quinta-feira, 6 de novembro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Vitória nos EUA expõe dilemas dos democratas

Por O Globo

Seria uma lástima se, para derrotar o populismo de direita, os americanos abraçassem o populismo de esquerda

A vitória democrata nas eleições de terça-feira nos Estados Unidos foi inquestionável. Duas governadoras foram eleitas — a ex-piloto de helicóptero da Marinha Mikie Sherrill, em Nova Jersey, e a ex-agente da CIA Abigail Spanberger, que será a primeira mulher a governar a Virgínia. A maior cidade do país, Nova York, elegeu o primeiro prefeito muçulmano e o mais jovem em sua História, Zohran Mamdani, representante da ala radical dos autointitulados “socialistas democráticos”. E, na Califórnia, o governador Gavin Newsom conseguiu aprovar seu plano de redivisão distrital cujo objetivo é render mais cinco cadeiras ao Partido Democrata na Câmara.

O resultado reflete a insatisfação crescente do eleitor americano com o governo Donald Trump e representa o ressurgimento dos democratas nas urnas. Embora as regiões onde houve votação não sejam conhecidas exatamente como redutos trumpistas, as vitórias democratas alcançaram margens expressivas. Mais que isso, porém, elas expõem os dilemas do partido. Nada os simboliza melhor que a ascensão fulminante de Mamdani — ele pontuava mero 1% nas pesquisas de fevereiro.

Mamdani venceu graças ao desempenho notável nas redes sociais e ao resgate de uma plataforma voltada a interesses de ordem prática do eleitor. Seu discurso é repleto de demagogia e de políticas comprovadamente ineficazes, como passe livre no transporte, congelamento de aluguéis e até supermercados estatais com produtos mais baratos. No passado, ele chegou a defender cortar verbas de policiamento, embora tenha recuado da pretensão. Foi tachado de antissemita em virtude de seu antissionismo vocal — na segunda cidade com mais judeus no mundo, recusou-se reiteradas vezes a reconhecer Israel como Estado judaico.

Mamdani é a expressão da esquerda mais radical do Partido Democrata, que tem sido derrotada nas primárias presidenciais com Bernie Sanders. Sua ascensão ao poder na maior metrópole do país é vista por essa ala como caminho para derrotar o trumpismo e recuperar o poder também em Washington. Mas é inevitável que sua agenda de promessas inexequíveis esbarre na realidade. A mais evidente: o que agrada ao eleitor nova-iorquino — mais cosmopolita, mais educado e mais rico que a média nacional — não necessariamente funciona no resto do país.

É o que mostra a eleição de Spanberger e Sherrill. Ambas têm perfil centrista, alinhado com a tradição partidária. Ambas venceram em estados onde, apesar da inclinação democrata, o avanço republicano fora notável na eleição de 2024. E ambas derrotaram os adversários com ataques frontais a Trump. Em contraste com o radicalismo de Mamdani, oferecem um caminho próximo do americano médio.

Quanto ao californiano Newsom, ele não esconde suas pretensões presidenciais. Em reação a legislação similar aprovada pelos republicanos no Texas, obteve êxito no redesenho das fronteiras entre distritos no estado já predominantemente democrata. A medida, de óbvio interesse eleitoreiro, terá impacto no cenário nacional e decerto despertará reação republicana. Num ambiente polarizado, em que todos querem a vitória a qualquer preço, seria uma lástima se as propostas radicais ganhassem espaço e se, para escapar do populismo de direita de Trump, os americanos se vissem obrigados a abraçar o populismo de esquerda defendido por Mamdani e sua turma.

Licença-paternidade é avanço, mas é preciso mitigar seu impacto fiscal

Por O Globo

Brasil é pródigo em programas sociais sem fonte de recursos. Senado deve analisar questão sem paixões

Câmara dos Deputados aprovou sem dificuldades na terça-feira o Projeto de Lei que estende a licença-paternidade gradualmente, dos atuais cinco dias para 20 dias, com direito a salário integral e estabilidade. Não surpreende que a proposta tenha sido abraçada por representantes das mais diferentes tendências políticas, já que amplia benefícios sociais e fortalece os laços familiares desde a primeira infância. Faltou só combinar com o INSS, onde mais essa conta inevitavelmente acabará.

