domingo, 3 de julho de 2016

Opinião do dia – Antonio Gramsci

Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa, com aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como sua expressão por sua classe ou fração de classe. Quando se verificam estas crises, a situação imediata se torna delicada e perigosa, pois abre-se o campo ás soluções de força, à atividade de potências ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos. Como se formam estas situações de contraste entre representantes e representados, que, ´a partir do terreno dos partidos (organizações de partido em sentido estrito, campo eleitoral-parlamentar, organização jornalística, reflete-se em todo o organismo estatal, reforçando a posição relativa do poder da burocracia (civil e militar), da alta finança, da igreja e, em geral de todos os organismos relativamente independentes das flutuações da opinião pública? O processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente que ocorre ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra), ou porque amplas massas (sobretudo de camponeses e de pequenos burgueses intelectuais) passaram subitamente da passividade política para uma certa atividade e apresentam reinvindicações que, em seu conjunto desorganizado, constitui uma revolução. Fala-se de “crise de autoridade”: e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto.
-------------------------------
Antonio Gramsci (1891-1937). Cadernos do Cárcere, v. 3. p.61. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007.

Alvos da Lava Jato no PMDB concentram 2/3 das doações

• Dos mais de R$ 1 bilhão doados a candidatos a governos e ao Senado em 2010 e 2014, R$ 669 milhões foram destinados a Estados dominados por ‘caciques’

Daniel Bramatti - O Estado de S. Paulo

Os redutos dos peemedebistas que são alvos da Operação Lava Jato receberam, nas eleições de 2010 e 2014, um volume de doações desproporcional ao tamanho de seu eleitorado. As campanhas mais ricas do PMDB, em termos relativos, não foram as dos Estados maiores, mas as dos comandados por “caciques” locais.

Os 12 Estados de alvos da Lava Jato concentram apenas um terço dos eleitores do País, mas eles receberam R$ 2 de cada R$ 3 (66%) doados a campanhas majoritárias do PMDB nas duas últimas eleições para governador e senador.

Nesses mesmos locais, candidatos, comitês e diretórios do PT e do PSDB receberam, respectivamente, apenas 25% e 22% do total doado para as campanhas estaduais – o que mostra que as prioridades eleitorais de petistas e tucanos foram muito diferentes das do PMDB.

Parte significativa do dinheiro arrecadados pelos três partidos veio de empreiteiras investigadas na Lava Jato. Há indícios de que doações eleitorais tenham sido feitas para “lavar” propinas resultantes de desvios de recursos públicos. No caso do PMDB, o ex-senador Sergio Machado afirmou, em proposta de delação premiada, que propinas destinadas a José Sarney e Romero Jucá eram, por vezes, disfarçadas como doações oficiais de campanha aos diretórios do partido no Maranhão e em Roraima, respectivamente.

Relator pede bloqueio de R$ 198 milhões por fraude no Maracanã

• TCE decidirá terça se pune empreiteiras e congela repasses futuros

José Graciosa, responsável pelo caso, pede a condenação da Odebrecht e da Andrade Gutierrez; segundo delator, reforma rendeu propina ao tribunal e a Sérgio Cabral

O Tribunal de Contas do Estado decidirá na terça-feira se a Odebrecht e a Andrade Gutierrez terão R$ 198 milhões bloqueados, em contratos com o governo do Rio, como punição por irregularidades na reforma do Maracanã, contam Chico Otavio e Juliana Castro. O conselheiro José Gomes Graciosa, autor do pedido, é relator dos processos. Em delação, executivo da Andrade disse que o TCE e o ex-governador Sérgio Cabral receberam propina pela obra, que foi orçada em R$ 705 milhões, mas custou R$ 1,2 bilhão.

Na marca do pênalti

• Relator no TCE propõe que empreiteiras tenham R$ 198 milhões bloqueados por fraude no Maracanã

Chico Otavio e Juliana Castro - O Globo

O Tribunal de Contas do Estado (TCE) decidirá terça-feira se bloqueia R$ 198 milhões em contratos das empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez com o governo fluminense, incluindo a participação delas em consórcios da Linha 4 do Metrô e do BRT Transolímpico. A punição será pedida pelo conselheiro José Gomes Graciosa, relator dos processos no tribunal sobre a reforma do Estádio do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014, por conta de irregularidades encontradas na obra.

A sessão plenária acontecerá dias após a divulgação de trecho da delação premiada de Clóvis Renato Numa Peixoto Primo, ex-dirigente da Andrade Guitierrez, na qual ele afirma ter autorizado o pagamento de propina para o TCE no valor de 1% do contrato do Maracanã, reformado por um consórcio formado pela Andrade Guiterrez, pela Odebrecht e pela Delta. Na mesma delação, ele também disse que pagou 5% de propina ao ex-governador Sérgio Cabral.

