Prisão de militares golpistas é um momento histórico
Por O Globo
Processo correu com serenidade e dentro da
lei, revelando maturidade da democracia brasileira
É uma demonstração histórica da maturidade da democracia brasileira o desfecho do julgamento do núcleo central da trama golpista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com a prisão inédita de militares de alta patente condenados por tentativa de golpe de Estado. Além do ex-presidente Jair Bolsonaro, preso preventivamente no sábado por suspeita de fuga ao tentar violar a tornozeleira eletrônica, foram encarcerados na terça-feira os generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira, o almirante Almir Garnier e o ex-ministro da Justiça Anderson Torres. O general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, já estava preso preventivamente.
Dos oito condenados, só Alexandre
Ramagem, sentenciado a 16 anos e um mês, não cumpre pena. Ele fugiu com a
família para Miami, nos Estados Unidos. Mauro Cid,
ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, condenado a dois anos, cumpre pena em
regime aberto, por ter feito delação premiada.
Depois da apuração minuciosa feita pela
Polícia Federal, que reuniu provas robustas da tentativa de golpe após a
derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, e da denúncia da Procuradoria-Geral da
República, o processo no STF seguiu todos os ritos legais, com amplo direito de
defesa aos acusados. Esgotados os recursos, o STF determinou que as penas
começassem a ser cumpridas. Tudo como prevê a lei, sem abalos institucionais —
e em desafio à pressão oriunda dos Estados Unidos, que decretou sanções contra
ministros do Supremo para tentar livrar Bolsonaro.
Foi acertada, também, a decisão de cumprir as
ordens de prisão com discrição, sem o espalhafato de outras operações. No
sábado, na transferência de Bolsonaro da prisão domiciliar à PF, o ministro
Alexandre de Moraes, relator do caso, já determinara que o ex-presidente não
fosse exposto. Tudo como deve ser. Será essencial encarar as decisões sobre as
próximas etapas, como progressão de regime penal, com a mesma serenidade
mantida até aqui — e seguindo a lei à risca.
É fundamental também que a Justiça continue
garantindo a saúde, a integridade e a dignidade de Bolsonaro, que começou a
cumprir a pena de 27 anos e três meses na sala de Estado-Maior na
Superintendência da PF em Brasília. A fragilidade de sua saúde é conhecida.
Moraes fez bem em determinar atendimento médico em tempo integral e autorizar
alimentação especial, mas a preocupação deve ser constante.
Noutra decisão que poderá se tornar inédita,
o Superior Tribunal Militar (STM) analisará se Bolsonaro — capitão reformado do
Exército —, Garnier, Nogueira, Heleno e Braga Netto perderão postos e patentes.
A decisão é exclusiva do STM. Pela Constituição, um oficial pode ser expulso da
Força quando condenado a mais de dois anos de privação de liberdade. O
julgamento só deverá ocorrer no ano que vem.
A tentativa de golpe de Estado foi um
episódio da mais alta gravidade, e assim deve ser tratado. Não fosse a
resistência firme de parte da cúpula militar, o país poderia ter retrocedido a
novo regime de exceção. Por isso mesmo, a sociedade precisa ficar vigilante
para impedir que projetos casuísticos como a anistia aos golpistas avancem no
Legislativo. O perdão aos condenados num passe de mágica soaria como novo
golpe. O melhor antídoto para evitar que casos semelhantes voltem a ameaçar
quatro décadas de democracia — o período mais longevo na História do país — é
aplicar a lei. Com justiça e serenidade.
Aposentadoria especial para agentes de saúde
é ilógica e irresponsável
Por O Globo
Senado aprovou por unanimidade proposta que amplia rombo da Previdência em R$ 100 bilhões
A aprovação por unanimidade no Senado do
Projeto de Lei concedendo o direito de aposentadoria antecipada a agentes
comunitários de saúde e agentes de combate a endemias carece de lógica e
responsabilidade. Com a galeria do plenário cheia de servidores, 57 senadores
de todos os partidos votaram a favor do projeto. O texto, pautado pelo
presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), segue agora para a Câmara, onde
tem boa chance de passar. Medida semelhante, na forma de Emenda à Constituição,
foi aclamada pelos deputados no mês passado. Em ano pré-eleitoral, o Congresso
fecha os olhos às limitações do país e agrava o déficit já colossal da
Previdência. Estimativas preliminares do Ministério da Previdência mostram que
a pauta-bomba terá impacto de R$ 100 bilhões em dez anos.