Pelo projeto original, a licença-paternidade seria de 60 dias, período claramente fora da realidade do país. Em nova versão, o relator, deputado Pedro Campos (PSB-PE), estabeleceu 30 dias vigorando de forma escalonada a partir de 2027. Nas negociações de última hora, o prazo caiu para 20 dias. Pelo texto aprovado, serão dez dias do primeiro ao segundo ano de vigência da lei, 15 dias do segundo ao terceiro e 20 dias a partir do quarto. O salário-paternidade será custeado pelo INSS. Mesmo com os ajustes, o impacto na Previdência não será desprezível. A estimativa é de R$ 5,4 bilhões até 2030.

É verdade que o Congresso está atrasado na regulamentação da licença-paternidade. A Constituição de 1988 concedeu cinco dias com base num dispositivo transitório, determinando que a matéria fosse regulamentada. Passaram décadas, e os parlamentares não se mexeram. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu prazo para que agissem, sob pena de a própria Corte tomar uma decisão. O prazo expirou em julho deste ano.

São inegáveis os efeitos da licença-paternidade para aumentar o vínculo entre pais e filhos recém-nascidos e dividir responsabilidades com as mães. É certo também que a medida produz impactos positivos no mercado de trabalho, contribuindo para reduzir a desigualdade de gênero. Não é segredo que a licença-maternidade pode se tornar empecilho para contratar mulheres em idade fértil, e um benefício similar para os pais ajuda a equilibrar a situação, ainda que parcialmente.

A licença para pais é concedida em diferentes países, embora o tempo e a proporção do salário variem. Na França, eles têm direito a até 30,2 semanas de licença, 4,2 com pagamento integral e o restante com remuneração reduzida. Na Itália, são duas semanas com salário integral. Os Estados Unidos não têm licença-paternidade remunerada em nível federal, mas estados como Califórnia e Nova York concedem de seis a 12 semanas com remuneração de 60% a 90% do salário.

O problema está no custo do benefício para o Estado. O Brasil é pródigo em programas sociais sem fontes de recursos para sustentá-los. Ainda que o projeto estabeleça o cumprimento de metas fiscais como condição para ampliar a licença, o impacto será inexorável. A reforma da Previdência feita em 2019 já se mostra insuficiente para responder aos gastos já contratados. Que dizer dos novos? É sempre fundamental avaliar os custos dos direitos sociais, ainda mais quando o Estado brasileiro atravessa crise fiscal aguda. O Senado precisa analisar a questão sem demagogia.

Gestão de Mamdani será vitrine para republicanos e democratas

Por Valor Econômico

Os pleitos de 4 de novembro mostraram resultados francamente desfavoráveis ao presidente Trump e seu Partido Republicano

É algo inédito na história dos Estados Unidos: o democrata socialista e muçulmano Zohran Mamdani reinará sobre Wall Street, após ser eleito prefeito de Nova York, com folgada maioria. Mamdani, 34 anos, o mais jovem alcaide, terá sob sua administração a cidade que concentra a maior quantidade de judeus fora de Israel e berço do presidente republicano Donald Trump. Ele e outro muçulmano, Sadiq Khan, social-democrata moderado inglês e prefeito de Londres, governarão as duas mais importantes e influentes metrópoles anglo-saxônicas do mundo.

O movimento de radicalização política nos Estados Unidos produziu agora uma reação mais incisiva à esquerda no Partido Democrata, cuja liderança de centro encontra-se sem rumo desde a folgada vitória de Donald Trump sobre Kamala Harris, em 2024. A guinada ao ultraconservadorismo republicano, configurada pelo Tea Party, que desembocou no domínio absoluto de Trump sobre o partido, impulsionou reativamente a esquerda democrata, que agora tem como vitrine em Nova York um jovem esquerdista que propõe medidas populistas e com um receituário que já se provou ineficaz. Em sua plataforma, estão o congelamento dos aluguéis, supermercados públicos, creches e transportes gratuitos e impostos maiores para quem ganha acima de US$ 2 milhões por ano naquela que é a Meca do capitalismo.

Apesar de seus inegáveis méritos, Mamdani pode ser antes o sintoma de um problema do que uma solução para os dilemas do Partido Democrata. Com o centro carente de renovação, desacorçoado e sob pressão da radicalização republicana, a esquerda democrata tem uma plataforma política que dificilmente terá grande apoio fora do eleitorado liberal de Nova York. Mamdani não contou com apoio do establishment democrata, ainda que tenha recebido apoio de outro político bem-sucedido em furar as crostas da burocracia da legenda, o ex-presidente Barack Obama.