Pelo contrato original, o governo do estado deveria ter pagado R$ 705 milhões pela reforma, mas a inclusão de 16 aditivos fez a obra saltar para R$ 1,2 bilhão. Entre 2010 e 2014, o TCE instaurou 21 processos para analisar o contrato, os 16 aditivos e o resultado de quatro auditorias especiais da obra. Embora os auditores do tribunal tivessem apontado irregularidades e pedido a devolução de R$ 93 milhões (à época), até hoje o TCE não havia tomado qualquer decisão sobre o assunto.

Auditorias detectaram sobrepreço
A retomada do caso coincidiu com a criação de uma força-tarefa no Ministério Público Federal do Rio para investigar os desdobramentos da Operação Lava-Jato no estado. A primeira providência do TCE foi unificar as relatorias dos processos, até então distribuídas para conselheiros diversos (oito estavam sem designação), nas mãos de Graciosa. Em seguida, tiveram de esperar um prazo de 15 dias úteis até a sessão de terça-feira, na qual o relator levará o seu voto.

Petistas afastam risco de Vaccari fazer delação

• Preso há mais de 1 ano, ex-tesoureiro quer que partido reconheça eventuais crimes

Fernanda Krakovics - O Globo

Embora o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto esteja propondo que o partido faça uma espécie de acordo de leniência no âmbito da Operação Lava-Jato, dirigentes petistas afirmam que ele não cogita fazer delação premiada. Condenado a 24 anos de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa, Vaccari cumpre pena há um ano e dois meses em Curitiba.

— A estratégia dele é permanecer em silêncio. Isso não é comportamento de quem quer delatar. Ele é extremamente turrão — disse um integrante da cúpula do partido.

Segundo dirigentes do PT, o extesoureiro propôs que o partido negocie um acordo de leniência, o que foi descartado. Esses acordos são uma espécie de delação premiada para pessoas jurídicas. Empresas colaboram com as investigações em troca de um alívio nas punições administrativas, como a proibição de fazer contratos com o poder público.

Integrantes da direção do PT afirmam que essa figura jurídica não existe para partidos e que, de qualquer forma, não livraria dirigentes petistas de eventuais condenações criminais. Outra preocupação é com o desgaste político de tal iniciativa.

— O PT teria que dizer que cometeu um crime, que fez lavagem de dinheiro, caixa dois, e a Justiça estabeleceria uma multa, mas isso não livra as pessoas físicas. Os executivos das empresas foram todos condenados. Eles estão tendo redução de pena porque fizeram delação — afirmou um dirigente do PT, ressaltando que estava falando em tese e que o partido não cometeu crimes.

Vaccari estaria tentando atenuar sua situação sem trair o partido. Petistas afirmam que, para fechar acordo de delação, o ex-tesoureiro teria que entregar o ex-presidente Lula , e isso ele não vai fazer, segundo eles.

— Ele está pressionando o partido a aceitar uma coisa no meio do caminho. O cara que é petista histórico, como ele, não faz delação. — disse um parlamentar do PT.

Congresso está em débito com a sociedade, alerta procurador sobre combate à corrupção

• 'Estamos com mais de dois anos da Lava Jato, identificamos muita coisa errada e o que a gente fez para evitar que novas coisas erradas voltem a ser praticadas?', questiona Hélio Telho, do Ministério Público Federal, em Goiás

Julia Affonso – O Estado de S. Paulo

O ditado ‘é melhor prevenir do que remediar’ é de muito valor para o combate à corrupção. Nas palavras do procurador da República Hélio Telho, do Ministério Público Federal, em Goiás, prevenir significa evitar que ‘a tranca seja arrombada’.

“Depois da tranca arrombada, é muito mais difícil consertar o estrago, reparar o dano e muito mais caro também conseguir a punição dos responsáveis”, afirma Hélio Telho.

Em maio, o procurador e seus colegas do Ministério Público Federal, em Goiás, denunciaram executivos da Valec, empresa estatal do setor ferroviário, por corrupção, lavagem de dinheiro, cartel e fraude à licitação nas obras de trechos das ferrovias Norte-Sul e Interligação Oeste-Leste no Estado. A acusação formal foi a primeira contra os investigados da Operação O Recebedor, desdobramento da Lava Jato.

Em março deste ano, a Lava Jato, maior operação contra a corrupção já feita no País, completou 2 anos. Na avaliação do procurador, pouco se fez no Poder Legislativo para evitar a repetição dos escândalos de corrupção.

“O Congresso Nacional está em débito com a nossa sociedade. A gente tem visto seguidos escândalos de corrupção, um atrás do outro, e a gente não vê o Congresso Nacional se mexer para fechar as brechas e criar medidas que previnam e evitem a corrupção. Pelo contrário. O que a gente tem visto, volta e meia são espasmos no sentido de aprovar leis que dificultem o combate à corrupção e não que fechem as brechas do nosso sistema legal. Isso é muito preocupante”, destaca Hélio Telho.