Pelo que foi votado no Senado, homens poderão
se aposentar com salário integral e reajustes iguais aos da ativa aos 52 anos,
mulheres aos 50. Basta terem ao menos 20 anos na função ou 15 anos na atividade
e outros dez noutra ocupação. Se aprovada, a regra criará uma distorção enorme
e injustificada. A aposentadoria antecipada deveria ser um recurso excepcional,
destinado a categorias expostas a substâncias prejudiciais à saúde. Nada
comparável à rotina de agente comunitário ou de combate a endemias, por mais
agruras que ela envolva. A título de comparação, médicos e enfermeiros podem se
aposentar depois de 25 anos de trabalho. Que impedirá depois que peçam
igualdade de condições? Assim como dezenas de outras categorias, munidas de
justificativas aparentemente sensatas, mas com impacto fatal para a
Previdência?
É inegável que os cerca de 400 mil agentes
comunitários e de combate a endemias têm impacto positivo no aumento da
vacinação, no encaminhamento a postos de saúde e na queda de hospitalizações
(tanto que o programa brasileiro foi copiado até no Reino Unido). Mas a demanda
por aposentadoria integral e paritária não tem o menor cabimento. Esse tipo de
regra injusta com os demais servidores já foi extinta na administração pública
em 2003, no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A última reforma da Previdência, aprovada em 2019, foi concebida para uniformizar regras e acabar com a barafunda de exceções e regimes especiais que vigoravam para o funcionalismo. De que adianta estabelecer uma lei que deve valer para todos se alguns anos depois o Congresso começa a querer abrir exceções? Parece evidente a tentativa de testar os humores para promover uma “contrarreforma” da Previdência. Se algum setor do funcionalismo obtiver o benefício, é certo que logo outros correrão atrás das mesmas condições. Seria um retrocesso inaceitável, já que os ganhos da última reforma estão à beira do esgotamento — e em breve será necessária outra revisão nos critérios, a começar pela idade mínima de aposentadoria. Se a Câmara aprovar esse contrassenso, não restará alternativa a Lula senão vetá-lo.
Além da punição ao golpismo militar
Por Folha de S. Paulo
Prisões rompem com impunidade histórica no
país, mas é preciso avançar em ajustes institucionais
Vetar fardados da ativa em cargos políticos,
rever pensões das Forças e mudar currículos das academias militares são medidas
necessárias
Três generais e um almirante de quatro
estrelas, além de um ex-comandante em chefe das Forças
Armadas que detinha a patente de capitão, começaram a
cumprir pena por tentativa de golpe de Estado e outros crimes
associados. São aguardadas novas sentenças para militares de currículos menos
vistosos. Não se pode subestimar o peso histórico dessas condenações.
Desde a proclamação da República, em 1889,
ela própria fruto de uma quartelada, militares intervêm anticonstitucionalmente
na política brasileira sem ser responsabilizados por isso. Mesmo em casos de
tentativa fracassada, os golpistas eram beneficiados por anistias. Não há
dúvida de que a impunidade alimentou a tradição autoritária.
A inédita responsabilização põe o Brasil num
lugar melhor em institucionalidade. Melhor, mas ainda aquém do ideal.
Eleito graças ao apreço da sociedade pela
democracia, Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
tem sido especialmente cauteloso no trato com as Forças Armadas. Seu governo dá
respaldo ao trabalho punitivo do Supremo Tribunal Federal (STF), mas evita
ao máximo criar arestas com os militares.
Tem papel central nessa tarefa o ministro da
Defesa, José Múcio, um político moderado com prestígio entre os comandantes.
Compreensível, a estratégia de apaziguamento
abraçada por Lula implica, no entanto, deixar de lado aperfeiçoamentos
institucionais necessários para a
despolitização das Forças Armadas.
O governo parece ter perdido o interesse em
iniciativas como a proposta de emenda constitucional 21/2021, que proíbe
militares da ativa de assumir cargos de natureza civil —estes ficariam
restritos aos da reserva.
Recorde-se que um dos artifícios empregados
por Jair
Bolsonaro (PL) para cooptar fardados
foi regalá-los com postos políticos na administração, por vezes com
consequências trágicas como no caso do general Eduardo
Pazuello à frente do Ministério da
Saúde durante a pandemia.
Também não se fala mais em mudar os
currículos das academias militares para reforçar a educação institucional dos
cadetes. Urge sepultar a ideia de que militares exercem algum tipo de poder
moderador na República.
Outro tema importante —aí já não mais para
evitar golpes, mas por uma questão de justiça fiscal— é o sistema
previdenciário das Forças, repleto
de privilégios injustificáveis mesmo levando em conta as
peculiaridades da carreira. Sob Bolsonaro, a correta e tardia reforma das
aposentadorias de 2019 poupou a caserna de normas para conter o enorme déficit
de seu regime.