As eleições para o governo de alguns Estados, como Virginia e New Jersey, para cargos no Judiciário e prefeituras de várias cidades delinearam um movimento tradicional na política americana. As eleições legislativas de meio de mandato do presidente costumam favorecer a oposição, como ocorreu com o domínio da Câmara dos Deputados pelos democratas no primeiro governo de Trump. Os pleitos de 4 de novembro mostraram resultados francamente desfavoráveis aos republicanos, cujos candidatos foram derrotados por mais de 10 pontos percentuais de vantagem na Virgínia e em Nova Jersey, com a vitória de duas democratas, Abigail Spanberger e Mikie Sherrill, respectivamente.

Uma proposição aprovada na Califórnia também se revelou nefasta aos desígnios de Trump. Para reagir à mudança de distritos eleitorais feita pelos republicanos no Texas, que concentrará votos na legenda e deverá proporcionar mais 5 cadeiras na Câmara na próxima eleição, o voto californiano também refez a geografia eleitoral e propiciará igual vantagem no Estado para os democratas.

A vantagem democrata se nutriu, em primeiro lugar, do desgaste de Trump, retratado pelas últimas pesquisas de opinião. A da CNN aponta que 37% dos americanos aprovam seu governo, ante 63% que o desaprovam. Suas posições radicais não o favorecem: com os republicanos jogando duro contra os democratas, o governo dos EUA está paralisado há 36 dias, um recorde histórico, por falta de acordo sobre o orçamento. O eleitorado latino, que esboçou movimento em direção aos republicanos na eleição de Trump, se retraiu, inquieto com as batidas de caça a imigrantes ilegais em todo o país.

Mas especialmente Mamdani, em Nova York, soube realizar uma campanha que atraiu os eleitores da cidade com temas que lhes diziam diretamente respeito - o custo de vida e, em especial no caso nova-iorquino, o preço muito alto dos aluguéis. Os democratas em Nova Jersey, na Virgínia e em toda a parte também centraram sua campanha na carestia, tema usado por Trump contra Biden em 2024. É um ponto bastante frágil do republicano - a guerra comercial, com suas elevadas tarifas, aumentou o preço de uma série de produtos massivamente consumidos pelos americanos. A inflação parou de cair e aos poucos encostou em 3%.

Embora nada esteja definido de antemão, as eleições legislativas podem encerrar o ativismo frenético de Trump e seus atropelos às instituições. Uma maioria democrata na Câmara dos Deputados retiraria dele boa parte da liberdade de ação. A perda do Senado o tornaria um presidente sem poder. E uma administração mal avaliada tornaria muito difícil que ele elegesse seu sucessor.

Mamdani também não terá vida fácil, pois não tem apoio firme dos democratas, e sua polêmica plataforma política tem tudo para atrair ampla oposição. Sua administração será a vitrine diária a ser exibida pelos republicanos, seja por seu suposto radicalismo, seja por eventuais fracassos. Ainda que Mamdani esteja distante de representar o ideário democrata e as opiniões do eleitorado médio americano, forçará uma redefinição de rumos do partido democrata e talvez a renovação de seus quadros, levando-o a buscar reconectar-se aos interesses da maioria, dos quais se distanciou.

Haddad, como Lula, dificulta a redução dos juros

Por Folha de S. Paulo

Ministro critica BC e deixa de lado as preocupações com a escalada dos gastos e da dívida do governo

Nesta gestão, o Tesouro terá déficit primário (sem contar juros) em todos os anos; em 2025, o rombo esperado ronda os R$ 70 bilhões

Fernando Haddad foi a voz solitária da racionalidade econômica no governo e no PT até a primeira metade do mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Ao longo deste ano, contudo, vai deixando de lado os reparos à gestão das contas públicas e compartilhando críticas oportunistas ao Banco Central.

Na terça-feira (4), disse que, se fosse presidente do BC, votaria pela redução dos juros. Nesta quarta (5), para surpresa de ninguém, a instituição manteve sua taxa, a Selic, em 15% anuais.

No atual patamar, os juros são insustentáveis, diz o ministro da Fazenda —é fato. No entanto ele não aborda as condições para que eles possam começar a cair, como afirma desejar, para já.

Na hipótese menos ruim, Haddad apenas prepara discurso para a campanha eleitoral de 2026, ameaçando a credibilidade do BC e dificultando o corte da taxa. Se não é o caso, mostra compreensão precária dos problemas macroeconômicos do país.