Leia a íntegra da entrevista com o procurador da República Hélio Telho

Bancada do PMDB cogita se abster para ajudar Cunha

• Parlamentares do partido resistem a votar pela cassação do mandato

Leticia Fernandes e Simone Iglesias - O Globo

-BRASÍLIA- Na tentativa de contribuir para um desfecho menos humilhante para o presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a bancada do PMDB cogita propor uma abstenção coletiva na votação da cassação de Cunha no plenário, prevista para acontecer no final deste mês.

Entre parlamentares peemedebistas, a ideia é vista como uma “saída mais honrosa” para o presidente afastado e também para o partido. A abstenção pode favorecer Cunha, que escapará da cassação, caso menos de 257 dos 513 deputados votem contra ele.

— Há os que pensam em ajudá-lo e defendem que a melhor forma seria fechar posição pela abstenção na bancada e deixar para os outros partidos cassá-lo. Se houver liberação e cada um no PMDB votar como quiser, sobram poucos ao lado dele — avaliou um parlamentar peemedebista que pediu reserva ao GLOBO.

Um dos vice-líderes do partido contou que, se os votos da bancada do PMDB — que tem 66 deputados — fossem determinantes, estariam dispostos a salvar Cunha da perda do mandato. Mas, como o clima generalizado entre as legendas na Câmara é o de que a cassação será inevitável, peemedebistas creem que a abstenção de parte da bancada será um gesto de “fidelidade” a Cunha.

— É uma conversa que todo mundo está evitando ter, mas a abstenção pode ser uma saída menos indelicada do partido, e Cunha foi nosso líder, amigo, um bom presidente da Câmara. Se o PMDB fosse o fiel da balança, a gente decidia a favor dele, mas a situação dele independe de nós, a maioria dos partidos vota pela cassação — disse.

Medo de desgaste político
Nos cálculos de correligionários de Cunha, dos 66 deputados da bancada, entre 10 e 20 deverão se expor e votar no plenário contra a cassação do presidente afastado, mas a maioria entre os demais pode se abster. A ideia de abstenção coletiva resolve ainda a saia-justa de deputados que não querem “queimar” o peemedebista, tampouco pretendem bancar o desgaste político, às vésperas de uma eleição municipal, de votar para favorecer Cunha.

A eventual abstenção não tem concordância de todos na bancada. Há a percepção de que, se o PMDB tomar essa iniciativa, estará sendo benevolente com Cunha, mas por outro lado, deixará muitos deputados sem discurso em meio à campanha municipal.

Lula ajudou OAS a obter obra de R$ 1 bi na África, diz mensagem

Mario Cesar Carvalho, Bela Megale – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Uma mensagem apreendida pela Polícia Federal no celular do empresário Léo Pinheiro, sócio da OAS, diz que a empreiteira conquistou uma obra de cerca de R$ 1 bilhão na Guiné Equatorial "com ajuda do Brahma".

Era esse o codinome usado por Pinheiro para designar o ex-presidente Lula, segundo interpretação da Polícia Federal em análises feitas na Lava Jato.

A obra é uma estrada de 51 quilômetros que liga a capital da Guiné Equatorial, Malabo, a Luba, os dois principais portos daquele país africano. Bancada pelo governo, a obra foi contratada por US$ 320 milhões, o equivalente a pouco mais de R$ 1 bilhão.

A mensagem foi enviada em 31 de janeiro de 2013 por Jorge Fortes, diretor de Relações Institucionais da OAS em Brasília naquela época, para Pinheiro.

O objetivo da mensagem era que Pinheiro conseguisse, com a ajuda de um ministro cujo nome não é citado, que a presidente Dilma Rousseff colocasse a pedra fundamental da estrada.

O diretor da OAS dizia que a obra ficava ao lado do aeroporto onde Dilma desembarcaria em fevereiro de 2013.

Dilma visitou a Guiné Equatorial naquele mês, perdoou uma dívida de R$ 27 milhões do país, mas não há notícias de que tenha atendido o desejo do executivo da OAS.

A Guiné Equatorial é governada por um ditador, Teodoro Obiang, que se tornou aliado de Lula quando o ex-presidente decidiu que o Brasil deveria ter uma presença forte na África. Ele é o ditador africano que está há mais tempo no poder: 36 anos.

Antes de Dilma visitar a Guiné Equatorial, o filho do ditador, Teodorín Obiang, passou o carnaval no Rio e conseguiu escapar de um pedido de extradição feito pela França graças a ajuda de executivos da OAS.

Numa mensagem enviada a Pinheiro após o Carnaval de 2013, um diretor da empreiteira chamado César Uzeda diz o seguinte: "Nós avisamos a Teodorim na quarta-feira e ele deixou o Brasil, como a França pediu ao gov. brasileiro a extradição dele, havia o risco de ele ficar impedido de deixar o Brasil. Isto é mal [sic] para os negócios brasileiros lá. Vamos ver como fica a viagem de Dilma", dizia.