É visível que se adota certo pragmatismo no
trato de tais questões, de modo a evitar conflitos pouco depois de superado o
risco de recaída no golpismo armado. Deve-se ter em mente, no entanto, que a
agenda de adequação das Forças à normalidade institucional ainda não está
completa e que em algum momento será preciso retomá-la.
A guerra do crime organizado no Brasil
Folha de S. Paulo
Com ascensão das facções, país passa do 10º
ao 9º lugar no número de mortes por embates armados no mundo
Entre 2024 e 2025, ocorreram 7.108 mortes por
conflitos no Brasil, ante 6.640 no período anterior; Ucrânia e Gaza estão no
topo da lista
O crime organizado, trazido ao centro do
debate público brasileiro com a Operação Carbono Oculto contra o PCC e a mortífera
ação da polícia do Rio de Janeiro contra o Comando
Vermelho, coloca o Brasil em infame posição de destaque no cenário da violência mundial.
Na décima edição do anuário Pesquisa
de Conflitos Armados do Instituto Internacional de Estudos
Estratégicos (IISS, na sigla em inglês), o país segue listado entre os 36 que
vivem uma guerra —ainda que não seja um confronto clássico entre Estados, como
o que destroça a Ucrânia.
No ranking de mortes decorrentes de
conflitos, o país foi do décimo lugar na edição anterior, com 6.640 vítimas,
para o nono lugar, com 7.108 vítimas de julho de 2024 a junho de 2025, o
período anual analisado.
Trata-se de um recorte específico dentre as
44,1 mil mortes violentas intencionais que ocorreram no Brasil no ano passado,
segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mas indica a aproximação do
país da realidade mais geral da América
Latina, onde o crime se
diversifica rumo à capilaridade na economia formal sem deixar
seu modus operandi violento para trás.
É o que se vê no México,
por exemplo, o sétimo colocado na lista de mortes. Na Colômbia,
mais distante na 19ª posição, dá-se o mesmo, com o agravante do histórico do
domínio territorial por narcoguerrilhas que legou ao país o terceiro lugar
mundial em número de deslocados internos do IISS (7,2 milhões).
A má governança está associada à violência.
Apenas 8 das 36 nações com conflitos superam a nota 5, na escala de 0 a 10 do
Índice de Democracia da britânica Economist Intelligence Unit; o Brasil está no
meio, com 5 pontos.
Ademais, dos países elencados pelo IISS,
só Israel tem
uma percepção de corrupção acima de 50 no sistema de avaliação da Transparência
Internacional —no qual 0 é o pior nível, e 100, o melhor; o Brasil alcança
apenas 34.
Os atores não estatais se estabeleceram no
cenário da conflagração global, mas nele duas guerras se impõem como as maiores
ceifadoras de vidas.
O destaque foi o recrudescimento da Guerra da
Ucrânia, com 87,5 mil civis e combatentes mortos, 135% a mais do que no período
anterior —e isso levando em conta a precariedade do cálculo admitida pelo IISS,
que depende de fontes abertas, como relatos jornalísticos.
Já o arrefecimento na Faixa de Gaza levou o conflito do topo ao segundo lugar do ranking. Lá, morreram 21 mil pessoas, ante 41,3 mil na aferição passada.
Um desfecho amargo
Por O Estado de S. Paulo
A prisão inédita de um ex-presidente e
militares de alta patente por tentativa de golpe é um avanço histórico
inegável, mas a condução do processo pelo STF deixa fissuras que o País precisa
discutir
O trânsito em julgado da Ação Penal 2.668 no
Supremo Tribunal Federal (STF), ao menos em tese, encerra o desdobramento
jurídico de um dos eventos mais dramáticos da história republicana do País. Um
ex-presidente da República, três generais de exército e um almirante de
esquadra foram julgados, condenados e presos por sua participação em uma
tentativa de golpe de Estado. Tão profunda foi a erosão institucional provocada
por Jair Bolsonaro que apenas uma resposta igualmente drástica e inédita seria
capaz de se contrapor à insubordinação de civis e militares que com ele se
insurgiram contra a ordem constitucional.
Nesse sentido, o início do cumprimento das
penas a que foram condenados Bolsonaro, Augusto Heleno, Walter Braga Netto,
Paulo Sérgio Nogueira e Almir Garnier – figuras cuja trajetória na caserna foi
moldada pela nostalgia autoritária e pela crença na superioridade moral dos
militares – representa uma inflexão histórica digna de registro. Gerações de
brasileiros cresceram cientes de que militares de alta patente sempre gozaram
de um tipo de imunidade tácita, como se a farda lhes conferisse salvo-conduto
para interferir no curso da vida política da Nação. Não mais.