A economia ainda está inflacionada. A variação do IPCA deve terminar o ano perto de 4,5%, longe da meta de 3%. A expectativa para o fim de 2027, mesmo com a Selic nas alturas, é de 3,8%. Continua difícil conter a alta dos preços de serviços, pressionados pelo mercado de trabalho aquecido.

O déficit com o exterior sobe, em boa parte devido à queda do saldo comercial, pois as importações crescem, dada a escassez de oferta, sintoma de atividade econômica acima do potencial.

O IPCA melhor do que o esperado deste ano deve-se a safra, clima melhor, preços mundiais bem comportados e queda do dólar por efeito de medidas de Donald Trump. No mais, a carestia e a desvalorização do real são contidas pelo arrocho monetário.

As taxas de juros seriam menores caso houvesse contribuição da política de gastos, que pressiona a demanda. No ano passado, o afrouxamento da meta fiscal e o pacote frustrante de ajuste deram impulso a um movimento de alta de dólar, inflação e juros.

Haddad tergiversa sobre os erros, preferindo atribuir responsabilidades a administrações passadas ou ao Congresso Nacional. De fato, o governo herdou gastos contratados e isenções fiscais —muitas delas, diga-se, de outras administrações petistas. Porém o que fez foi agravar o quadro.

Sob Lula, o Tesouro terá déficit primário (sem contar juros) em todos os anos —neste 2025, o rombo esperado ronda os R$ 70 bilhões, dos quais a maior parte não será considerada para o cumprimento da meta oficial.

A despesa federal já aumentou 14%, em termos reais, cerca de R$ 290 bilhões ao ano, e no momento avança no Congresso um reajuste salarial para os servidores do Judiciário mais caro do mundo. A dívida pública subiu de 71,7% para 78,1% do PIB.

O governo criou as condições que levaram os juros ao insustentável. Baixar a Selic agora ou sem mais causaria danos no dique que contém deterioração macroeconômica ainda maior, se não for o gatilho de tumulto imediato.

Mais tempo entre pais e filhos

Por Folha de S. Paulo

Aumento da licença-paternidade é um passo na redução da desigualdade salarial entre os sexos

O ideal seria expansão maior do que 20 dias ou licença parental compartilhada, mas as contas públicas dificultam tais modelos no Brasil

A desigualdade salarial entre homens e mulheres é causada principalmente pelo impacto da maternidade nos estudos e no trabalho delas. Por isso medidas que tentam instituir à base de canetada uma paridade na remuneração entre os sexos tendem, na melhor hipótese, a ser inócuas e, na pior, a dificultar a empregabilidade.

Nesse sentido, o projeto de lei que aumenta o tempo da licença-paternidade, aprovado pela Câmara dos Deputados na terça-feira (4), é um avanço, mesmo que modesto —sua limitação se deve, sobretudo, à elevação de gastos num Orçamento já deficitário.

O benefício, que hoje dura apenas 5 dias, será expandido de forma gradual até 20 dias. Segundo o texto, serão 10 dias nos dois primeiros anos de vigência da mudança, 15 dias no 3º ano e, finalmente, 20 dias no 4º ano.

Atualmente, servidores públicos têm direito a pedir mais 15 dias, e o custo é pago pelo erário. Já as empresas são responsáveis pelos custos, que, pela proposta, passarão à Previdência Social por meio de descontos na contribuição ao INSS —o intuito é evitar resistências no setor privado.

Para reduzir impactos para micro e pequenas empresas, os valores serão compensados com mais agilidade no recolhimento de qualquer tributo federal.

Por óbvio, haverá impacto fiscal. O custo estimado com despesas e perda de receitas é de R$ 3,3 bilhões em 2027, de R$ 4,35 bilhões no ano seguinte, e chega a R$ 5,44 bilhões em 2029. O projeto determina, ainda, que o benefício só poderá ser ampliado de 15 para 20 dias em 2029 se o governo alcançar a meta fiscal em 2027.

O ideal seria uma expansão maior da licença paternidade ou até mesmo uma licença parental compartilhada entre pais e mães —como é comum em países nórdicos, bem menores e mais ricos. A situação das contas públicas no Brasil, porém, evidencia a dificuldade em adotar tais modelos.

Ampliar a duração do benefício para o sexo masculino também não é bala de prata. São necessárias outras ações integradas, além de mudanças culturais que levem os homens a contribuírem mais para o cuidado do lar e dos filhos, reduzindo assim a sobrecarga da dupla jornada de trabalho que recai sobre as mulheres.