A França decretou a prisão do filho do ditador em 2012, após ele ter sido condenado naquele país por lavagem de dinheiro após comprar com recursos públicos a coleção de arte do estilista Yves Saint Laurent (1936-2008), por US$ 20 milhões. Teodorín também é alvo de uma apuração em São Paulo, onde tem imóveis e carros de luxo, por suspeita de lavagem de dinheiro.

O suposto lobby de Lula para empreiteiras brasileiras na África é investigado pelo Ministério Público Federal em Brasília, em uma apuração paralela à Lava Jato.

Nessa operação, o ex-presidente é investigado sob suspeita de ter recebido benefícios da OAS, como as obras de um sítio em Atibaia (SP) e de um apartamento tríplex em Guarujá (SP), em troca de apoio para conseguir obras no Brasil e no exterior.

A empreiteira também bancou a manutenção do acervo do ex-presidente em depósito da Granero, com gastos de cerca de R$ 1,3 milhão entre 2011 e 2016.

O Instituto Lula nega que o ex-presidente tenha recebido qualquer benefício ilícito da empreiteira e defende que o lobby para empreiteiras brasileiras no exterior é um dos atributos de quem ocupou o cargo de presidente. Cita as atividades de Bill Clinton, ex-presidente dos EUA.

Outro lado
O Instituto Lula não se manifestou sobre a citação ao ex-presidente em mensagens de Léo Pinheiro, sócio da OAS, indicando que o petista ajudou a empresa entrar no mercado da Guiné Equatorial.

"Não comentamos vazamentos ilegais de mensagens de autoria de outras pessoas", diz a nota.

Anteriormente, Lula já disse que é legítimo que um ex-presidente atue para defender interesses de empresas nacionais no exterior.

Edward Carvalho, advogado de defesa de Léo Pinheiro, não quis se pronunciar.

Um pouco de bom senso - Fernando Henrique Cardoso

- O Estado de S. Paulo

Descartes, em fase famosa, escreveu que o bom senso é a faculdade mais bem distribuída no mundo. Na época, bon sens se referia à razão. Traduzindo para hoje: a inteligência das pessoas se distribui entre elas seguindo uma curva normal. Pode ser. Mas o common sense dos americanos é outra coisa: a sabedoria. Seja no sentido francês, seja no inglês, parece que o mundo de hoje perdeu o senso.

De hoje? Muito comumente os que tomam decisões pouco se preocupam com os dias futuros. O tempo passa e quem paga a conta são as gerações futuras. A falta de senso vem de longe. Basta olhar para o que vimos ainda esta semana. Seja o Isis, seja quem for o responsável pelos ataques terroristas na Turquia, eles são respostas irracionais a atos também irracionais do passado. Não foi o colonialismo inglês que partiu o Oriente Médio em Estados-nação que controlam etnias, religiões e culturas distintas? E na África, os ingleses não contaram com a ativa cooperação dos franceses e demais potências ocidentais para criar países artificiais? Mais recentemente não foram os americanos no Iraque, os europeus na Líbia e todos juntos na Síria que fizeram intervenções para restabelecer o “bom governo” e deixaram os países divididos e ingovernáveis? E não foram outras pessoas que pagaram com a vida, décadas depois, o ardor missionário dos terroristas de vários tipos?

Mais recentemente a maioria dos britânicos votou por separar o Reino Unido da União Europeia. Só depois eles se assustaram. Amanhã, acaso os americanos não podem pregar uma peça neles próprios (e em todo o mundo) e eleger o Trump? Espero que não. Mas em qualquer dos casos (e ainda que os ingleses tenham lá seus argumentos contra a “burocracia de Bruxelas”), as consequências, como a sabedoria de Eça fazia o conselheiro Acácio dizer, vêm sempre depois.

Razões da agonia - Luiz Werneck Vianna

- O Estado de S. Paulo

À primeira vista a cena política brasileira atual defronta o observador com uma terra devastada, varrida por ódio e ressentimento, chão calcinado onde nada de bom poderia medrar. Tal percepção poderia levá-lo até a conjeturar se não estaria diante de um caso perdido, uma sociedade que perdeu o rumo, condenada à autoextinção, como no caso de culturas do México pré-hispânico e de tantas outras apenas conhecidas pelos vestígios arqueológicos que deixaram. Mas basta reorientar seu olhar para a vida cotidiana, fechar as páginas dos jornais e fazer ouvidos moucos aos noticiários das rádios e da TV, principalmente ignorar o que se vocifera nas redes sociais da internet, para que corrija sua avaliação, pois tudo ali segue no seu fluxo usual no mundo do trabalho e nas suas principais instituições. Fora de foco, portanto, desvios imprevistos de curso.