Mas a firmeza da responsabilização, sobretudo
vinda do Poder Judiciário, não elide a necessidade de autocontenção. É
justamente aqui que nos vemos no dever de destacar que o encerramento formal da
ação penal contra os golpistas não esconde sua zona de sombra. Como este jornal
apontou seguidas vezes, o processo foi permeado por decisões que excederam as
fronteiras de competência, de colegialidade e de proporcionalidade das penas em
relação às condutas típicas. A alta concentração de poder no ministro relator,
Alexandre de Moraes, ainda criou o ambiente em que a resposta ao golpismo por
vezes se deu por meio de práticas que, em circunstâncias ordinárias, seriam
frontalmente repudiadas. O Supremo, escorado na gravidade do momento, abriu
exceções que tisnaram princípios basilares do próprio Estado de Direito que diz
defender.
Não foram poucas as decisões da Corte no
curso desse processo que alimentaram a desconfiança de uma parcela expressiva
da sociedade – e da qual fazem parte cidadãos sem a mínima afinidade com o
extremismo bolsonarista. Houve censura prévia, banimento de contas em redes
sociais e prolongamento indefinido de inquéritos opacos e imprecisos, além de
decisões monocráticas de impacto profundo tanto na vida dos diretamente
afetados por elas, como para a vida institucional do País. Até a própria
certificação do trânsito em julgado da Ação Penal 2.668 foi açodada, sem que
Moraes aguardasse o prazo derradeiro para a oposição de embargos infringentes –
ainda que estes fossem rejeitados por ele em juízo de admissibilidade à luz da
jurisprudência da Corte.
É natural, portanto, que muitos cidadãos se
inquietem diante de um processo que, embora tenha levado criminosos à cadeia,
também produziu fissuras institucionais. Não há o que celebrar.
A jovem democracia brasileira pode ter
suplantado a desordem golpista, mas é forçoso dizer que não saiu ilesa dessa
batalha. Persiste um sentimento difuso de descrença nas instituições,
alimentado não só pela tentativa de ruptura liderada por Bolsonaro, como também
pela percepção de que, na defesa da ordem constitucional, o STF se permitiu
flexibilizações preocupantes. Para amadurecer, a democracia não pode se deixar
triunfar à custa de si mesma.
Se o País realmente deseja se blindar contra
novas tentativas de golpe, decerto o maior propósito de todo esse processo, tem
de travar uma discussão profunda, que extrapole a necessária punição dos
criminosos. O Brasil não precisa escolher entre a omissão cúmplice diante do
golpismo e o voluntarismo judicial de contornos messiânicos. Essa história é
conhecida – e acaba mal.
O trânsito em julgado da Ação Penal 2.668 foi
um ponto de chegada, mas, em certo sentido, também pode ser um ponto de
partida. Se se quer que a democracia prevaleça no futuro não só como fortaleza
contra golpistas, mas como horizonte comum a toda a Nação, deve-se cultivar um
ambiente político e jurídico no País no qual a defesa do Estado de Direito
jamais torne a depender de atalhos ou de heróis.
O perigoso improviso de Trump
Por O Estado de S. Paulo
O plano mal ajambrado apresentado pelos EUA para o fim da guerra na Ucrânia adiciona confusão a um cenário já bastante volátil. Enquanto isso, a Rússia avança em sua agressão
A ofensiva diplomática lançada pela Casa
Branca chega num momento perigoso da guerra: a Rússia avança lentamente, o
Ocidente hesita e a Ucrânia enfrenta exaustão material e política. Nesse
cenário de fragilidade, o presidente dos EUA, Donald Trump, decidiu ditar a paz
com um plano improvisado de 28 pontos – um documento confuso que refletia tanto
as prioridades russas quanto as ambivalências do próprio presidente americano.
Após um domingo tenso em Genebra, líderes europeus e diplomatas ucranianos
conseguiram reduzir o esboço a 19 pontos, expurgando as piores aberrações. Mas
os elementos decisivos – território, Otan, garantias de segurança – seguem no
limbo, à espera de tratativas entre Trump e o presidente ucraniano, Volodmir
Zelenski. Nada ilustra melhor a temeridade desse tipo de diplomacia.
O vício de origem está em Washington. A política
externa de Trump sempre oscilou entre impulsos transacionais, desprezo por
alianças e indulgência com autocratas. Agora, essa mistura produz um risco
estratégico: um presidente mais interessado em anunciar um acordo rápido – e
colher dividendos políticos internos – do que em construir uma paz sustentável.
