- O Globo
De novo na estrada mas preocupado com o Rio. Ao longo de observação e conversas, acho difícil os serviços públicos voltarem a funcionar na plenitude em curto prazo de tempo. Tenho a sensação, confirmada pelos números, de que os crimes crescem e o poder da polícia esmorece. Todas as vezes em que o Estado fraqueja, penso no papel da sociedade. Existe sempre o forte argumento de que é uma função do governo, pago com os impostos para garantir a segurança pública. Mas o que fazer quando o Estado está na lona?
Moradores do Catete compraram papel higiênico para a delegacia funcionar. Eles se uniram para evitar o pior. Mas o leque de possibilidades de intervenção social é mais promissor no campo de mecanismos de autodefesa. Nos últimos anos, comecei a olhar para o smartphone e me perguntar: o que é possível fazer com ele para aumentar a segurança do indivíduo?
Há cerca de dois anos, pensava num aplicativo que pudesse ser uma espécie de conselheiro de segurança, sobretudo mapeando áreas perigosas. Os dispositivos que existem trabalham em tempo real orientando o trânsito. Um roteiro de segurança depende de dados confiáveis sobre a taxa de incidentes ao longo do caminho. Há uma razão para vencer a resistência em registrar um assalto na delegacia, motivada pela desesperança na ação policial: um simples dado é importante para todos.
Um aplicativo voltado para a segurança poderia incluir também ícones de alarme, indicando o tipo de perigo, a localização da pessoa. Meus devaneios são secundários. O importante é que as pessoas que realmente trabalhem com o tema encontrem os múltiplos caminhos e as ferramentas de autodefesa através da informação.
Aplicativos como o Waze já indicam em cores os congestionamentos. Mas estão abertos para comentários, de modo geral sobre a fluidez do trânsito. Eles precisam absorver essa dimensão de segurança pois volta e meia jogam os motoristas em lugares dominados pelo tráfico de drogas. Tanto os territórios dominados pelo tráfico como pelas milícias são mapeáveis. Isso já fizemos, mas hoje deve estar tudo embaralhado. Na Zona Oeste há milícias que vendem territórios umas para as outras ou até para o tráfico.
O lugar em que a jovem médica Gisela Palhares foi assassinada, na Linha Vermelha, já tinha sido cenário de quatro assaltos. Deveria ser um pontinho luminoso, indicando perigo num roteiro de segurança. Vi muitas crises de violência urbana, o entusiasmo com as UPPs, uma euforia com a tomada do Complexo do Alemão, todas carregadas de esperança numa solução durável.
A crise atual acontece num momento de crise econômica, quebradeira do estado, véspera de Olimpíada. Não há solução durável no horizonte. É por sentir essa sensação de aperto que olho para o smartphone com alguma expectativa. Por que desprezá-lo? O fato novo que propiciou é uma sociedade com uma extensa capacidade de se informar. O que significa também instrumentos para melhor se defender. É uma contingência. Não significa substituir o Estado, nem deixar de exigir serviços decentes. Apesar da quebradeira, o estado ainda detém importantes instrumentos tecnológicos no seu centro de comando e controle. Poderia ser um grande parceiro nesse fluxo de informações, alertas, enfim entrar numa outra dimensão da luta pela segurança. Numa entrevista, José Mariano Beltrame me declarou que as UPPS eram apenas uma anestesia pois o projeto de recuperar socialmente os lugares ocupados não vingou. E o efeito da anestesia está passando.
Quando me atrevo a pensar em segurança, algo inevitável para quem trabalha na rua, sei que um abraço na tecnologia da informação não resolve os problemas de fundo. Mas é o velho dilema que nos persegue: o que fazer enquanto não se resolvem os problemas de fundo? Talvez seja prematuro refletir sobre isto antes da Olimpíada, quando se espera um alívio temporário. A Copa do Mundo já passou, e a vida continuou do mesmo jeito ou pior. Esses eventos não têm o condão mágico de resolver problemas.
Depois da Olimpíada, a realidade vai aparecer com toda a crueza. Quando começo a olhar para o telefone e a perguntar o que pode fazer por mim é porque a situação está brava ou, pelo menos, parece estar. Daí a necessidade de pensar cenários de crise, alguns remédios. A crescente violência urbana pode suscitar uma série de visões extremadas mas ao mesmo tempo atraentes pela sua simplicidade.
Depois do que aconteceu com a União Europeia, com a saída do Reino Unido, constatei mais uma vez que nem sempre uma posição mais racional triunfa, que a História não tem um script linear. O Brasil vive um período vulnerável. Estado falido, sistema político falido. De alguns políticos, com a ajuda da Lava-Jato, a sociedade está a caminho de se livrar. No entanto, não pode se livrar facilmente dos estragos que deixaram no seu rastro. É um grande desafio para ela: com a falência estatal precisa preencher parte das atribuições do governo. E ainda ter serenidade. Haja paciência.
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Fernando Gabeira é jornalista
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