A falta de comunicação entre política e sociedade é marca crônica da modernização brasileira, filha de um processo autoritário, que se manteve por gerações, em que o Estado e suas agências dispuseram do poder discricionário de modelar uma sociedade à qual se recusou liberdade de movimentos. Quando se admitiu que seres subalternos tivessem o direito de se organizar em torno de seus interesses, tal direito foi condicionado por uma ação tutelar exercida pelo Estado, tal como na ordenação corporativa sindical criada na primeira era Vargas, mas que deixou à margem os trabalhadores do campo, então largamente majoritários na estrutura ocupacional do País.

Tirante o curto interregno dos felizes anos de meados de 1950 aos infaustos do pós-1964, momento em que as demandas por autonomia dos seres subalternos urbanos e rurais ganham força, o script das décadas seguintes de aceleração a ferro e fogo da modernização, levado a efeito pelo regime militar, tomou a sociedade como uma base passiva para a consolidação de um capitalismo autoritário, na esquecida conceituação de Otávio Velho no seu Capitalismo Autoritário e Campesinato. A sociedade foi transfigurada por uma ação que lhe veio de cima a partir de um plano de estado-maior, enquanto, na dimensão da política, era imobilizada coercitivamente.

Profissionais da mentira – Ferreira Gullar

- Folha de S. Paulo

Tenho um amigo, conhecido por Guiú, para quem dizer que o PT é o partido da mentira não está longe da verdade. E que os petistas nada fazem para apagar essa má fama e, sim, pelo contrário, só contribuem para confirmá-la.

A má fama –diz o Guiú– vem de longe, desde a origem do PT, uma vez que nasceu prometendo combater a corrupção e, mal ganhou algum poder –como em Santo André–, já começou a se apropriar do dinheiro público, o que resultou no assassinato do prefeito Celso Daniel. Outro exemplo teria sido o escândalo do mensalão, que envolveu o alto escalão do partido, inclusive o próprio Lula, que, graças à mentira reinante entre os petistas, conseguiu se safar.

Daí em diante –afirma esse amigo–, a mentirada petista só se confirmou e ampliou, ficando claro que, em vez de combater a corrupção, o PT se revelou o responsável pelos mais espantosos exemplos de apropriação venal de dinheiro público de que se tem conhecimento na história brasileira.

A revelação mais recente, que teve como protagonista o ex-ministro Paulo Bernardo, revela o desvio de taxas pagas por servidores públicos em empréstimos consignados e que atingiu o montante de R$ 100 milhões. Esse dinheiro foi dado parte a políticos e parte ao cofre do PT. Mas os dirigentes petistas alegam ser tudo invenção dos adversários.

Pois bem: pode haver mentira maior do que afirmar que o impeachment de Dilma é um golpe? Vamos por partes: um golpe dado por quem, já que o processo de impeachment não partiu de nenhum partido? Um dos fundadores do PT, o jurista Hélio Bicudo, é um dos autores dessa ação penal, acompanhado por duas outras figuras que não pertencem a nenhum partido político, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal.

Enigmas e cenários – Fernando Gabeira

- O Globo

De novo na estrada mas preocupado com o Rio. Ao longo de observação e conversas, acho difícil os serviços públicos voltarem a funcionar na plenitude em curto prazo de tempo. Tenho a sensação, confirmada pelos números, de que os crimes crescem e o poder da polícia esmorece. Todas as vezes em que o Estado fraqueja, penso no papel da sociedade. Existe sempre o forte argumento de que é uma função do governo, pago com os impostos para garantir a segurança pública. Mas o que fazer quando o Estado está na lona?

Moradores do Catete compraram papel higiênico para a delegacia funcionar. Eles se uniram para evitar o pior. Mas o leque de possibilidades de intervenção social é mais promissor no campo de mecanismos de autodefesa. Nos últimos anos, comecei a olhar para o smartphone e me perguntar: o que é possível fazer com ele para aumentar a segurança do indivíduo?

Há cerca de dois anos, pensava num aplicativo que pudesse ser uma espécie de conselheiro de segurança, sobretudo mapeando áreas perigosas. Os dispositivos que existem trabalham em tempo real orientando o trânsito. Um roteiro de segurança depende de dados confiáveis sobre a taxa de incidentes ao longo do caminho. Há uma razão para vencer a resistência em registrar um assalto na delegacia, motivada pela desesperança na ação policial: um simples dado é importante para todos.

Um aplicativo voltado para a segurança poderia incluir também ícones de alarme, indicando o tipo de perigo, a localização da pessoa. Meus devaneios são secundários. O importante é que as pessoas que realmente trabalhem com o tema encontrem os múltiplos caminhos e as ferramentas de autodefesa através da informação.