O caos em torno da autoria do plano, das contradições do secretário de Estado
Marco Rubio e do papel improvisado de enviados paralelos é sintoma de uma
diplomacia que não sabe se age como mediadora, como parte interessada ou como
caixa de ressonância do Kremlin.
Moscou joga com método. Vladimir Putin vê nas
negociações um instrumento para consolidar ganhos no campo de batalha e
empurrar o Ocidente para a capitulação psicológica. O recado da imprensa russa
é transparente: a Rússia “está vencendo” e não tem pressa. O Kremlin valoriza
um cessar-fogo apenas se ele congelar a linha atual e permitir pressão renovada
meses depois. Na sua perspectiva, qualquer discussão sobre a entrada da Ucrânia
na Otan, garantias de segurança ou restituição territorial só faz sentido se sedimentar
a derrota estratégica da Ucrânia.
A Europa tenta conter danos, mas também
tropeça. Sua diplomacia está fraturada entre pragmatismo, medo e uma fadiga
crescente. O contraste entre discursos altissonantes e a incapacidade de
cumprir metas militares básicas – como munição, defesa aérea e pressão sobre
ativos russos – mina sua credibilidade. A proposta paralela apresentada pelos
europeus, tentando suavizar o plano americano, só alimentou a narrativa russa
de que o Ocidente não consegue decidir o que quer.
Já a Ucrânia precisa negociar sem parecer
derrotada e resistir sem colapsar. Do que se sabe, a revisão do plano teria
removido absurdos, como um teto para seu Exército ou a anistia dos crimes de
guerra russos. Mas a pressão continua: discutir território a partir da linha
atual, aceitar limitações militares e confiar em garantias nebulosas. Zelenski
tenta ganhar tempo, manter o apoio americano e evitar um referendo que só
favoreceria Putin.
Nesse tabuleiro, três cenários se abrem. O
primeiro – e talvez mais provável – é a diluição das negociações, prolongando
uma guerra de atrito em que a Rússia avança lentamente e o Ocidente responde de
forma insuficiente. O segundo é uma paz suja – uma capitulação disfarçada que
congelaria ganhos territoriais russos, limitaria a soberania militar ucraniana
e pavimentaria uma guerra pior no futuro. Suas consequências seriam
desastrosas: desmoralização da ordem baseada em regras, estímulo a
revisionismos territoriais e risco ampliado de conflitos nucleares.
O terceiro – uma paz honrosa, ainda que
imperfeita – exigiria garantias robustas, liberdade para a Ucrânia definir seus
alinhamentos e meios militares para dissuadir novas agressões. É possível, mas
improvável neste momento: depende de coordenação ocidental, firmeza estratégica
e de um governo americano disposto a resistir à tentação do acordo fácil. Nada
disso está garantido. Ao contrário.
É cedo para decretar o fracasso de Genebra,
mas tarde para ilusões. Se a paz que emergir desse processo não reforçar a
soberania ucraniana, a segurança europeia e a previsibilidade das regras
internacionais, será apenas o intervalo – provavelmente curto – entre guerras –
provavelmente maiores.
Uma vacina fundamental
Por O Estado de S. Paulo
Imunizante do Butantan é triunfo da ciência
nacional e será arma importante contra a dengue
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) acaba de aprovar o registro da Butantan-DV, o primeiro imunizante do
mundo em dose única contra a dengue. Trata-se de uma excelente notícia, uma vez
que, nos últimos anos, a enfermidade perdeu o caráter sazonal e passou a ser
uma ameaça permanente à população.
Fruto de um trabalho desenvolvido desde 2009
pelo Instituto Butantan, a vacina contra a dengue 100% brasileira será
incorporada ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) a partir do ano que vem e
será disponibilizada exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Como já vinha produzindo a vacina antes mesmo
da aprovação, o Butantan conta com um estoque de mais de 1 milhão de doses do
imunizante que já podem ser entregues ao PNI. Além disso, o instituto fechou
parceria internacional com a empresa chinesa WuXi para ampliar a produção, o
que deve permitir que mais 30 milhões de doses estejam disponíveis no segundo
semestre de 2026.
A Butantan-DV é indicada para pessoas de 12 a
59 anos, faixa etária que pode ser ampliada no futuro, a depender de novos
estudos. Estudo clínico com mais de 16 mil pessoas demonstrou que o imunizante
tem eficácia de 74% no público entre 12 e 59 anos. De um modo geral, as reações
adversas ao medicamento foram leves ou moderadas, como dor de cabeça.
A incorporação de mais um imunizante contra a
dengue ao calendário de vacinação, que já contava com a japonesa Qdenga (administrada
em duas doses), merece ser celebrada por mais de um motivo.
