Correio Braziliense
Mamdani representa uma
síntese do mundo globalizado — africano, asiático, muçulmano e nova-iorquino —,
em meio à polarização alimentada por Trump
Mais do que qualquer outra metrópole
ocidental, Nova York é a mais cosmopolita cidade do mundo, graças a sucessivas
ondas migratórias que, a cada geração, redefiniram seu perfil econômico, social
e cultural. Essa vocação cosmopolita remonta ao episódio quase lendário de
1654, quando 23 judeus — expulsos do Recife após a derrota holandesa para os
portugueses — desembarcaram na então colônia de Nova Amsterdã, que deu origem à
cidade.
Vindos de Pernambuco a bordo do navio Valk, depois de escaparem de piratas, de prisões e da Inquisição, encontraram abrigo precário na cidade governada pelo calvinista Peter Stuyvesant. Mesmo assim, fundaram a primeira comunidade judaica estável das Américas, gênese do pluralismo que seria o germe da identidade nova-iorquina moderna: a convivência tensa, mas fértil, de culturas, crenças e etnias em permanente metamorfose.
Nosso elo perdido com Nova York é a presença
judaica em Pernambuco sob o domínio de Maurício de Nassau, que não foi apenas
um episódio colonial. Foi antecipação da modernidade cosmopolita que, dois
séculos depois, faria de Nova York a grande metrópole global. Nassau enxergava
na tolerância religiosa uma vantagem política e econômica. Recife dos anos 1630
e 1640 era uma cidade aberta, onde se falava holandês, português, hebraico e
tupi; onde sinagogas e igrejas coexistiam e o comércio internacional florescia.
Quando a ocupação holandesa terminou e a
Inquisição voltou com força, os judeus do Recife foram forçados a partir. Essa
diáspora atlântica — dos engenhos de açúcar ao porto holandês e daí à América
do Norte, mais do que o prólogo de uma saga religiosa, é o início da ideia de
cidade como refúgio e reinvenção. Ao se estabelecerem em Nova Amsterdã, os
exilados de Pernambuco introduziram no Novo Mundo o princípio da pluralidade
urbana: a noção de que a cidade pode ser espaço de encontro, e não de exclusão.
Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar e, principalmente, Um século em Nova York, descreveu essa vocação universal da cidade. Para ele, a cidade é o palco das contradições da modernidade, entre miséria e esplendor, e tradição e vanguarda. Berman via nas ruas, especialmente na Times Square, uma espécie de laboratório da experiência humana moderna, “porque nela se cruzam os sonhos e os destroços do progresso”.
O herói de Berman é o homem anônimo que se
dissolve na multidão, mas encontra nela sua identidade. O imigrante, o artista,
o trabalhador, o sem-teto e o executivo coexistem como expressões de um mesmo
drama: o de construir um sentido de existência num espaço em constante mutação.
Multiétnica, pluralista e culturalmente aberta, Nova York do século XXI é o
produto direto da mestiçagem espiritual e social. Não à toa influencia o
comportamento do Ocidente.
Cidade aberta
A eleição de Zohran Mamdani como prefeito de
Nova York em 2025 é a continuidade dessa herança cosmopolita, num momento em
que o governo Trump fecha a porta para o “sonho americano” e persegue os
imigrantes. Filho de indianos nascido em Uganda e criado no Queens, Mamdani
representa uma síntese do mundo globalizado — africano, asiático, muçulmano e
nova-iorquino. Seu triunfo eleitoral, em meio à polarização alimentada por
Trump, confirma que Nova York permanece como sendo um farol político da
sociedade norte-americana: uma cidade capaz de transformar a diferença em
força.
Os judeus que chegaram do Recife em 1654 eram
exilados de uma fé perseguida. O novo prefeito é um muçulmano num país onde o
islamismo ainda enfrenta estigmas. Ambos encontraram em Nova York um espaço de
resistência e reinvenção. Mamdani expressa o amadurecimento dessa luta: a
passagem do “direito de ser tolerado” para o “direito de governar”.
Como Berman descreveu, Nova York é uma arena
de conflitos e reconciliações. Mamdani emerge desse caldeirão urbano como
expressão da capacidade de acolher, contradizer e transformar. Ele fala a
linguagem das redes sociais e das ruas, mistura ativismo político com
performance pública, e reinterpreta o ideal democrático à luz das novas
identidades.
Berman via nas avenidas de Nova York os
palcos de cidadania. O verdadeiro sujeito da eleição de Zohran Mamdani, cuja
campanha foi iniciada com uma caminhada performática de ponta a ponta de
Manhattan. Eis um político que se funde à cidade e faz da rua o seu verdadeiro
habitat, do Harlem cultural ao Occupy Wall Street.
Transporte gratuito, moradia acessível e tributação progressiva, as propostas de Mamdani, o social-democrata nova-iorquino, o bem-estar coletivo é sinônimo da vitalidade das ruas. Num momento em que Trump e seus seguidores reacendem discursos nacionalistas e xenófobos, a vitória de um muçulmano socialista na capital financeira do mundo é um gesto civilizatório de uma cidade de vanguarda da pós-modernidade.

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