Abuso das autoridades - Dora Kramer

- O Estado de S. Paulo

Avaliação corrente no Palácio do Planalto e no Congresso Nacional é a de que já foi possível, mas hoje não há mais chance de sucesso de qualquer acordo de troca da renúncia de Eduardo Cunha da presidência da Câmara pela manutenção do mandato de deputado, por falta de parlamentares dispostos ao suicídio político/eleitoral em sessão plenária com voto aberto.

Em outros tempos - aliás, não faz muito tempo, foi no ano de 2007 - o Senado aceitou escambo dessa natureza. Trocou a cassação de Renan Calheiros pela renúncia dele à presidência da Casa.

Assim como Cunha, Calheiros havia mentido aos seus pares, quando apresentou documentação fraudulenta para “comprovar” que tinha fontes de rendas lícitas o bastante para pagar a pensão alimentícia de uma filha, cujo sustento era, na verdade, garantido pela empreiteira Mendes Júnior.

Calheiros safou-se por 40 votos contra 35, em sessão fechada e votação secreta. Nesse período de menos de 10 anos, foi eleito de novo presidente do Senado e acumulou a carga pesada de 12 inquéritos no Supremo Tribunal Federal, sendo nove em decorrência do esquema de corrupção investigado pela Operação Lava Jato.

De onde os senadores podem dizer qualquer coisa, menos que a cigana os enganou a respeito da qualidade moral de seu comandante.

Vanguarda do atraso - Eliane Cantanhêde

- O Estado de S. Paulo

Rússia, Índia, África do Sul, Nigéria, México e mesmo a China, segunda maior economia do mundo, são países considerados emergentes e muito corruptos, como o Brasil. Mas com uma diferença: o Brasil é o único que está dando o exemplo, remexendo suas entranhas, expondo seus podres e discutindo ardentemente como construir um futuro mais decente. Onde mais se veem os maiores empreiteiros presos, os principais políticos denunciados, as instituições tão determinadas?

Com tanto dinheiro desviado dos cofres públicos, em tantas frentes e com tão variados personagens, é razoável dizer que o Brasil ganhou a medalha de ouro da corrupção antes mesmo da Olimpíada, como ironizou o jornal de mais prestígio no mundo, o The New York Times. Mas a avaliação ficaria mais correta e seria mais justa se também incluísse o Brasil como forte candidato a vencer a corrida contra a corrupção. O troféu é a Lava Jato.

Em contatos com embaixadas estrangeiras em Brasília, inclusive a dos Estados Unidos, a Transparência Internacional disse que o Brasil é um “case” a ser estudado, e nas duas pontas: como foi possível chegar a tal nível de corrupção? E como é o processo que permite descobrir tudo, expor ao público e começar a punir os culpados? A terceira ponta exige uma reflexão bem mais complexa: quais serão as consequências, o que vem em seguida?

A soma das partes – Gustavo Patu

- Folha de S. Paulo

Defensores de Dilma Rousseff comemoraram a conclusão da perícia do Senado que não detectou a participação da presidente hoje afastada nas ditas pedaladas fiscais -nome dado, não custa recordar, ao uso indevido de dinheiro dos bancos federais no pagamento de despesas do governo.

O laudo técnico pode ter lá sua importância nas formalidades do processo de impeachment, mas não basta para reescrever a história. Independentemente de quem assinava os papéis, as pedaladas já eram de conhecimento público bem antes da popularização do apelido.

Num exemplo particularmente revelador, noticiou-se, em agosto de 2014, que a Caixa Econômica estava em conflito com o Tesouro Nacional porque não conseguia receber os recursos necessários para o pagamento de benefícios como o seguro-desemprego e o Bolsa Família.

O caso havia chegado à Advocacia-Geral da União em maio daquele ano, e os atrasos se acumulavam desde 2013. Com isso, a CEF era obrigada a assumir a conta descoberta, enquanto o Tesouro ostentava despesas menores em seus balanços. A partir do episódio, pendências com o BNDES e o Banco do Brasil foram recordadas e/ou reveladas.

Compreensivelmente, a tese principal da defesa de Dilma nunca foi a do "eu não sabia". Procurava-se, isso sim, caracterizar a pedalada como uma operação corriqueira, praticada em outros governos (evitando, porém, comparar dimensões).

É provável -e lamentável- que tais desmandos tivessem merecido vista grossa se a ruína das contas públicas, mascarada até o desfecho das eleições, não tivesse levado o país a um colapso econômico e político.

Não por acaso, os aliados da presidente afastada se concentram em questionar em separado, até a minúcia jurídica, cada pedaço da acusação. Já os defensores do impeachment, explicitamente ou não, se apoiam no conjunto da obra.

A esquerda encontra a direita – Samuel Pessôa

- Folha de S. Paulo

No último mês, dois garotos, de 10 e 11 anos, foram mortos em confronto com a polícia. As duas crianças vinham de famílias carentes, com muitos irmãos.