Primeiramente, como se sabe, tanto os casos
de contágio quanto os de morte em consequência da dengue cresceram
vertiginosamente nos últimos anos. Episódios de chuvas intensas e calor extremo,
cada vez mais frequentes, favorecem a proliferação do mosquito Aedes aegypti, o agente transmissor
da dengue.
Em 2024, o País bateu recordes tanto de casos
(mais de 6 milhões) quanto de óbitos por dengue (cerca de 6 mil). Apesar da
queda de 75% no número de casos confirmados em 2025 (de acordo com os dados do
Ministério da Saúde disponíveis até agora) e de 72% no número de mortes por
dengue, os patamares seguem elevadíssimos.
Basta lembrar que, quando o Butantan deu
início ao trabalho que agora resultou na vacina contra a dengue, vivia-se uma
crise sanitária, com mais de 1 milhão de casos registrados, número recorde até
então. Ou seja, apesar da queda verificada neste ano, o contágio segue
acelerado.
Mas além de um instrumento valioso no combate
a uma enfermidade que pode ser letal, a vacina brasileira contra a dengue é um
triunfo da ciência nacional, e prova de que, quando o País investe dinheiro,
tempo e seus melhores cérebros para desenvolver soluções para problemas
complexos, os resultados aparecem.
Como a pandemia de covid-19 demonstrou, a dependência exclusiva de cadeias de fornecimento globais, especialmente em situações de emergência, retarda a capacidade de reação do poder público. Agora, com a Butantan-DV, o Brasil tem condições não apenas de solucionar um grave problema de saúde interno, como posiciona-se para, futuramente, oferecer essa mesma solução ao mundo.
Senado cria ônus fiscal após disputa de poder
Por Valor Econômico
O presidente do Senado talvez tenha imaginado
causar uma derrota ao presidente Lula, mas a vingança recaiu sobre os
contribuintes
O Senado aprovou rapidamente, e sem votos
contrários, projeto de lei complementar que estabelece a aposentadoria especial
de agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias. Por 52 votos
favoráveis e duas abstenções, tornaram-se lei benefícios que foram praticamente
extintos do serviço público, como a aposentadoria integral pelo salário da
ativa e paridade com os salários de funcionários em exercício, que são
reajustados periodicamente. O relator do PLP 185, senador Vital do Rego
(MDB-PB), criou mais despesas para a União sem indicar a fonte dos recursos. Os
custos para um governo que tem dificuldades para cumprir o piso da meta fiscal
são significativos. O projeto saiu do papel para a realidade por um motivo
indecoroso: o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), não
gostou da indicação de Jorge Messias, atual Advogado-Geral da União, para a
vaga deixada por Luís Barroso no Supremo Tribunal Federal. Seu candidato era o
senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Há vários erros na condução do processo
legislativo do projeto de lei. O motivo da celeridade é o primeiro deles.
Compete ao presidente da República a indicação dos ministros do Supremo, e ao
Senado, aprová-la ou rejeitá-la. Alcolumbre pode ter várias razões para não
considerar Jorge Messias apto para o cargo e usar os melhores argumentos
técnicos para angariar votos para que os senadores não o ratifiquem. Não é a
qualificação técnica o que está em jogo, mas uma disputa de poder que
Alcolumbre esperava vencer. No mesmo cargo e nas mesmas circunstâncias, o
senador se insurgiu contra a indicação de André Mendonça para o STF feita pelo
então presidente Jair Bolsonaro. Perdeu a aposta, mas adiou por meses a sessão
do Senado que acabou aprovando-o.
Desta vez foi diferente. O presidente do
Senado talvez tenha imaginado causar uma derrota ao presidente Lula, mas, de
fato, a vingança recaiu sobre os cofres públicos e o dinheiro dos
contribuintes. Até mesmo porque o PT e membros dos partidos governistas
presentes votaram a favor do projeto de Vital do Rego. Uma Proposta de Emenda à
Constituição (a 14, de 2021) com a mesma finalidade, e garantindo aposentadoria
integral e paritária, foi aprovada pela Câmara dos Deputados em outubro por 426
votos e contou com 65 votos favoráveis do PT.
Os agentes comunitários são os primeiros
enviados do Estado para verificar in loco, nas residências, as condições de
saúde dos brasileiros, em um serviço de grande valor na prevenção de doenças e
encaminhamento da população que precisa de atendimento pelo Sistema Único de
Saúde. Da mesma forma, os agentes de combate a epidemias são os principais
caçadores e combatentes de doenças contagiosas, como o coronavírus e a dengue.
São 400 mil pessoas dedicadas a um trabalho que abrange 90% dos municípios
brasileiros.
