O Globo
Áudios das sessões do tribunal funcionam como
excelente vacina contra o negacionismo histórico
No final de outubro, numa sessão do Superior
Tribunal Militar (STM), o ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira,
tenente-brigadeiro do ar, achou por bem passar uma descompostura pública na
presidente da Corte, Maria Elizabeth Rocha, sem a presença dela e na frente dos
seus pares, a maioria homens. Amaral estava incomodado com um discurso feito
pela ministra dias antes, em que ela se desculpou por “equívocos judiciários
cometidos pela Justiça Militar Federal em detrimento da democracia e favoráveis
ao regime autoritário”. Amaral sugeriu à ministra, doutora em Direito
Constitucional e a primeira mulher a integrar e presidir a Corte mais antiga do
país, de 1808, “estudar um pouco mais a história do tribunal”.
No dia 25 de outubro, a presidente do STM havia feito um discurso, em São Paulo, num evento inter-religioso em memória aos 50 anos do assassinato de Vladimir Herzog. “Na qualidade de presidente da Justiça Militar da União”, pediu perdão “a todos os que tombaram e sofreram lutando pela liberdade”. Foi uma manifestação curta e corajosa, feita por uma representante do Estado brasileiro e em consonância com o Estado brasileiro, que, em diferentes momentos desde 1978, reconheceu o assassinato de Herzog por agentes públicos.
A ministra reagiu ao colega que a mandou
estudar e o acusou de misoginia.
— A senhora pode achar o que quiser, eu
realmente não ligo muito — rebateu Amaral numa tréplica, em sessão desta
semana. — A senhora está pedindo em meu nome, e eu não lhe dou essa delegação —
afirmou sobre o perdão.
Amaral foi o relator no julgamento dos
militares que dispararam mais de 250 tiros que mataram um músico e um catador
de papel no Rio em 2019. Na contramão da perícia, pediu a absolvição.
A história do tribunal está à disposição da
sociedade, em áudios das sessões, a partir de meados dos anos 1970. Funcionam
como excelente vacina contra o negacionismo histórico. O historiador Carlos
Fico, um dos maiores conhecedores do período autoritário brasileiro, se dedicou
a ouvir as gravações e fala justamente da conivência do STM com a ditadura.
Portanto a ministra só falou o que já está registrado nos anais da História.
Talvez seja o colega quem deva revisitá-los.
Está lá a eleição para presidência da Corte
em 1979, quando o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, o mais antigo, deveria
ter sido eleito. Mas sua eleição foi atropelada pelos pares em retaliação a
posições, como os 33 votos em defesa de quem acusava tortura na prisão. Os
áudios mostram ainda o temor causado por um pedido de abertura de inquérito
para apurar a morte do dirigente comunista Mário Alves de Souza Vieira após
tortura, feito pela viúva. Os ministros temeram “escândalo” e disseram que a
abertura daquele inquérito poderia levar a outras investigações, “a exemplo do
caso Herzog”.
No ano que vem, o STM, composto por cinco
ministros civis e dez militares, julgará condenados por tentativa de golpe,
como Bolsonaro e Braga Netto. O placar tende a ser apertado, como foi a eleição
de Rocha neste ano. Será um bom momento para deixar registrado, em mais uma
leva de áudios, quem é quem na história do STM.

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