Segunda esta Folha, pesquisa recente do Ministério Público de São Paulo sugere que a falta da figura paterna, caso de uma das famílias, pode explicar parte do problema do envolvimento de crianças e adolescentes com a criminalidade. Essa constatação, claro, não exime a polícia pelo uso de força desproporcional, resultando em mortes desnecessárias.

O sociólogo Jessé Souza, até recentemente presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), sugere, em dois volumes escritos com diversos colaboradores –"A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive" e "Os Batalhadores Brasileiros"–, que o ambiente doméstico representa fortíssimo fator perpetuador da pobreza.

Segundo Jessé, "a família típica da 'ralé' é monoparental, com mudanças frequentes do membro masculino, enfrenta problemas sérios de alcoolismo e de abuso sexual sistemático e é caracterizada por uma cisão que corta essa classe ao meio entre pobres honestos e pobres delinquentes".

O autoengano de Dilma Rousseff – Elio Gaspari

- O Globo

Dilma Rousseff disse que "o erro mais óbvio que cometi foi a aliança que fiz para levar a Presidência nesse segundo mandato com uma pessoa que explicitamente, diante do país inteiro, tomou atitudes de traição e usurpação". A doutora não gosta de reconhecer seus erros e é possível que essa frase seja mais um pretexto para falar mal de Michel Temer do que uma reflexão sobre sua ruína.

Como está cada vez mais próximo o dia em que Dilma Rousseff passará para a história restará uma pergunta: como foi que ela chegou a essa situação?

A aliança com o PMDB não foi um erro, foi o acerto que permitiu sua reeleição. Sem Temer na Vice-Presidência ela não ficaria de pé. Não foi Temer quem fritou Dilma, foram ela e o comissariado petista que tentaram fritar o PMDB.

Logo depois da eleição de 2014, sob os auspícios da presidente, o PT começou a dificultar a vida do PMDB. Fizeram isso de forma pueril. Sabiam que Eduardo Cunha era candidato à presidência da Câmara dos Deputados e acreditaram que poderiam derrotá-lo lançando o petista Arlindo Chinaglia. Eleger um petista em plena Lava Jato era excesso de autoconfiança. Acreditar que isso seria possível com a ajuda do PSDB foi rematada ingenuidade.

Quando o barco da prepotência petista começou a adernar, Dilma decidiu pedir socorro ao PMDB e convidou Temer para a coordenação política do governo. Ele não precisava aceitar, pois era vice-presidente da República. Em poucas semanas recompôs a base governista, mas coisas estranhas começaram a acontecer. Temer fazia acordos, os parlamentares cumpriam e o Planalto renegava as combinações. Em português claro: Temer fez compras usando seu cartão de crédito e Dilma não pagava as faturas. Ele foi-se embora e, aos poucos, juntou-se às multidões que pediam "Fora, PT" nas ruas. (Elas gritavam "Fora, PT", mas não pediam "Temer Presidente", esse é o problema que está hoje na cabeça de muita gente.)

O comissariado do PT achou que hegemonia política é coisa que se obtém a partir de um programa de governo. Gastaram os tubos e produziram ruína econômica e isolamento político.

Talvez o maior erro de Dilma tenha sido outro, fingir que não via a manobra silenciosa de Lula tentando substituí-la na chapa da eleição de 2014. E o maior erro de Lula foi não ter sentando diante de Dilma dizendo-lhe com todas as letras que queria a cadeira de volta.

Estação do meio - Míriam Leitão

- O Globo

O governo Temer não empolga, nem tem rejeição extremada. Nessa estação do meio em que o país está, com uma administração interina, o resultado da pesquisa de popularidade reflete sentimentos mistos em relação ao governo. Uma parte da população prefere esperar para ver o que vai dar, com muita cautela. As expectativas, embora hesitantes, estão melhores.

Na economia o país também está nesse sentimento mediano. Alguns indicadores começam a melhorar. A produção industrial mostrou estabilidade, depois de dois meses de recuperação, produzindo o melhor trimestre desde 2012. O desemprego permanece alto, mas a última pesquisa do IBGE captou uma desaceleração das demissões. A confiança das empresas e consumidores tem tido discretas melhoras. Na economia o clima é, igualmente, de esperar para ver, com um certo pé atrás.

Metas para o pós-Dilma – Editorial / O Estado de S. Paulo

Toda aposta séria na retomada do crescimento econômico depende, hoje, de uma hipótese crucial: a transformação do governo provisório em definitivo. O impeachment da presidente Dilma Rousseff é parte do cenário básico, embora essa condição nem sempre seja explicitada pelos analistas do mercado ou mesmo por membros da nova equipe econômica. O quase tabu foi rompido pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, numa entrevista à Agência Estado e à Rádio Estadão. “Podemos dizer com certeza que haverá crescimento, a não ser que haja reversão política muito forte, mas aí será outro quadro”, afirmou. Foi uma declaração realista, mas o desafio, é preciso reconhecer, ainda será enorme. Removido o maior entrave político, restará muito trabalho para repor o Brasil entre as economias com potencial para se expandir e, além disso, para participar da reconstrução do sistema global.