O reconhecimento do valor desse trabalho e a
melhoria de suas condições (remuneração, aposentadoria etc), entretanto,
deveria se dar dentro das regras estabelecidas para todos. A volta da paridade
e da integralidade é um retrocesso perigoso na administração pública, pois abre
precedente para que outras categorias, com ou sem motivos, exijam os mesmos
benefícios. Com 20 anos de serviço, segundo o projeto, pode-se requerer a
aposentadoria aos 52 anos, no caso de homens, e 50, no de mulheres. A reforma
da Previdência feita em 2019 exige idade mínima de 65 anos para homens e 62
para mulheres.
Ainda que incorrendo no mesmo anacronismo
danoso aos cofres públicos da paridade e da integralidade, a PEC da Câmara
estabelecia tempo mínimo de 25 anos “exclusivamente no efetivo exercício de
suas funções”. O projeto aprovado pelo Senado permite aposentar-se com 15 anos
na função e 10 anos em cargos diversos. A PEC não estipulava idade tão inferior
à da reforma. Ela exige também a contratação dos agentes por meio de concurso
público, como prevê a Constituição, e o projeto aprovado pelo Senado, não, o
que pode configurar nova ilegalidade. Além disso, políticas de contratação e
aposentadoria, nos 2.100 municípios que têm regime próprio de previdência, são
competência das prefeituras, invadida pelo projeto do Senado, que também
interfere na PEC 66, aprovada, que parcelou a dívida previdenciária dos
municípios com regimes próprios.
O Senado, como a Câmara, mais uma vez criou
benefícios com custos para a União sem identificar a fonte de recursos para
bancá-los. Privilégios não são baratos. A Previdência estimou custos de R$ 24,5
bilhões em 10 anos. O relator Vital do Rego menciona algo entre R$ 14 bilhões a
R$ 17 bilhões, repartidos por União, Estados e municípios. A Confederação
Nacional dos Municípios aponta que o projeto acrescentará R$ 103 bilhões ao
déficit atuarial da previdência das prefeituras, hoje estimado em R$ 1,1
trilhão.
À Câmara dos Deputados compete corrigir os erros do Senado, mas não os fará em pontos importantes, como das aposentadorias integrais e com a mesma correção dos salários da ativa. O governo se prepara para questionar na Justiça, com razão, a aprovação de benefícios indevidos à custa dos contribuintes
Brasil avança no combate à dengue
Por Correio Braziliense
O país terá a primeira vacina contra a dengue
em dose única do mundo, fruto da parceria entre o Ministério da Saúde, o
Instituto Butantan e o laboratório chinês WuXi Biologics
O Brasil registrou, em 2024, quase 6,5 milhões
de casos de dengue e 5.972 mortes provocadas pela doença, segundo o Ministério
da Saúde. Números fora da curva, responsáveis por nova crise de falta de vagas
em hospitais e de outros tipos de assistência em saúde poucos anos depois da
pandemia da covid-19. Unidades da Federação viram indicadores aumentarem
drasticamente — em São Paulo, o número de mortes foi 50 vezes maior do que o
registrado em 2023; no DF, houve aumento de 584% de pessoas infectadas — e,
junto com eles, a cobrança por novas medidas de prevenção.
Um anúncio feito ontem pelo governo federal
traz respostas nesse sentido. O país terá a primeira vacina contra a dengue em
dose única do mundo, fruto da parceria entre o Ministério da Saúde, o Instituto
Butantan e o laboratório chinês WuXi Biologics. A Butantan-DV é indicada para a
faixa etária de 12 a 59 anos, e deve estar disponível no próximo ano, segundo o
ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Há 1 milhão de doses prontas para a
distribuição, o que amenizaria um novo ciclo agudo da doença esperado para a
próxima temporada.
A dengue é transmitida pelo Aedes aegypti,
que se prolifera no verão, entre outubro e maio, quando a chuva é mais
recorrente, mas é certo que os cuidados com o controle da doença precisam ser
tomados durante todo o ano. O mosquito, inimigo perigoso da saúde humana, se
reproduz nas poças d'água e em quaisquer outros locais de água parada limpa ou
suja, inclusive em lixos descartados incorretamente, nos quais pode haver
acúmulo do líquido. Isso ocorre tanto nos espaços públicos, principalmente
urbanos, quanto domésticos. Daí a preocupação dos sanitaristas quanto aos
cuidados necessários para conter a propagação do mosquito.
A dengue é responsável por pelo menos 11
complicações e sequelas, como sangramentos, desidratação grave, problemas no
fígado e neurológicos, síndrome de Guillain-Barré, complicações cardíacas,
respiratórias, renais, pancreatite aguda e destruição das fibras musculares. Um
elenco de danos que exige, em alguns casos, internação hospitalar. Diante de
tantos efeitos negativos à saúde, a chegada de uma nova frente de prevenção
precisa ser comemorada.