É fundamental que governos municipais expandam o acesso a creches, e tal medida envolve mais gestão racional de recursos do que aumento de gasto público. No país, só 38,7% das crianças entre 0 e 3 anos estavam matriculadas em creches em 2024, enquanto a meta do Plano Nacional de Educação de 2014 era atingir 50% no ano passado.

Crime organizado não é terrorismo

Por O Estado de S. Paulo

Classificar PCC e CV como ‘terroristas’ é erro conceitual e prático que mascara a incompetência dos Estados na segurança. Pode dar votos, mas não resolve o problema e cria vários outros

Um projeto de lei que classifica facções criminosas como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como “organizações terroristas” instalou no País um debate que mistura oportunismo político, erro conceitual e imprudência.

Tramitando na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, o projeto, apresentado pelo deputado Danilo Forte (União-CE), propõe a inclusão de facções e milícias no rol de grupos terroristas previsto na Lei Antiterrorismo, de 2016. A proposta ganhou tração após a operação policial nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio, que terminou com mais de 120 mortos.

De fato, aquela incursão policial expôs um nível de poder bélico e operacional dos criminosos que deve ensejar uma reflexão sobre o tipo de confronto travado entre as forças do Estado e as organizações criminosas. Está-se diante de um problema de segurança pública ou já se trata de uma guerra pela soberania nacional? Esse debate não só é legítimo, como necessário. Mas dele não decorre a conclusão precipitada de que a solução possa passar por uma falácia: chamar de “terroristas” organizações criminosas que, fundamentalmente, são movidas pelo enriquecimento ilícito.

O projeto em questão, portanto, parte de um erro conceitual. O terrorismo pressupõe motivação política, ideológica ou religiosa. Terroristas fazem da violência a tática para constranger o Estado e/ou a sociedade a agir ou deixar de agir de certa forma, disseminando o medo generalizado como instrumento de pressão. As facções brasileiras até podem, eventualmente, praticar atos de terror, mas não o fazem por manifesto interesse político, ideológico ou religioso, e sim financeiro. Não têm uma causa – têm um caixa. Não buscam transformar o Estado, mas desafiá-lo para ampliar seus ganhos ilícitos. A violência que semeiam é derivada da disputa pelo controle de mercados criminosos.

Além desse vício de origem, o projeto está eivado de problemas de ordem prática insanáveis. O Brasil já dispõe de um arcabouço jurídico para combater o crime organizado – do Código Penal à Lei das Organizações Criminosas, passando por acordos de cooperação internacional contra o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Mais bem dito: nenhuma organização criminosa surgida aqui chegou aonde chegou por falta de legislação adequada para impedir sua ascensão, mas sim pelas falhas na aplicação das leis em vigor – para dizer o mínimo. Recorde-se que, quando o Estado atuou com inteligência e cooperação federativa, obteve resultados expressivos. Aí está a Operação Carbono Oculto como exemplo virtuoso desse enfrentamento ao PCC sem pirotecnias retóricas ou legislativas.

Caso classifique as facções como grupos terroristas, o Congresso ainda criará um problema institucional gravíssimo. A competência para investigar e julgar terrorismo migraria para a esfera federal, deslocando inquéritos e ações penais das mãos de policiais, promotores e juízes estaduais que, há décadas, acumulam expertise no enfrentamento direto desses grupos criminosos. No caso do PCC, ninguém conhece melhor sua estrutura e seu modus operandi do que o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de São Paulo, para citar apenas o exemplo mais notável. Retirar de autoridades como ele o protagonismo no combate ao crime organizado será um retrocesso. A Polícia Federal, por sua vez, não tem estrutura nem efetivo para absorver, de um dia para o outro, o volume colossal de investigações que a mudança acarretaria.

Por fim, a retórica do terrorismo pode render votos, mas não salva a vida de ninguém, além de prestar um desserviço ao debate público. Em vez de fortalecer as instituições de combate ao crime organizado, serve para escamotear a incompetência dos governos estaduais para prover segurança à população. A citação, na justificação do projeto, ao tratamento dado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, ao tráfico internacional de drogas coroa o grau de desorientação das discussões. Com a maior naturalidade do mundo, flerta-se com a violação da soberania brasileira, como fez o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) ao sugerir que os EUA bombardeassem barcos suspeitos na Baía de Guanabara. É isso o que se pretende para o Brasil?