O governo, lembrou o ministro, só cumprirá esse papel se as suas previsões forem levadas a sério. A rápida aprovação da proposta de um teto para o gasto público, exemplificou, facilitará a recuperação da credibilidade. Já há sinais de expectativas melhores, como lembrou o ministro Meirelles, mas falta consolidar a confiança na economia e, em primeiro lugar, na política oficial.

Escambo intramuros – Editorial / Folha de S. Paulo

Dissemina-se a impressão de que o governo de Michel Temer (PMDB) se excede na concessão de benefícios a diversos setores com vistas a acumular força política para aprovar mudanças econômicas drásticas no Congresso Nacional.

O caráter interino com que exerce a Presidência, além disso, obriga o peemedebista a manter-se em estado de alerta. Ao menos até que se resolva em definitivo o afastamento de Dilma Rousseff (PT), senadores poderão lembrar a Temer que sua sobrevivência ainda depende deles -por mais que ninguém acredite no retorno da petista.

Ocorre que essas operações de escambo intramuros, na cidadela das castas política e burocrática, não raro resultam em estabilidade precária, compromissos espúrios e favorecimentos dos quais a sociedade quer se livrar.

Foi a farra de favores do Estado, legais ou corruptos, que trouxe o país à presente ruína.

Como se sabe, na conta da operação estão, por exemplo, reajustes para o Judiciário e outros servidores, reduções de impostos e uma renegociação por ora leniente demais com os Estados, tanto que já atiçou o interesse de prefeituras.

Supremo precisa garantir o papel social da imprensa – Editorial / O Globo

• Assiste-se ao aumento de ataques ao direto de informação por agentes públicos alérgicos à fiscalização e à exposição de suas mazelas com o dinheiro dos impostos

Se o vigor de uma democracia pode ser medido pelo grau de liberdade de informação, de expressão e de imprensa, o Brasil ainda precisa avançar para consolidar a convivência sob o regime democrático. O país estabeleceu esses direitos como cláusulas pétreas na Carta de 1988.

Assiste-se, porém, a um crescimento exponencial de violações e ataques ao direto de informação da sociedade. Na quase totalidade dos casos — e são muitos, em praticamente todos os estados —, a iniciativa é de agentes públicos alérgicos à fiscalização e à exposição de suas mazelas com o dinheiro dos impostos.

Assim, é bem-vinda a decisão da ministra Rosa Weber. Ela suspendeu as ações apresentadas contra o jornal “Gazeta do Povo”, de Curitiba, que informara sobre ganhos de juízes e promotores paranaenses acima do teto do funcionalismo público. O Supremo Tribunal Federal deverá julgar o caso, cujo mérito evoca a essência do direito de informação dos cidadãos, da liberdade de expressão e de imprensa.

A ministra ressaltou, na decisão, a relevância constitucional da causa. Citou no despacho uma decisão anterior, de sua lavra, na qual observa que o “núcleo essencial e irredutível do direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento compreende não apenas os direitos de informar e ser informado, mas também os direitos de ter e emitir opiniões e de fazer críticas”. Lembrou que “o confinamento da atividade da imprensa à mera divulgação de informações equivale a verdadeira capitis diminutio em relação ao papel social que se espera seja por ela desempenhado em uma sociedade democrática e livre — papel que a Constituição reconhece e protege”.

O que a “Gazeta do Povo” fez foi informar seus leitores, com base em dados oficiais, sobre quanto recebem magistrados e procuradores do Paraná. O aumento do custo do Judiciário é notório. Na atual emergência econômica, provocada pela extrapolação dos gastos públicos nos últimos anos, é debate necessário e, mesmo, vital ao futuro do país.

O silêncio desejado pelos autores das ações distribuídas por várias cidades, com um clara intenção de impor humilhação aos jornalistas, equivale à proibição de informar ao cidadão sobre os seus impostos. A cena se repete, com variações, do Rio Grande do Sul ao Amapá, do Espírito Santo a Mato Grosso do Sul.

É o vírus do autoritarismo. A consequência de uma infecção, ensina a história, é a violação constitucional, para aniquilar a proteção à liberdade de informação, de expressão e de imprensa. Esses direitos, vale lembrar, são cláusula pétrea na Carta porque, antes de tudo, são direitos da cidadania. E essa, talvez, seja a grande diferença da Constituição de 1988. Como lembrava Ulysses Guimarães, esta começa pelos direitos do cidadão; as anteriores começavam desenhando o país pelo Estado.

O Ovo de Galinha - João Cabral de Melo Neto


I
Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

II
O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

III
A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.

A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

IV
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

------------
A poesia acima foi extraída do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 302.

Zimbo Trio - Desafinado (Tom Jobim)