Além da produção do Butantan-DV em larga
escala, há, porém, o desafio de convencer os ainda resistentes às imunizações a
aderir a esse novo pacto coletivo pela saúde. Engrossar o bloco dos antivacinas
é expor a própria vida a riscos desnecessários e também os demais. O próprio
Butantan fez projeções indicando que não vacinados representaram 75% das mortes
por covid-19 nos primeiros 10 meses de 2021. A lógica se repete para os outros
imunizantes.
O infectologista André Bon, em recente artigo publicado pelo Correio, faz uma advertência já no título à importância de um enfrentamento à dengue focado na coletividade: A dengue se alimenta do que deixamos de fazer. Quem rejeita a vacina e as orientações dos médicos colabora para aumentar o número de casos e de hospitalizações por casos graves, alerta o médico. "A proteção depende do entorno, do bairro, da cidade. Precisamos abandonar a ideia de que saúde pública é responsabilidade apenas das autoridades sanitárias. Ela é, antes de tudo, responsabilidade pública." Ou seja, ainda que o poder público cumpra o seu dever e reforce as medidas preventivas — com investimentos em pesquisas que geram novos imunizantes, por exemplo —, é o exercício da cidadania que faz a diferença.
Prisão de Bolsonaro fortalece a democracia
Por O Povo (CE)
Os que agora falam em "anistia"
para "pacificar" o Brasil, talvez esqueçam que o perdão em casos
assim, em vez de promover o equilíbrio democrático, torna-se um estímulo para
novas tentativas de golpe
O ex-presidente Jair Bolsonaro iniciou nesta
quarta-feira o cumprimento da pena a que foi condenado por tentativa de golpe
de Estado, entre outros crimes, recebendo uma pena de 27 anos de prisão.
Portanto, o processo está encerrado, tendo ocorrido o "trânsito em
julgado", quando não cabem mais recursos, iniciando-se o cumprimento da
pena.
Aliados de Bolsonaro no chamado "núcleo
crucial" da trama golpista, entre eles quatro militares, também foram
presos, sem nenhuma intercorrência. Outro condenado, o deputado Alexandre
Ramagem, delegado da Polícia Federal, encontra-se foragido nos Estados Unidos,
em Miami.
O Supremo Tribunal Federal (STF) escreveu um
feito inédito na história do Brasil, pois esta foi a primeira vez que militares
das mais altas patentes das Forças Armadas — incluindo três generais e um
almirante — foram condenados por tentativa de golpe de Estado. A prisão de um
ex-presidente, pelo mesmo motivo, também é um fato inédito.
Relator do processo no STF, o ministro
Alexandre de Moraes, determinou que Bolsonaro iniciasse o cumprimento da pena
em uma cela na Superintendência da Polícia Federal, em Brasília, onde cumpria
prisão preventiva desde sábado.
O julgamento e a prisão dos líderes golpistas
e dos participantes da invasão e depredação da sede dos três poderes em
Brasília, no dia 8 de janeiro, mostraram que as instituições democráticas,
especialmente o STF, estão preparadas para defender a democracia. Durante o
julgamento, os agora condenados dispuseram do devido processo legal, com o
direito ao contraditório, à ampla defesa e o acesso à Justiça, como deve ser em
um Estado Democrático de Direito.
Eram justamente esses instrumentos
democráticos que os golpistas queriam destruir para estabelecer um regime
autoritário no Brasil, mantendo o então presidente Jair Bolsonaro no poder,
após ele ser derrotado nas eleições presidenciais.
Os que agora falam em "anistia"
para "pacificar" o Brasil, talvez esqueçam, que o perdão em casos
assim, em vez de promover o equilíbrio democrático, torna-se um estímulo para
novas tentativas de golpe, como já ocorreu tantas vezes na história do Brasil,
inclusive em 1964. Saudosistas da ditadura civil-militar estavam entre os
incentivadores e promotores dessa nova tentativa golpista. Portanto, punir
aqueles que atentam contra o regime democrático funciona como um alerta de que
haverá consequências, nos termos da lei, para aqueles que se atreverem a romper
com a ordem constitucional.
Até agora, nenhuma comoção ou violência ocorreu com o desfecho do julgamento de Jair Bolsonaro e seus cúmplices, apenas protestos de aliados e pequenas manifestações de partidários do ex-presidente. Porém, isso faz parte do jogo político, protegido pela democracia que Bolsonaro queria destruir, mas que saiu fortalecida do embate com os golpistas.

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