O pulso da democracia americana

Por O Estado de S. Paulo

Muito vai se falar da vitória da extrema esquerda em NY, mas em outras eleições os democratas moderados se saíram bem. A polarização ainda predomina, mas há sinais de alternativas viáveis

O punhado de eleições realizadas anteontem nos Estados Unidos funcionou como um termômetro político e um laboratório para os dilemas que marcarão as disputas legislativas nacionais de 2026. Os resultados delinearam não só o humor do eleitorado, mas os caminhos e armadilhas que se abrem para democratas e republicanos em um país cada vez mais fragmentado entre populismos opostos, agendas identitárias e o apelo ainda vivo do pragmatismo centrista.

O caso mais ruidoso foi a eleição do socialista Zohran Mamdani como prefeito de Nova York. Jovem, carismático e radical, Mamdani representa o que há de mais ambicioso – e temerário – no arsenal ideológico da nova esquerda. Com um programa maximalista que inclui ônibus grátis, supermercados estatais, congelamento de aluguéis e sobretaxas para os ricos, ele capturou a imaginação dos eleitores urbanos mais jovens. Mas sua vitória também revelou a vulnerabilidade do Partido Democrata à sua ala de extrema esquerda.

Mamdani não é só um gestor inexperiente em uma cidade em crise fiscal. Ele é o rosto mais visível de um experimento que será explorado nacionalmente por seus adversários. Sua eleição não transforma a extrema esquerda em maioria, mas amplia sua influência simbólica num partido cuja coesão depende de manter juntos os eleitores de Manhattan, Atlanta, Detroit ou Omaha. Se Mamdani fracassar, será um fardo para democratas em Estados decisivos. Se tiver sucesso, o que dependerá mais de sorte e contenção do que de seu programa tresloucado, poderá consolidar a radicalização à esquerda. Nenhuma das alternativas deixa os moderados confortáveis.

Todavia, os democratas também colheram vitórias robustas com candidatos de perfil centrista e disciplinado, como Abigail Spanberger para o governo da Virgínia e Mikie Sherrill para o governo de Nova Jersey. Ambas são ex-militares com experiência em segurança nacional e avessas ao ruído das guerras culturais. Focaram em acessibilidade econômica, infraestrutura e políticas de bom senso – e venceram com boa margem. Elas representam um modelo viável para reconquistar o eleitorado suburbano e independente. Mas é duvidoso que consigam rivalizar, dentro do próprio partido, com o volume simbólico de Mamdani, Alexandria Ocasio-Cortez ou Bernie Sanders.

Do outro lado, os republicanos saíram das urnas com motivos para inquietação. Apesar do desempenho decente em alguns distritos locais, sofreram derrotas em áreas onde haviam avançado em 2021. A razão principal tem nome e sobrenome: Donald Trump. Mesmo fora da cédula, a sombra do presidente de extrema direita paira sobre todo o partido. Seu estilo, sua retórica e sua obsessão com a eleição “roubada” de 2020 afastam independentes e sufocam novas lideranças. A aprovação de Trump segue baixa, e os republicanos continuam presos ao dilema: sem ele, perdem a base; com ele, perdem o centro.

A ironia é que Mamdani pode se tornar o melhor argumento republicano para reverter esse ciclo. Sua eleição oferece um espantalho perfeito: um socialista muçulmano governando a maior cidade do país. O risco, no entanto, é que esse espantalho seja contraposto por outro. Se 2026 for moldado como uma escolha entre os maximalismos inconciliáveis de Trump e de Mamdani, será difícil convencer o eleitorado moderado de que há algo a salvar.

Há ainda fatores geográficos e institucionais que devem pesar. A zona rural segue predominantemente conservadora. As metrópoles, cada vez mais homogêneas à esquerda. Os subúrbios – novamente – decidirão a eleição. E os democratas mostram-se mais dispostos a jogar duro no redesenho dos colégios eleitorais: a Proposição 50, aprovada na Califórnia, reforçará a manipulação de distritos em favor dos democratas, com o mesmo cinismo pragmático que os republicanos vinham aplicando em Estados do Sul.

A lição de 2025 parece ser que a energia eleitoral está nos extremos, mas as vitórias sustentáveis pertencem ao centro. A pergunta que 2026 responderá é se algum dos partidos terá coragem para romper com suas caricaturas e recuperar o senso de proporção. Há, em ambos os lados, vozes lúcidas e competentes. Mas o ruído – e o ressentimento – ainda grita mais alto.

