Valor Econômico
Há uma concorrência surda e desleal entre o setor produtivo e o sistema financeiro, principal parceiro do déficit do setor público
A decisão do Comitê de Política Monetária,
colegiado do Banco Central, de manter a economia em estado de contração tem
suscitado queixas por parte de grandes e pequenos empresários em posição
diametralmente oposta à do chamado “mercado financeiro”. São realidades
diferentes, enquanto a primeira é obrigada a incorrer em custos maiores quanto
mais alta for a taxa de juros, bancos e fundos de investimento são favorecidos
pela enxurrada de recursos em seus portfolios, atraída pelo rendimento dos
juros elevados.
Há uma concorrência surda e, via de regra, desleal entre o setor produtivo do país e o sistema financeiro, principal parceiro do déficit do setor público. O maior endividamento do governo amplia a necessidade de atrair dinheiro para financiar os gastos públicos. Com isso, a Selic - taxa pela qual transitam os títulos públicos nas operações de compra e venda entre os bancos e o Banco Central na regulação da liquidez do sistema - tornou-se o principal referencial do custo de oportunidade da alocação do dinheiro na economia brasileira.
Meta de inflação de 3% é irreal e não será
atingida enquanto perdurar a indexação e a rigidez dos preços administrados
A estreita relação do sistema financeiro com
o desajuste fiscal do setor público e sua imbricação com a política monetária
via taxa Selic criou uma situação inusitada que ajuda a alimentar a retórica em
defesa do juro alto. Uma retórica, aliás, propagada com o pretexto de se
atingir uma meta irrealista de 3% de inflação em doze meses - medida pelo IPCA
-, dificilmente alcançável enquanto perdurar o efeito da indexação e a rigidez
dos preços administrados em uma economia entupida de gargalos.
Tudo acontece sob o beneplácito do BC, seja
por conformismo com a realidade, por covardia em enfrentar o poder do chamado
mercado ou mesmo por incompetência em se adaptar aos tempos em que as
incertezas predominam, comprometendo a ancoragem das expectativas com a
inflação de longo prazo, condição fundamental para alcançar a meta da inflação.
Esse regime, predominante na política dos BCs a partir dos anos 90, requer da
autoridade monetária uma atenção cuidadosa a todas as variáveis que direta ou
indiretamente comprometam o comportamento da inflação no médio e longo prazo,
para mais ou para menos.
Não basta se fiar nas informações prestadas
pelas instituições no boletim Focus. Este contém as previsões do sistema
financeiro para o comportamento de umas poucas variáveis, insuficientes para
guiar o Banco Central na missão de ancorar as expectativas com vistas a manter
a inflação sob controle. O boletim Focus não ancora nada. Deve, sim, ser
ancorado nas avaliações dos fundamentos econômicos sinalizadas pelo BC.
A negligência da sobriedade nas relações
entre a autoridade monetária e o sistema financeiro pode ser percebida também
no debate em torno da taxa de juro real neutra, um indicador imaginário,
arbitrado pelo BC, com a intenção de apontar um determinado nível de juro que,
confrontado com a estimativa de crescimento do produto potencial, resulte em
neutralidade. Ou seja, não contribua para expandir nem arrefecer a economia.
Essa taxa neutra, não observável, foi estimada em 5% ao ano pelo BC em dezembro
passado.
No mercado, alguns analistas têm palpitado
níveis em torno de 5,5% ou 5,8% para a tal taxa real neutra. Há até quem fale
em 8% ao ano. Uma taxa real neutra a esse nível garantiria juros nominais na
estratosfera! O assunto, no entanto, é demasiadamente sério para ser tratado
com displicência, como se fosse arroz de festa. Concebida pelo economista sueco
Knut Wicksell, em 1898, a taxa natural de juros colocaria os preços de uma
economia em equilíbrio. A ideia foi resgatada pela necessidade de ancorar as
expectativas no regime de meta de inflação.
O economista Alan Blinder, antigo
vice-presidente do Fed - o banco central dos Estados Unidos - e professor da
Universidade de Princeton, aprofundou a noção e deu consistência teórica ao
juro neutro no contexto dos parâmetros da atual política monetária. Blinder dá
uma verdadeira aula sobre o assunto em um dos ensaios do livro “Bancos Centrais:
Teoria e Prática”, publicado pela Editora 34, em 1999.
As questões de caráter, digamos, operativo,
são inúmeras. Desembocam no dilema confrontado pelos BCs, conforme enunciado
por Jerome Powell, presidente do Fed, em um de seus discursos no encontro anual
de Jackson Hole, promovido pelo Fed de Kansas City: “Mover-se muito rápido e
reduzir desnecessariamente o crescimento ou mover-se muito lentamente e
arriscar um super aquecimento desestabilizador”.
Mas existem aspectos conceituais a
considerar. Grosso modo, a expansão do consumo provocada pelo aumento do
emprego, maior renda e pelo financiamento a custo baixo tende a gerar inflação
quando a oferta está estável ou em queda. Os BCs usam a taxa de juros para
reduzir o consumo e a pressão sobre o produto.
Ocorre que o juro alto também pode estimular
o consumo. Trata-se do chamado efeito riqueza. Uma taxa de 15% ao ano estimula
as aplicações em ativos financeiros, principalmente de renda fixa. A ilusão de
enriquecimento pode induzir os investidores a gastar os rendimentos em consumo.
Seria o caso do cachorro correndo atrás do próprio rabo: a imposição de juro
alto para conter o consumo acaba por estimular o consumo através da
rentabilidade das aplicações financeiras. Não se conhecem estudos que meçam
efetivamente aquela relação no Brasil.
Não deixa de ser, no entanto, sintomático o
dado da B3 divulgado em agosto, indicando que entre o segundo trimestre de 2024
e o segundo trimestre deste ano a quantidade de investidores, por CPF, em
aplicações de renda fixa cresceu 20%. Chegou a 100,2 milhões de pessoas. Ou
seja, em fins de junho de 2025, quase a metade da população estava aplicada em
papéis de renda fixa, cujo rendimento está atrelado à variação da Selic,
incluindo ali as contas remuneradas mantidas na rede bancária.
A orquestração que privilegia juros elevados,
largamente reverberada na mídia, em redutos da academia e por consultores
independentes, estimula uma correlação com aquele antigo slogan da propaganda
do biscoito: juro alto atrai mais porque é eficaz ou é eficaz porque atrai
mais?

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