é eficaz ou é eficaz porque atrai mais?

 

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