Nome aos bois

Por O Estado de S. Paulo

Quando medidas de governo beneficiam determinados empresários, algo não vai bem na República

Uma reportagem recente do Estadão mostrou que um “jabuti” incluído na medida provisória da reforma do setor elétrico autoriza a construção de gasodutos com verba do Fundo Social do Pré-Sal. Essa medida pode viabilizar projetos de gasodutos ligando a costa ao interior do País, o que beneficiaria particularmente o empresário baiano Carlos Suarez, que domina o setor em diversos Estados que seriam atendidos.

É muito difícil dar o benefício da dúvida quando se está diante de tamanho favorecimento a um só empresário. Sobretudo quando se observa que esses gasodutos, se saírem do papel, serão uma extravagância inexplicável, sem justificativa econômica plausível.

Resta a explicação banal: o sr. Suarez, conhecido como “Rei do Gás”, tem extraordinária influência no governo de Lula da Silva e no Congresso dominado pelo Centrão. Isso já tinha ficado razoavelmente claro quando o grupo político que representava os interesses do empresário conseguiu incluir na lei de privatização da Eletrobras (atual Axia) a exigência de instalação de usinas térmicas em locais remotos para justificar a construção dos gasodutos. Na ocasião, o projeto dos gasodutos não prosperou, mas o governo Lula parece empenhado em insistir nele.

Em favor do sr. Suarez, diga-se que ele não é o único empresário rotineiramente favorecido por decisões do governo e do Congresso graças às suas relações com o poder em Brasília. Nesse particular, destacam-se com brilho os irmãos Wesley e Joesley Batista, donos de um conglomerado de negócios em franca expansão e que agora estão entrando com tudo no setor elétrico.

Os Batista levaram a melhor numa disputa acirrada com Suarez pela compra de termoelétricas da Eletrobras no Amazonas. Os dois irmãos adquiriram a preço irrisório a distribuidora Amazonas Energia pela Âmbar, em situação pré-falimentar. Por mais um desses acasos que somente os corredores de Brasília explicam, a Âmbar foi beneficiada por medida provisória que deu à empresa condições de assumir as térmicas da Eletrobras e negociar o controle da Amazonas Energia. Mais recentemente, compraram a participação da Eletrobras na Eletronuclear, um movimento surpreendente e que ainda carece de explicações.

De uma hora para outra, os irmãos Batista passaram a ter participação relevante no setor elétrico. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse que foi “mera coincidência” o fato de que o governo editou a citada medida provisória que garantiu a recuperação financeira da Amazonas Energia apenas dias depois da transação entre Eletrobras e Âmbar. De quebra, Silveira ganhou do presidente Lula o direito de manter em sigilo por cem anos sua Declaração de Conflito de Interesses – aquela que toda autoridade deve fazer para afastar suspeitas de que pode ter interesses privados em negócios públicos sob sua alçada.

Empresários poderosos sempre haverá. Mas uma república digna do nome deve estabelecer limites claros para a influência desses empresários, porque as políticas públicas, por definição, devem ser norteadas pela transparência e pela impessoalidade. Quando decisões de governo parecem ser feitas sob medida para favorecer determinados negócios privados, algo não vai bem na República.

Adolescentes são alvo da violência de gênero

Por Correio Braziliense

O feminicídio de adolescentes com idade entre 12 e 17 anos aumentou 30,7% em um ano, de 2023 até 2024, "sugerindo um deslocamento preocupante para vítimas ainda mais jovens".

Os feminicídios ganham escala no Distrito Federal. Mulheres jovens e cada vez mais adolescentes tornam-se vítimas da violência de homens que se sentem proprietários das namoradas ou companheiras. Nos últimos 10 meses deste ano, ocorreram 25 casos no DF. No início da madrugada desta terça-feira, no Sol Nascente, Allany Fernanda, 13 anos, não resistiu a um tiro na cabeça, provavelmente disparado pelo namorado, 20 anos, como indicam as investigações. O suspeito está sob prisão preventiva, decretada após audiência de custódia. 

Allany foi a segunda adolescente assassinada neste ano no DF pelo fato de ser mulher. Em 23 de fevereiro, Géssica Moreira de Sousa, 17 anos, foi vítima de crime cometido pelo companheiro, sete anos mais velho, dentro de uma igreja evangélica no Núcleo Rural da Rajadinha, em Planaltina. O crime foi testemunhado pela filha do casal de dois anos. Ela estava grávida e deixou duas filhas órfãs. Histórias como as de Allany e Géssica são cada vez mais corriqueiras no Brasil. 

O mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que o feminicídio de adolescentes com idade entre 12 e 17 anos aumentou 30,7% em um ano, de 2023 até 2024, "sugerindo um deslocamento preocupante para vítimas ainda mais jovens". Considerando todas as faixas etárias, o número de feminicídios atingiu um recorde histórico no Brasil em 2024, com um aumento de 0,7% em relação ao ano anterior, com uma média de quatro assassinatos por dia. 

As agressões às mulheres e às meninas ocorrem também por meio virtual, como tem sido evidenciado em operações policiais recorrentes. Na tentativa de detalhar esse crimes no ambiente digital, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, em parceria com Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento  (Pnud), desenvolveu o projeto Diagnóstico da Violência Sexual On-line — Crianças e Adolescentes. Entre 2022 e 2023, 23% das crianças e adolescentes entrevistados relataram ter sido vítimas de algum tipo de violência sexual on-line. 

As meninas são a maioria das vítimas: 76% Os homens agressores chegam a 87%. A base dos dados do estudo foi o relatório do Disque 100, coordenado pelo MDHC, que registrou 6.364 denúncias de violência sexual contra os menores por meio on-line no período analisado. Os dados colhidos pelo estudo reforçam a necessidade de regulamentação das plataformas digitais — um tema ainda polêmico no país.

Também evidenciam que o poder público precisa rever suas políticas para conter as atrocidades praticadas contra as mulheres  e meninas. Embora sejam maioria na população, elas são depreciadas pelo gênero masculino. Essa falsa superioridade é reforçada a cada obstáculo que tanto o poder público quanto o privado impõe à ascensão social e econômica das mulheres. 

Exige reforço na educação de igualdade de gênero na família, nas escolas, nas universidades, no ambiente de trabalho e em quaisquer outros, a fim de promover e fortalecer as relações respeitosas. Além disso, ninguém deveria se omitir de denunciar um ato de violência e, assim, colaborar com combate às agressões contra as mulheres de todas as idades.

CPI poderá dar boa contribuição para conter facções

Por O Povo (CE)

A ver se o senador Fabiano Contarato conseguirá manter o bom andamento dos trabalhos, de modo que o plenário da CPI não vire uma batalha campal de "lacrações"

Após a chamada "megaoperação" nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, que resultou em 121 mortes, o Executivo e o Legislativo se agitaram para encaminhar com mais celeridade as propostas referentes à segurança pública, especialmente as que dizem respeito ao crime organizado.

As facções tornaram-se uma preocupação nacional, ampliando sua área de atuação para além do tráfico de drogas, do controle local de território e da exploração violenta de moradores de comunidades. Com o crime organizado espalhando-se por praticamente todo o País, com faccionados infiltrados em negócios legais e na política, tornou-se impossível barrar essa escalada criminosa sem que seja encontrada uma solução que ultrapasse as divisas de cada Estado, exigindo ações conjuntas entre o governo federal e os entes federativos.

Entre as várias iniciativas que ganharam destaque após a operação no Rio está a Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI do Crime Organizado, instalada no Senado, na terça-feira. A CPI poderá dar uma boa contribuição para encontrar caminhos que contribuam com a resolução do problema, mesmo porque elegeu uma Mesa Diretoria equilibrada.

A presidência ficou com Fabiano Contarato (PT-RS), conhecido pela sua análise técnica das propostas; na vice-presidência está Hamilton Mourão (Republicanos-RS) e a relatoria — o segundo cargo mais importante — será ocupado por Alessandro Vieira (MDB-SE), que não é alinhado ao governo, podendo ser classificado como "independente". Os três têm experiência anterior na área da segurança: Contarato e Vieira foram delegados da Polícia Civil; Mourão é general aposentado do Exército.

Mas o componente político não ficará de fora das sessões da CPI, principalmente porque a campanha presidencial de 2026, extraoficialmente, já está nas ruas. No entanto, Contarato já avisou que não vai admitir "pirotecnia" na CPI. A ver se ele conseguirá manter o bom andamento dos trabalhos, de modo que o plenário não vire uma batalha campal de "lacrações" para os famosos "recortes" para "bombar" nas redes sociais. Será preciso conter com rigor a "bancada do TikTok" para evitar a desmoralização da CPI.

O que se espera é que, em assunto de tamanha gravidade os senadores comportem-se de maneira adequado, preocupando-se com o que verdadeiramente interessa, que é apontar soluções que levem ao desmantelamento dessas organizações criminosas que desafiam a ordem legal estabelecida, controlando territórios, cometendo os mais bárbaros atos de violência — e submetendo milhões de brasileiros às "leis" do crime.

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